Opinião
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15 de fevereiro de 2024
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07:30

A filosofia e seus pacientes (por Franco Nero Antunes Soares)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Franco Nero Antunes Soares (*)

Faz tempo que não ia a tantas consultas médicas quanto fui ano passado. Ao longo desse período, através de dois episódios de bronquite, descobri que havia uma intrusa no meu estômago produzindo outra inflamação: gastrite. Sobre esta última enfermidade, depois de quase dois meses de tratamento, espero apenas que a senhora Helicobacter pylori tenha feito o check-out das minhas entranhas. Digo “espero” porque a confirmação desse adeus ainda precisa de evidências empíricas – que serão coletadas em breve.

O mais interessante, entretanto, dessa minha peregrinação, que incluiu também diversos exames, não foi a própria peregrinação, mas o interesse dos médicos pela minha profissão.

Nas primeiras consultas, sempre chega a hora na qual o doutor pergunta o que seu paciente faz da vida; eu imagino que essa questão seja corriqueira porque revela elementos importantes para que o diagnóstico leve em conta também causas ambientais que possam interferir na saúde física ou mental das pessoas. 

E não é que, mais uma vez, e agora em uma cidade diferente, pude constatar certo interesse dos médicos pelo fato de eu ser professor de filosofia. Não sei ainda identificar a razão dessa curiosidade, mas tenho minhas suspeitas. Talvez ela seja inspirada pela consideração grega antiga da filosofia como “medicina da alma” – tal como aparece, por exemplo, nos textos de Marco Aurélio e Sêneca. Darei abaixo dois exemplos dessa reação médica que observo quando digo que minha profissão é ser professor, e professor de filosofia. As duas ocorreram na minha peregrinação do ano passado.

Após ouvir a resposta sobre qual era minha profissão, um dos médicos me disse que era admirador do Voltaire e que estava tentando ler o Tratado sobre a tolerância. No fim das contas, depois de algumas palavras sobre liberdade de expressão e iluminismo francês, que levaram bem mais tempo que a consulta em si, fiquei de enviar a ele por e-mail uma cópia em PDF do referido livro, o que fiz prontamente – esse foi um dos assuntos de nosso próximo encontro.

O outro caso que quero contar acho mais surpreendente. O médico, também professor, um senhor de quase 70 anos, perguntou o que eu achava de ensinar filosofia para adolescentes. Sou professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), e nos IFs os professores geralmente têm turmas tanto do Ensino Médio, com adolescentes, como do Ensino Superior, com adultos. Disse a ele que era uma experiência gratificante, pois eu podia observar os efeitos que o estudo da filosofia produzia na mente dos jovens. Entre esses efeitos, disse, estavam o desenvolvimento da capacidade de refletir criticamente sobre suas próprias ideias filosóficas. Essa qualificação de criticidade precisa ser acrescentada ao processo de reflexão porque refletir é algo que pode ser feito de modo acrítico. A reflexão crítica inclui basicamente identificação, análise e avaliação das razões que temos para defender as crenças que temos e que defendemos. Em uma aula de filosofia no Ensino Médio, isso deve ser feito coletivamente, o que leva aos debates nos quais ideias filosóficas são apresentadas, defendidas e atacadas. Se consideramos que muitas de nossas crenças básicas são o que sustentam nossas visões de mundo (e, principalmente, os valores éticos supostos por tais pontos de vista, ou que deles se seguem), então não é difícil imaginar o impacto que aulas de filosofia podem ter na subjetividade de pessoas cujo período da vida é caracterizado pela ebulição física e mental. Assim, em resumo, disse ao gentil médico que dar aulas de filosofia me permitia observar o desenvolvimento da subjetividade dessas meninas e rapazes que se defrontam coletivamente com questões tão íntimas e difíceis. Observar esse desenvolvimento é gratificante porque permite ver jovens seres humanos melhorando sua capacidade de pensar com autonomia, de maneira crítica e organizada.

Sempre depois de dar esse tipo de resposta sobre o que penso em relação ao ensino de filosofia para adolescentes me vem à mente a ideia de que não fui completamente honesto e que supervalorizei a minha profissão. Penso que precisaria ter dito que não são todos os estudantes que conseguem desenvolver ou aperfeiçoar as habilidades que descrevi acima como associadas ao estudo da arte de Platão e Aristóteles. Porém, fico pensando também que talvez falar sobre essa limitação não seja tão necessário, pois uma das coisas mais importantes que aprendi dando aula para adolescentes é que, em certo sentido, a filosofia é uma disciplina como outra qualquer: alguns estudantes vão gostar e outros não. E, como em qualquer outro componente curricular, aqueles estudantes que gostarem das aulas de filosofia estarão mais motivados a se envolverem no processo de aprendizagem e, por outro lado, os que não gostarem, não se envolverão tanto, ou se envolverão tendo a nota como único objetivo.

Por que falar sobre motivação escolar é importante? Porque me parece que o desenvolvimento genuíno das habilidades filosóficas dos adolescentes ocorre de fato naqueles que gostam da aula de filosofia – ou seja, naqueles estudantes que são envolvidos pelos processos de aprendizagem propostos pelo professor, o que talvez possa não ocorrer em outros componentes curriculares do Ensino Médio.

Agora, o que fazer para estudantes se sentirem motivados às aulas de filosofia?

Em primeiro lugar, a observação me mostrou que há uma estreita relação entre as notas e a motivação dos estudantes adolescentes para as aulas (e mesmo para estabelecer relações positivas com o professor). Não há receita mais eficaz para aquele professor que queira ser amado por seus jovens alunos e alunas do que dar sempre notas altas. Com notas altas a tendência é que todos fiquem felizes. Mesmo aqueles poucos estudantes que reconhecem não aprender o que deveriam, gostam da ideia de terem mais tempo para se dedicarem a outros componentes curriculares e, por isso, deixam de lado qualquer insatisfação com a aula ou com o professor. Não deveria ser assim, a meu ver, e trabalho em sala de aula para que não seja, mas as avaliações são motivo de pânico entre a maioria de meus estudantes. Não chega a surpreender, portanto, que a certeza de notas altas distensione o ambiente e garanta suspiros, sorrisos e admiração ao professor ou à professora. O problema é que a questão fundamental aqui é qual tipo de motivação o estudante terá nessa situação e a que objetos suas inclinações estão dirigidas. 

Estou preocupado com a motivação a estudar filosofia (ou, talvez, qualquer outra disciplina) que satisfaça a meus objetivos de aprendizagem. E, nesse caso, acho que posso dividir os estudantes em três tipos. 

Preciso dizer, previamente, que, de modo geral, existem fatores amplos e interativos que contribuem à intensidade da motivação e da curiosidade dos estudantes adolescentes: o contexto familiar, o clima pedagógico geral da escola, as características psicopedagógicas particulares dos alunos e as habilidades do professor de se relacionar com os estudantes e de apresentar os conteúdos, entre outros.

O primeiro tipo de aluno é dos que não se sentem motivados a estudar. A tendência desses alunos é que eles também não gostem ou não se envolvam com as aulas de filosofia, exceto se conseguirem desenvolver com o professor algum tipo de relação em outros assuntos, como música ou esportes. Porém, mesmo no caso de haver algum envolvimento com o professor, ele não será suficiente para o estudante desenvolver as habilidades filosóficas previstas nos objetivos de aprendizagem. Nesses casos, muito da motivação do estudante depende de alguns dos elementos que listei no parágrafo anterior e que não estão sob o controle direto do docente – e que estão mais sob a responsabilidade de quem faz a gestão pedagógica da escola. 

O segundo tipo engloba aqueles que estão motivados a estudar e cuja tendência é também gostar de filosofia. Eles se sentirão motivados a estudar especialmente se tiverem as melhores notas da turma, ainda que para eles a filosofia seja apenas mais uma no cardápio que lhes é oferecido. A questão da nota é importantíssima aqui, pois esse tipo de aluno pode ficar muito decepcionado com o resultado de uma avaliação diferente da idealizada por ele – ainda mais em filosofia! Não que isso faça o estudante abandonar os conteúdos do componente curricular, mas, de seu ponto de vista, pode azedar completamente a relação com o professor, em muitos casos de maneira irrecuperável. Para esses alunos, mesmo que tenham boas notas, também não é claro para mim que todos de fato desenvolvam a autonomia e a criticidade pessoal que deveria surgir do ensino de filosofia. Talvez aqui eles também não estejam motivados a estudar pelos motivos certos. 

Há, por fim, estudantes muito motivados a se envolver com as aulas de filosofia – tenham ou não também motivação para outros componentes curriculares. Esses meninos e meninas estão inclinados à reflexão filosófica e percebem a diferença que as aulas de filosofia podem fazer no amadurecimento de suas compreensões de mundo e, além disso, em sua estabilidade e desenvolvimento emocional. Tais estudantes já podem chegar ao primeiro ano do Ensino Médio na condição de amantes da sabedoria ou podem se reconhecer filósofos ou filósofas no decorrer das aulas. Para os estudantes desse último grupo, as notas não são o mais importante, pois eles valorizam sobretudo o envolvimento com os conteúdos e com as aulas. São desses estudantes que tiro as evidências para as respostas otimistas que dou sobre o ensino de filosofia, como a que relatei acima de minha conversa com o segundo médico. O grande desafio, portanto, do professor de filosofia em particular, e da gestão educacional em geral, é fazer com que os estudantes dos dois primeiros tipos migrem para o terceiro. 

Em resumo, para não me alongar ainda mais, é função do professor e da professora de filosofia tentar motivar todos seus estudantes a se envolverem com as aulas. Para isso, precisam ter em mente que os estudantes são diferentes e que essas diferenças importam do ponto de vista motivacional. Além disso, precisamos reconhecer que a filosofia não vai encantar a todos. Nem todos vão chegar a conclusão socrática de que uma vida sem filosofia não vale a pena ser vivida. E talvez seja isso que encante médicos e médicas que mostram espanto quando me revelo professor. Talvez esses especialistas da saúde reconheçam que deveriam ter se dedicado mais a leitura filosófica, para se tornarem melhores profissionais, ou admitam para si mesmos que essas leituras tiveram uma influência fundamental sobre o tipo de profissional (ou de pessoa) que se tornaram.

(*) Professor de Filosofia do IFRS, Doutor em filosofia pela UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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