Opinião
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21 de novembro de 2023
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06:23

Como a Europa subdesenvolveu a África (por Milton Pomar)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Milton Pomar (*)

Museus europeus exibem “na cara-dura” obras de arte e relíquias de grande valor histórico que foram roubadas de seus países de origem, após vitórias militares de invasores ou venda ilegal, nos últimos 200 anos ou mais. Em maior ou menor quantidade, todos os museus das capitais europeias – e dos Estados Unidos (EUA) – têm peças roubadas em seus acervos, de ex-colônias e de países ocupados por suas tropas, na África, Ásia, Caribe e Américas do Sul e Central. 

Com a proibição de comércio de bens culturais de propriedades ilícitas estabelecida na Convenção da Unesco, de 14/11/ 1970, mais e mais pessoas foram se dando conta do absurdo que é a ala “Egito” do Louvre, por exemplo, com o que foi roubado do país por tropas napoleônicas. Idem no Museu Britânico, no qual os resultados dos saques dos oficiais de suas majestades são mostrados como troféus. Essa verdadeira aberração tem sido debatida e, aos poucos, resultado em vitórias pontuais, com a devolução, por museus dos países “desenvolvidos”, de relíquias obtidas de maneira criminosa para os países aos quais realmente pertencem.

O melhor desse debate é a conscientização, por milhões de pessoas, de que essa é a menor parte da dívida dos “países desenvolvidos” (EUA e países europeus) com os países “em desenvolvimento” e “subdesenvolvidos”, principalmente os da África. O que ocorreu realmente nas relações entre esses países, desde antes da Revolução Industrial, e porque os africanos tiveram seu desenvolvimento tão prejudicado. Ou, para ser mais preciso, “Como a Europa subdesenvolveu a África” – título do livro do historiador e professor universitário Walter Rodney, lançado pela editora Boitempo em 2022. 

Rodney desenvolve seu raciocínio em seis capítulos: desenvolvimento econômico; como a África se desenvolveu antes da chegada dos europeus; a contribuição da África ao desenvolvimento capitalista da Europa, antes e durante o colonialismo; a Europa e as raízes do subdesenvolvimento africano até 1885; e o colonialismo como sistema de subdesenvolvimento da África. 

Em sua apresentação do livro, a também professora e escritora Ângela Davis, ativista norte-americana com seis décadas de militância política, destaca a importância desse “intelectual militante”: “Com Walter Rodney, aprendemos que contestar os pressupostos capitalistas, profundamente arraigados na natureza e no progresso humanos, é uma das tarefas mais importantes de teoristas e militantes que planejam desmantelar as estruturas e ideologias do racismo.” 

Davis conclui convocando à ação: “As pessoas que, entre nós, recusam-se a admitir que o capitalismo global representa o melhor futuro para o planeta e que a África e o anteriormente denominado Terceiro Mundo estão destinados a permanecer para sempre assentados na pobreza do ‘subdesenvolvimento’ estão diante dessa questão crucial: como encorajar críticas radicais ao capitalismo – tão essenciais às lutas contra o racismo – e, ao mesmo tempo, avançar no reconhecimento de que não podemos vislumbrar seu desmantelamento enquanto as estruturas racistas se mantiveram intactas? Nesse sentido, cabe a nós seguir, desenvolver e aprofundar o legado de Walter Rodney.”

E Rodney é cirúrgico: “Discutir o comércio entre africanos e europeus nos quatro séculos anteriores ao domínio colonial, é, na prática, discutir o comércio escravista.” – Para isso, é importante complementar com os números que às vezes faltam em sua obra (“Uma das incertezas diz respeito à questão básica de quantos africanos foram transportados para ao exterior.”), que hoje podem ser encontrados com facilidade na Internet, complementando lacunas naturais, em sua obra, elaborada no final dos anos 1960, quando não existiam ou não estavam disponíveis as estatísticas necessárias.

Para a realidade das Américas, é importante acrescentar à sua análise Europa-África números da participação nefasta do Brasil e dos EUA no tráfico de escravos dos países africanos. No caso dos EUA, de 1619 a 1860 a evolução populacional foi de 20 pessoas para cerca de 10 milhões – que teriam trabalhado sem receber pagamento um total estimado de 410 bilhões de horas. E o Brasil, que recebeu cerca de cinco milhões de pessoas escravizadas (a maior quantidade do mundo), para trabalhar em minas e em fazendas, carece ainda descobrir quais famílias naquele período foram beneficiadas com o trabalho não-remunerado (quantos bilhões de horas?): latifundiários, mineradores, industriais e comerciantes que enriqueceram com o trabalho escravo. – Quem, onde, quando…? 

Durante quatro séculos os países europeus (e depois também os EUA) saquearam a população economicamente ativa da África. No tocante à população, Rodney cita estimativas de que a Europa teria 103 milhões de habitantes em 1650, e a África 100 milhões. Enquanto a Europa aumentou a sua população, para 144 milhões (1750), 274 (1850) e 423 (1900), a África teria se mantido nos 100 milhões até 1850, e atingido 120 milhões em 1900.

Por uma grande ironia da História, no século 21 a Europa está em colapso populacional, e a África em expansão: até 2100, passará dos atuais 1,2 bilhão de habitantes para 4,4 bilhões, contra apenas esperados 646 milhões na Europa (hoje são 738).

Como se diz no popular, “dá um ruim”, durante a leitura desse livro, lembrar-se dos discursos da meritocracia, livre iniciativa, livre comércio, “o que as pessoas precisam é de oportunidade”, educação financeira etc. Lembrar-se, ainda, da enganação que é “O Fim da Pobreza”, de Jeffrey Sachs. Lembrar-se do que se “ensina” nos cursos de Economia e do que não se “ensina” nos cursos de História. Da naturalização dos “países desenvolvidos”, sem escancarar, como Walter Rodney faz, de onde saiu e de que maneiras o imenso “Capital Inicial” que permitiu à Europa (e aos EUA) desenvolver tanto a sua economia, a ponto de proporcionar a grande parte de sua população um padrão de vida muitíssimo melhor do que o da maioria da população mundial. E é inevitável pensar no Brasil, nessa relação Europa-África via Portugal. Quantos dos nossos ricos e muito ricos têm o que têm às custas de milhões de horas de trabalho escravo para os seus antepassados fazendeiros, donos de minas, industriais e comerciantes?

(*) Geógrafo, Mestre em Políticas Públicas

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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