Opinião
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14 de março de 2024
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14:40

Esquecemos de Guantánamo (por Milton Pomar)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Milton Pomar (*)

Assistir “O Mauritano “dá um ruim” o tempo todo. Não apenas pela história em si, que é chocante, mas porque ao assistir esse filme nos damos conta que havíamos esquecido de Guantánamo, a base militar dos Estados Unidos (EUA) em Cuba, na qual foram mantidas prisioneiras – sem condenação – centenas de pessoas de vários países, para serem torturadas em busca de informações para a “Segurança Nacional” dos EUA, o país que se arvora o paladino da democracia e direitos humanos no mundo.

O jornal O Globo, de 13 de julho de 2021, apresenta assim o filme: “história do prisioneiro que ficou sob custódia dos EUA por 14 anos”. A pessoa foi raptada pelos EUA, ficou presa ilegalmente durante 14 anos(!), sendo barbaramente torturada, e O Globo traduz toda essa barbaridade assim: “custódia”!

Matéria recente da Folha de São Paulo, de 1º de março de 2024, da repórter Fernanda Perrin, atualiza os conceitos da situação esdrúxula – a começar pela própria base militar, que está ali na marra, contra a vontade de Cuba.

Histórias muito parecidas são apresentadas nos filmes “A caminho de Guantánamo”, de 2006, com três  jovens ingleses de origem paquistanesa, e “Cinco anos em Guantánamo”, de 2013, com um turco-alemão.  

A lista é longa, porque a prisão criada em 2001 está até hoje em funcionamento. Os EUA tiveram ali mais de 800 presos no total, dos quais apenas dez teriam sido condenados. Imagina-se que todos foram sistematicamente torturados – foram levados para lá para isso –, mas não se sabe quantos foram mortos e quantos enlouqueceram com os sofrimentos. 

Ação do governo George Bush, em 2002, a transformação da base militar de Guantánamo em centro de tortura e prisão foi decisão política para proteger os torturadores norte-americanos em vários locais do mundo, para evitar que fossem acusados por tais crimes, já que tudo era feito fora da jurisdição dos EUA e invocando a figura do “combatente ilegal”, que “permitia” que fossem tratados ilegalmente. Na época, invocaram – para variar – a “Segurança Nacional”, que havia sido ameaçada com os ataques terroristas de 11 de setembro.

Por que os EUA ainda mantêm Guantánamo funcionando, com um custo exorbitante? – Nesses 22 anos desde a sua criação como centro de tortura e prisão ilegal, o gasto total já deve ter passado de US$ 50 bilhões. Tanto dinheiro (público) para obter dez condenações e uma montanha de informações de qualidade duvidosa. O advogado Barack Obama, quando assumiu a presidência dos EUA, em 2008, prometeu fechar a prisão, mas não o fez. 

Esquecemos de Guantánamo, da mesma maneira que esquecemos da Escola de Tortura dos Estados Unidos no Panamá – que funcionou de 1946 a 1984, “deformando” 60 mil militares e policiais da América Latina, atuantes na repressão política em seus países – e da atuação terrorista da França na Argélia, sobre a qual há dois filmes ótimos, de 2007 e 2011: “L’Ennemi Intime e “Hors la loi. A França empregou tortura durante o período que ocupou militarmente (“colonizou”) a Argélia, conforme admitiu o presidente francês Emmanuel Macron. Aliás, o general Paul Aussaresses, que viveu até 95 anos de idade, admitiu ter torturado e assassinado prisioneiros durante a ocupação francesa na Argélia,  . Adido militar no Brasil, em 1973, Aussaresses ensinou tortura a oficiais brasileiros, chilenos e de outros países da região e se dizia amigo do general Figueiredo e do delegado Sérgio Fleury, do DOPS. 

Todos esses fatos, hoje mais ou menos esquecidos, nos lembram que o que ocorreu no Brasil dia 8 de janeiro de 2023, o golpe militar que não chegou a acontecer no final de 2022, a trama jurídica para impedir Lula de disputar as eleições em 2018, o golpe contra Dilma em 2016, e as manifestações de 2013, têm a ver com a impunidade de torturadores e assassinos da ditadura militar cujo início completará 60 anos oficialmente dia 31 de março. Ou 70 anos, se considerarmos o manifesto dos generais contra Getúlio Vargas, em 22 de agosto de 1954. 

(*) Geógrafo, Mestre em Políticas Públicas

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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