De Poa
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15 de junho de 2023
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14:03

Clarice Oliveira: Plano Diretor ‘muito liberal’ de Melo pode ser cheque em branco ao mercado

Por
Luís Gomes
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Clarice Oliveira, copresidente do IAB-RS e professora da UFRGS, é a convidada do De Poa desta semana | Foto: Reprodução
Clarice Oliveira, copresidente do IAB-RS e professora da UFRGS, é a convidada do De Poa desta semana | Foto: Reprodução

O episódio desta semana do podcast De Poa recebe Clarice Misoczky de Oliveira, copresidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil no Rio Grande do Sul (IAB-RS) e professora do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Clarice conversa com Luís Eduardo Gomes e Lidiane Blanco sobre as discussões em andamento para a revisão do Plano Diretor de Porto Alegre e os seus possíveis impactos para o futuro da cidade.

Ao longo da conversa, Clarice avalia como a Prefeitura tem pensado a questão da habitação de interesse social e pondera que, apesar do discurso, a prática tem mostrado que a moradia para populações de baixa renda não está devidamente contemplada nos planos apresentados até aqui. “Quando chegou na Câmara [o programa de reabilitação do Centro Histórico], essa questão da isenção fiscal para habitação de interesse social foi suprimida. Então, o Executivo não enviou esta pequena possibilidade, este pequeno incentivo para a ser votado na Câmara de Vereadores. Ele não consta no plano, não há nenhum incentivo para a habitação de interesse social”, diz.

A copresidente do IAB-RS também avalia que, pelo que se tem ouvido do prefeito Sebastião Melo (MDB) a respeito da revisão do Plano Diretor, a cidade terá um plano em que a Prefeitura abdicará de sua capacidade de fazer planejamento urbano. “Quando o prefeito Melo diz que Porto Alegre terá um plano muito liberal, é que talvez a cidade inteira vire um projeto especial, que tudo seja no caso a caso. E se a gente não tem uma definição de quais são as características de cada região, de cada bairro, é conforme os interesses do mercado. É um monitoramento que vai servir não ao Estado, não à cidade, não à população, mas é um monitoramento que vai servir aos interesses do mercado”, diz.

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O De Poa, parceria do Sul21 com a Cubo Play, é um programa de entrevistas sobre temas que envolvem ou se relacionam com a cidade de Porto Alegre. Todas as quintas-feiras, conversamos com personagens ilustres ou que desenvolvem trabalhos importantes para a cidade. Semanalmente disponível nas plataformas da Cubo Play e do Sul21. 

Confira a seguir trechos da entrevista.

Lidiane Blanco: A gente está discutindo o Plano Diretor da cidade já tem um tempo e junto a isso também acabou se sobressaindo as discussões sobre a verticalização, o adensamento, trazer mais gente para regiões que já têm infraestrutura da cidade, como o Centro Histórico e o Quarto Distrito, que receberam programas especiais de incentivo a quem construir naqueles lugares. E falando sobre isso, nós recebemos aqui no programa o secretário de Meio Ambiente, Germano Bremm, que nos disse que há intenção de trazer para esse centro da cidade as pessoas que têm menos renda, para que elas possam viver num lugar onde elas tenham acesso à infraestrutura com mais facilidade, não tenham que se deslocar uma hora e meia de ônibus. Que mecanismos tu acha que poderiam ser utilizados para favorecer as habitações sociais que hoje nós não temos nessas regiões??

Clarice Oliveira: Eu acompanhei a elaboração do plano do Centro Histórico e do Quarto Distrito, que são, na verdade, uma antecipação da revisão do Plano Diretor, porque tratam das matérias que são reserva de Plano Diretor. O Ministério Público encaminhou uma recomendação à Prefeitura de Porto Alegre, na época de chegar o plano de Centro Histórico na Câmara, apontando que era reserva de Plano Diretor e que isso deveria ter sido debatido em processo de revisão de Plano Diretor, e não num plano de bairro. Os planos de bairros são muito interessantes, eu acho que é uma ferramenta de planejamento urbano muito potente, inclusive para olhar pro local com uma escala mais detalhada. Mas o que o plano do Centro Histórico fez foi exatamente o contrário do que o secretário declarou aqui para vocês. Nós participamos de todas as etapas que envolviam a participação da sociedade na elaboração desse plano, então, como IAB, nós participamos das oficinas que foram realizadas com diferentes grupos e uma das principais discussões que nós tivemos nessa oficina com o corpo técnico era exatamente sobre a limitação que existia no plano referente à promoção de habitação de interesse social no Centro.

O que estava exposto na época? Os empreendimentos, para aderirem ao programa de reabilitação do Centro Histórico, as edificações devem estar de acordo com alguns critérios. Eram 6, 7 ou 8 critérios, sendo que o empreendedor pode escolher quatro desses. Critérios como rooftops, melhoria das calçadas, tratamento de faixadas, e a habitação de interesse social entrava como um desses critérios. Estando dentro destes requisitos, aí poderia inclusive ter algumas isenções fiscais. Então, o que se tratava na época, antes do plano ir para a Câmara de Vereadores, é que um empreendedor que quisesse promover a construção de uma habitação de interesse social no Centro teria isenção fiscal.

Aí a questão era, primeiro, ele pode escolher entre todos esses requisitos, não significa que se esteja de fato promovendo e incentivando a habitação de interesse social. Um empreendedor pode muito bem escolher os requisitos que favorecem o próprio empreendimento, que valorizam o próprio empreendimento. Bom, se isso não incentiva, será que o incentivo fiscal é o suficiente? Eu lembro que essa foi a pergunta que eu fiz para o corpo técnico da época. Por que um empreendedor vai construir um prédio de habitações para uma parcela da população que não tem um bom poder aquisitivo ou que talvez não vá conseguir honrar suas contas? Não tem um programa de aluguel social, não tem programa de subsídios a longo prazo. A isenção de tributos é insuficiente, no nosso ponto de vista, para que se promova esse incentivo.

Bom, depois desse documento final, no momento da audiência pública, a questão da habitação social não foi comentada. Eu me lembro que o slide foi passado, não foi nem mencionado. E, quando chegou na Câmara, essa questão da isenção fiscal para habitação de interesse social foi suprimida. Então, o Executivo não enviou esta pequena possibilidade, este pequeno incentivo para ser votado na Câmara de Vereadores. Ele não consta no plano, não há nenhum incentivo para a habitação de interesse social.

Muitas coisas poderiam ser feitas. A Prefeitura tem estoques de terras, nós temos no centro muitas áreas com estacionamentos que hoje são subutilizados, porque as pessoas preferem ir de Uber. Tá certo que, na pandemia, isso se reverteu um pouco, mas a lógica dos terrenos, não são nem edifícios garagens, existem alguns edifícios garagens, mas existem muitos terrenos que são simplesmente utilizados para estacionamento.

Aí vem uma uma retórica de que o Centro precisa de incentivo para atrair moradores. O Centro não tem baixa densidade populacional, é a quarta maior densidade populacional de Porto Alegre, segundo o Censo de 2010, nós estamos com os dados defasados. Mas é um lugar onde ainda existe uma certa diversidade cultural. O que a Prefeitura entende e declara, e isso faz sentido de dentro de uma determinada lógica, é que ‘bom, se investiu muitos recursos na Orla, existe a ideia da consolidação do Cais Mauá — que não sai do papel, já estamos na terceira tentativa com editais que são vazios –‘. A Prefeitura e o governo do Estado, em conjunto com o BNDES, criam todas as possibilidades para o mercado empreender no Cais Mauá, mas o mercado não dá as respostas que o Estado gostaria, não dá resposta nenhuma, na verdade. Qual é a lógica então, a partir dos investimentos na Orla, que são oriundos de fundos internacionais, então a Prefeitura tem que pagar, tem que retornar esses investimentos que saem do caixa da Prefeitura de Porto Alegre para execução. E aí vem uma lógica de valorização, a melhoria de infraestruturas, e aí a gente tá falando aqui especificamente de estruturas de lazer, valorizam a terra, valorizam o mercado imobiliário. Sempre que a gente tem um incremento de infraestrutura, seja ela de transporte, abastecimento d’água, iluminação, espaços de lazer, cultura, etc., isso cria uma qualidade da vida urbana e o mercado imobiliário se apropria dessa qualidade de vida para gerar valor. Então, o que a gente percebe é que o programa do Centro Histórico vem na verdade numa viabilização de abrir as possibilidades para o mercado imobiliário aproveitar essa valorização de infraestrutura. Só que é uma valorização de infraestrutura ali da Orla, a gente que vive no Centro sabe dos problemas, da questão de lixo, os problemas de mobilidade que são acarretados inclusive por essa dinamização da orla, barulhos. Domingo à noite sempre tem rave, então agora eu sei que vou dormir com uma rave no domingo. Isso não é exatamente o perfil da habitação de interesse social, não é esse perfil que tá migrando para o Centro.

Às vezes eu vou fazer pesquisas de campo no Cais Mauá e eu ouço muito as pessoas dizerem ‘Ah, como o Centro tá ficando bom, como tá melhorando’. Daí eu pergunto, ‘mas o que vocês estão gostando aqui?’ ‘Ah, o Embarcadero’. As pessoas chegam de carro pela Mauá e chegam no Embarcadero, elas não estão de fato vivendo Centro. Então, tem uma exploração da Orla, mas que vai ter impactos diretos na vida das pessoas no Centro Histórico. Tem um gentrificação, o comércio da Andradas tá mudando muito. Depois da aprovação do plano, tem muitas casas no Centro com placas de venda, porque os donos viram ali a oportunidade de gerar renda a partir da valorização imobiliária que vai se dar. Isso é elementar, quando a gente aumenta a possibilidade de se construir num terreno, ou seja, quando você aumenta o limite de altura de construção em terreno, a gente tá aumentando o valor do solo. Quando a gente empreende em infraestrutura, a gente aumenta o valor do solo, da terra.

Lidiane Blanco: E a valorização desses locais tem um outro elemento que é justamente afastar essas pessoas que têm o menor poder aquisitivo. Sem políticas públicas eficientes, como é que se dá essa essa relação?

Clarice: Exatamente, muitas dessas casas que estão com placas à venda são os cortiços. A gente ainda tem alguns cortiços, algumas pensões no Centro Histórico, então existe uma uma diferença de padrões de população morando no Centro e é exatamente essa população, de classe média baixa. No mercado na frente da minha casa, um farroupilha custa R$ 3,50. Na Cidade Baixa, custa R$ 10, No Moinhos de Vento, custa R$ 15, nem sei quanto que tá o farroupilha no Moinhos de Vento, mas eu sei que não é R$ 3,50. Então, conforme essa mudança de comércio que tá acontecendo na Andradas, com lojas com uma arquitetura um pouquinho mais requintada, com outros cardápios, a gente vê ali que já tem uma dinamização do comércio de rua para atrair esse outro público e isso vai expulsando o comércio que dá suporte à vida cotidiana dos moradores do bairro. Às vezes, não é só o preço do aluguel que aumenta, mas o preço do custo de vida mesmo, o preço do almoço no restaurante da esquina,o preço do cafezinho, do pão que a gente compra do outro lado da rua, então é um efeito da gentrificação que a gente chama, que vai aos poucos mudando a população de um lugar para uma população de maior poder aquisitivo.

Lidiane Blanco: Clarice, a gente tá aqui falando de habitação social, nós falamos de infraestrutura, que não existem nessas regiões mais periféricas, como aqui na Bom Jesus, Mário Quintana e na própria Restinga. Em contrapartida, a gente tem espaços da cidade sendo valorizados, outros que se intenciona valorizar, e aí a gente não pode deixar de falar dos projetos especiais que mudam a paisagem e a configuração da cidade. Eu queria que tu falasse um pouco a respeito desses projetos especiais, que estão reconfigurando a cidade.

Clarice: São projetos que surgiram no Plano Diretor de 1999, a possibilidade desses projetos especiais. E eu me lembro que, na ocasião, veio o Jordi Borja, que é um consultor espanhol que foi responsável pelo projeto Olímpico de Barcelona 92, que virou emblemático, super celebrado mundialmente, como uma grande intervenção urbana de melhoria da qualidade de vida e dos espaços públicos, principalmente. Então, Jordi Borja e Manuel Castells prestaram muitas consultorias para cidades latino-americanas de como reproduzir esses grandes projetos urbanos. Só antes eu vou contar um detalhe, para a construção da Barcelona Olímpica, houve a remoção de favelas. A gente acha que é só no Brasil que acontece isso, mas existiu toda a remoção das favelas na praia para uma área que é no limite do município, então isso não é só em Porto Alegre. Em Londres, inclusive, o plano diretor da Grande Londres de 2008, que foi o plano do Boris Johnson, até pouco tempo atrás primeiro-ministro, define pontos para execução de grandes projetos, se eu não me engano são 32 pontos de locais de regeneração urbana, que eles chamam, e esses projetos [escolhidos para serem substituídos] são majoritariamente projetos de habitação de interesse social construídos no pós-guerra, com a expulsão dessas pessoas para outras cidades. Isso está escrito no plano, para Birmingham e Manchester. Não é nem para o limite da cidade, é para fora de Londres. Isso dentro de um projeto de uma Londres cidade global. Todos esses projetos, seja de Porto Alegre, seja de Barcelona, seja de Londres, vêm com o mesmo objetivo, que é transformar imagem da cidade para fora e, a partir daí, arrecadar investimentos.

Então, em 1995 ou 1996, o Jordi Borja esteve em Porto Alegre fazendo uma palestra sobre projetos urbanos e ele colocou essa necessidade. Era um debate no planejamento urbano de que não se pode ter uma rigidez tão grande. Essa rigidez que os franceses negam da cidade de 15 minutos, do Estado interferindo demais na vida das pessoas, o planejamento urbano também não poderia mas ser tão rígido, tem que ter algumas aberturas, algumas flexibilizações. Na época do Plano Diretor de 1999, a flexibilização foi a partir de projetos especiais, mas seriam projeto especiais que teriam um caráter majoritariamente público. E aí, na revisão de 2010, se abre mais a possibilidade para os empreendimentos privados. Aí é que a gente vê uma aceleração de muitos empreendimentos, a gente percebe também o interesse do setor da construção civil, dos corretores imobiliários, em ocupar cadeiras do Conselho do Plano Diretor (CMDUA), que é onde se aprova muitas dessas questões. Então, a gente percebe uma mudança nesses últimos 13, 14 anos, a partir dessa última alteração.

O que acontece hoje? Bom, a Prefeitura não fez monitoramento dos projetos especiais. A Prefeitura agora está tentando correr atrás desse prejuízo, porque uma coisa é a gente planejar. Planejamento é pensar o futuro, pensar como vai ser a cidade do futuro e a cidade como um todo. Quando a gente pensa em planejamento, a gente não pensa a cidade por pedaços. Os grandes projetos urbanos ou projetos especiais acabam sendo pensar a cidade por pedaços, sem entender que impactos existem nesse território. Se não há um monitoramento de saber quantas unidades habitacionais foram construídas nesse bairro, qual é o impacto que tem no posto de saúde, qual é o impacto que tem na escola, qual é o impacto que tem no transporte, no abastecimento da água, em todas aquelas infraestruturas que a gente vêm falando, se não tem monitoramento, é um cheque em branco. É uma cidade que está na verdade abdicando do planejamento. Para fazer esse monitoramento, precisa ter um acompanhamento e precisa ter parâmetros. E a Prefeitura tem falado muito, hoje, na criação de um sistema de monitoramento. Isso é muito importante, porque como é que a gente vai revisar um Plano Diretor se a gente não sabe como a cidade está?

Luís Gomes: Mas já é muito elemento tardio, né? A gente já deveria ter esse monitoramento para fazer a revisão e ele vai vir, com sorte, depois.

Clarice: Aí, qual é a questão que se coloca? O monitoramento é importante, mas quais são os parâmetros e quais são os indicadores que vão guiar esse monitoramento? Para ter uma monitoramento, antes precisa ter um planejamento de entender ‘olha, a densidade de um bairro vai atender um número X’. Então, o monitoramento vai entender que cidade vai até aqui, ‘olha, chegou nesse número X, não vai mais poder construir’. Mas se a gente não tem esse planejamento da cidade como um todo, a gente não sabe o que isso vai atingir. O que está sendo colocado atualmente é que se os projetos especiais são uma forma de liberação dos parâmetros e das normas urbanísticas, que é essa flexibilização. Quando o prefeito Melo diz que Porto Alegre terá um plano muito liberal, é que talvez a cidade inteira vire um projeto especial, que tudo seja no caso a caso. E se a gente não tem uma definição de quais são as características de cada região, de cada bairro, é conforme os interesses do mercado. É um monitoramento que vai servir não ao Estado, não à cidade, não à população, mas é um monitoramento que vai servir aos interesses do mercado.

Luís Gomes: Clarice, a gente tem conversado sobre como as cidades, hoje, são grandes balcões de negócios. A pergunta que eu te faço é: como essa cidade que já não diz ‘não’ para empreendimentos e vai passar a nem cogitar dizer não para projetos de grande impacto, para onde isso vai nos levar em Porto Alegre?

Clarice: Eu acho curioso que muitas pessoas de curso superior, que têm condições de viajar para outros lugares, ir para a Europa, voltam desses lugares valorizando a paisagem, o patrimônio, poder andar de bicicleta, poder andar a pé, valorizam o estilo de vida que não é o estilo de vida para o qual Porto Alegre se encaminha, né? A cidade do condomínio fechado é o extremo oposto a essa cidade da urbanidade, do livre circular pela cidade. Então, é interessante que não venha essa crítica para cá quando a gente está discutindo a cidade, que o que se valoriza lá fora a gente aqui tá fazendo ao contrário.

Mas, ao mesmo tempo, esses grandes empreendimentos, esses prédios modernos, com fachadas muito contemporâneas, imóveis que valorizam a paisagem, também mobilizam as pessoas. Eles também dizem: ‘Ah, Porto Alegre tá ficando muito bonita’. Daí talvez mais uma referência a Nova York do que a uma cidade europeia, como Londres ou como Madrid, Barcelona, etc. Então, essa questão da modernidade gera alguma motivação, inclusive, na autoestima das pessoas, poder dizer: ‘Olha, a minha cidade está ficando mais bonita’. Porque vamos combinar, a cidade de Porto Alegre não tem uma paisagem uniforme. Como é uma cidade que foi se construindo ao longo do tempo, com diferentes planejamentos, o Centro Histórico vai ter duas ou três casinhas espremidas por prédios de 10 andares de altura. Isso é a nossa paisagem, é a característica de uma cidade brasileira, pelo menos de áreas centrais. Ou é a característica de passar por grandes áreas de pobreza e áreas não urbanizadas.

Então, o que pode acontecer a partir dessa lógica de que tudo vale, tudo pode, é que o mercado vai encontrar os melhores lugares para investir e esses investimentos estão cada vez mais descolados do uso final da habitação, do comércio, do trabalho ou do serviço, então a gente vai ter na paisagem de Porto Alegre alguns prédios fantasmas, talvez muito bonitos, talvez com uma arquitetura mais interessante, mas que talvez daqui a 20 anos essa arquitetura ela tenha caído em desuso. Tem uma discussão dentro da Arquitetura que é a gente não consegue mais projetar um prédio — se a gente não tem um Plano Diretor com parâmetros, isso já tá sendo percebido no Centro Histórico, por exemplo — se a gente não tem parâmetros para entender quais são as possibilidades de construções que existirão no entorno deste prédio, a gente não tem como projetar um prédio pensando na sua vida no futuro, no desempenho desse prédio na paisagem urbana por pelo menos mais 10 anos, quando um Plano Diretor pode ser revisado.

Ainda que existam alguns pequenos esforços. No plano do Centro Histórico, tem uma limitação que é da altura do maior prédio do quarteirão. No meu quarteirão, o prédio de 10 andares é o mais alto, então vão poder se substituir essas casinhas e construir muitos prédios de 10 andares, em vias, ruas, que não têm uma largura suficiente para acomodar prédios de 10 andares. Se fosse chegar ao limite dessa liberação, nós teríamos lugares com muita densidade populacional, em tese, se forem ocupados, e vias com baixa ventilação, baixa iluminação, se não forem criados os parâmetros para que essas condições se desempenhem.

Mas eu acho que isso não vai acontecer, porque em nenhum momento a gente tem a construção dos bairros chegando no seu limite máximo dos parâmetros já destinados. Então, a gente não precisaria liberar, em tese. Porto Alegre, no Centro Histórico, houve essa liberação de alturas porque se vendeu o estoque de solo criado, que é: ‘olha, eu quero construir um prédio de oito andares, mas o Plano Diretor diz que é até seis, então eu posso comprar um solo criado’. Mas esse solo criado ele tem uma certa organização que não necessariamente precisa ser construído, posso comprar um solo criado do Centro e construir em outra área da cidade. Então, o que aconteceu aqui no Centro Histórico, por exemplo, é que não foi construído todo o estoque, que está fora do solo criado, mas o solo criado sim. Então, teve que aumentar esse parâmetro urbanístico para continuar vendendo solo criado no Centro Histórico. É uma lógica um pouco complexa, mas isso demonstra que talvez a gente não tenha a valorização dos bairros.

Esse projeto do libera tudo em todas as áreas privadas, primeiro vai atender aos interesses privados. Não vai atender aos interesses públicos, não vai ser possível uma manutenção das paisagens e das dinâmicas urbanas dos bairros. Alguns bairros podem ter muitos empreendimentos, outros bairros podem ficar completamente fora do interesse do mercado. Eu realmente não entendo o que isso possa trazer, porque não existe uma visão de cidade. Quando não existe o planejamento, a gente deixa de sonhar o futuro, porque o planejamento é um pouco o futuro.

Luís Gomes: Essa visão de cidade pode até aparecer, respingar em alguns conceitos que o prefeito e os secretários falam, mas nos instrumentos de planejamento, de fato, parece que não vão aparecer, né?

Clarice: O que vai aparecer, de fato, é uma destruição dos planejamento urbano. Se isso se consolidar, o Estado está abdicando da sua função, que é planejar a cidade. Estará entregando tudo para o mercado, e o mercado não planeja. O mercado faz as ações para os seus interesses.

E daí é curioso, isso é uma outra conversa que eu sempre faço, se vocês entrevistarem um empreendedor, um dono de uma empresa do mercado imobiliário, ele abdicou do planejamento da sua empresa? Será que algum empreendedor, será que algum empresário, vai dizer: ‘Sim, eu não planejo mais a minha empresa’. Porque planejamento é ruim, porque só a gestão importa. Eu tenho certeza que a resposta vai ser sempre não. Então, se a ausência de planejamento fosse tão interessante, por que os empreendedores não deixariam de fazer também? Por que é importante para o Estado não planejar e para as empresas não? Então, essa é uma questão que é bem importante a gente refletir sobre, o quanto planejar é de fato ruim para a cidade.


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