Opinião
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27 de março de 2024
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17:08

Por que mataram Marielle? (por Céli Pinto)

Marielle Franco. Foto: Guilherme Cunha/Alerj
Marielle Franco. Foto: Guilherme Cunha/Alerj

Céli Pinto (*)

A Polícia Federal, a mídia e especialistas em segurança pública têm muitas Informações já divulgadas e ainda por divulgar sobre as razões do assassinato de Marielle Franco e seu motorista. As novidades parecem-me todas muito velhas. Quem, entre os interessados em política, ignorava que, no Brasil, há décadas, talvez séculos, existe uma grande promiscuidade entre política, polícia e contravenção no estado do Rio de Janeiro?  Conhecido como o primeiro samba brasileiro, “Pelo Telefone’,  de 1916, começa assim:   “O chefe da polícia pelo telefone manda me avisar/ que na Carioca tem uma roleta para se jogar”. Dá o que pensar, não?

Gostaria, entretanto, de comentar este bárbaro assassinato a partir de outro olhar.  Marielle era apenas uma vereadora em início de mandato, por que ameaçava tanto? Que poder real tinha para mexer com o azeitado poder da tríade política-polícia-contravenção do Rio?  Me arriscaria a dizer que nenhum. Então, por que Marielle foi morta? Penso ser necessário abrir um pouco o leque da análise para ter um melhor entendimento, o que implica pensar a política brasileira como um todo e a política do Rio como o seu momento mais acabado, mais torpe, mas não tão excepcional. O Brasil não é uma ilha de tranquilidade democrática enlameada pela política carioca.

A política brasileira hoje parece estar se equilibrando em dois polos – nada a ver com polarização. Por um lado, há o crescimento de uma extrema direita, antidemocrática, violenta, fanatizada, sem nenhuma responsabilidade social, mas que conseguiu uma façanha admirável: trazer para suas fileiras um número não desprezível de jovens, desalentados, ressentidos, religiosos, violentos. Eles existem e fazem a diferença. Estão nas comunidades, mas também nas câmaras municipais, nas assembleias legislativas e até no Congresso Nacional. 

Por outro lado, há um governo de centro, na melhor das hipóteses de centro-esquerda, amedrontado, envelhecido, muito masculino, que faz mesuras a herdeiros da ditadura militar e proibe que manifestações democráticas contragolpistas sejam a marca de sua administração. O PT, que em princípio lidera este governo, com raras e honrosas exceções, é um partido velho. Quando se vê como grande vitória a possibilidade de José Genoino e Zé Dirceu se candidatarem a deputados federais em 2026, quando ambos terão mais de 80 anos, é possível perceber para onde as forças progressistas estão andando.  Nada contra os dois políticos, foram e são excelentes quadros do PT, só engrandecerão a Câmara de Deputados, se forem eleitos. Não é disto que se trata, mas do fato de o PT, como um grande partido, um dia pensado como de esquerda, não atrair mais a massa dos jovens, os estudantes, os que ganham a vida se arriscando na precária ocupação de entregadores de moto, os desempregados, os desalentados. Soma-se a isto o fato de o partido mostrar, no momento, medo de suas próprias lutas históricas. 

Por muitos anos, PSDB e PT, os dois grandes partidos brasileiros que se revezaram na Presidência da República, foram os garantidores de uma democracia mais ou menos excludente, conforme o presidente de plantão, que achava que as instituições garantiriam o regime e que o chamado governo de coalizão não era uma jabuticaba, como se revelaria com os anos, mas uma saudável criação da democracia brasileira.

O PSDB praticamente desapareceu e o PT se confrontou com outro adversário, bem menos disposto à dança das cadeiras. O problema é que PT e PSDB só aprenderam a brigar  um com o outro. Um necessitava do outro para sobreviver. O PSDB traiu o PT na ingênua pretensão de vencer as eleições presidenciais com o Lula preso, mas não conseguiu 5% dos votos. O PT, por sua vez, venceu as eleições de 2022 por uma margem diminuta de votos e fez apenas um governador (a governadora reeleita do Rio Grande do Norte). Não sabendo como agir frente à extrema-direita, encolheu-se e tornou-se um governo de centro, conseguindo até os bons tratos do mercado. 

No problemático estado do Rio de Janeiro, o governo do Presidente Lula não incomoda a tríade. Ao contrário, apoia Eduardo Paes que teve um dos acusados de mandante do assassinato de Marielle como seu secretário de estado até pouco tempo. Daniela do Vaguinho, também uma personagem das mais estranhas na política fluminense, foi Ministra do governo Lula. Não sejamos ingênuos, todo mundo sabia quem eram estes personagens.  Até Quaquá, o estranho vice-presidente do PT, deputado pelo Rio, saiu em defesa de um dos acusados de mandante do assassinato. Assim como o PSDB foi ingênuo ao pensar que poderia governar matando o PT, o PT  padece do mesmo mal ao achar que, convivendo  amigavelmente com a tríade podre, poderá se manter no poder.

A essa altura, a leitora e o leitor devem estar me perguntando: o que esta história tem a ver com a morte de uma vereadora de primeiro mandato no Rio de Janeiro? Tudo.

Não sei e nunca poderemos saber qual teria sido a história política de Marielle, mas ela tinha potencialidades  e isto era uma grande ameaça. Ela representava o novo. Vinha da favela, era socióloga, mulher, negra, bissexual e não tinha ligação com o velho. Mesmo comparada a Freixo, que antes foi do seu partido, ela era muito mais potencialmente perigosa.  Era uma mulher da periferia que ia para periferia, lutava contra a grilagem, contra o racismo, contra a misoginia, a homofobia, a contravenção.  Tinha um futuro muito perigoso para a tríade carioca. Matar Marielle, antes que ela se criasse como uma grande liderança, antes que ela passasse a incomodar mais, foi uma decisão de profissionais, tanto que implicou até o chefe de polícia Rivaldo Barbosa.  Eles sabiam exatamente o que estavam fazendo.  Ela poderia ainda concorrer ao Senado em 2026 e sabemos quem é o candidato à reeleição no Rio.  

Marielle não morreu por um ou outro projeto, por uma ou outra ação que tenha tomado, morreu porque representava o novo, ameaçava a triste democracia excludente e amedrontada em que o Brasil está metido e que o Rio a representa em seu estado puro.  Marielle foi morta pelo conjunto da obra, que ironicamente não teve tempo de realizar.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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