Opinião
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3 de novembro de 2023
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06:18

A presidente do Conselho de Administração do Santander é de esquerda? (por Flavio Fligenspan)

Ana Botín, presidente do Conselho de Administração do Grupo Santander (Foto: Divulgação)
Ana Botín, presidente do Conselho de Administração do Grupo Santander (Foto: Divulgação)

Flavio Fligenspan (*)

Economistas do mercado financeiro seguem, em geral, uma visão ortodoxa da Teoria Econômica, em especial no que se refere às questões fiscais, como a administração das contas públicas, o resultado primário (receitas menos despesas, sem contar os juros da dívida) e a trajetória da dívida; ligam os resultados fiscais de curto prazo à inflação e aos juros básicos, e, as expectativas de evolução da dívida aos juros de longo prazo e ao crescimento.

No curto prazo, se os resultados fiscais são ruins (déficits anuais, por exemplo), haverá pressão de demanda – ao comprar bens e serviços, o setor público aumentará a demanda agregada –, a inflação crescerá e o Banco Central terá que subir os juros, de acordo com as regras do sistema de metas. Já olhando para prazos maiores, se os déficits anuais se acumulam, a dívida cresce e ativa a desconfiança dos seus financiadores (o setor privado), que, diante do risco, exigem uma taxa de juros mais alta. Isto eleva as taxas longas, inviabiliza o investimento privado e prejudica o crescimento. Bem resumidamente, esta é a visão preferencial do sistema financeiro e, por isso, ele sempre prega o arrocho das contas públicas.

Pois bem, depois de uma pressão política forte do sistema financeiro, e para demonstrar responsabilidade com as contas públicas, o Governo Lula divulgou uma nova regra fiscal em substituição ao irracional Teto de Gastos implantado por Temer, nunca efetivamente seguido. A nova regra, denominada “arcabouço fiscal” prevê, já em 2024, resultado primário zero, com a possibilidade de pequenas variações para mais ou para menos, ou seja, não haveria déficit. Feitas as contas, a maioria dos especialistas nas questões fiscais não acredita neste resultado para o próximo ano, e o Ministro Haddad e os técnicos da Fazenda trabalham para conseguir novas fontes de receita na tentativa de chegar ao objetivo anunciado.

O Presidente Lula, que nunca foi um entusiasta de arrocho fiscal e sempre entendeu o efeito dos gastos públicos na economia brasileira – lembre-se do PAC –, declarou em entrevista coletiva no início da semana que está preocupado com este assunto e que acha mais importante o Governo gastar com obras para estimular o crescimento do que seguir rigidamente a meta fiscal programada. É claro que sua declaração teve impacto imediato, causando críticas fortes do sistema financeiro e movimentos diversos em preços de ativos: o índice da Bolsa caiu, o dólar subiu e as taxas de juros de longo prazo também cresceram.

Curioso que, quase ao mesmo tempo, a presidente do Conselho de Administração do Grupo Santander, Ana Botín, também em entrevista coletiva, se mostrou entusiasmada com o futuro da economia brasileira, afirmou que na sua visão o Brasil está diante de um ciclo virtuoso, e que o mais importante é voltar a crescer; as contas públicas se equilibram pelo próprio crescimento. Como?

Já escrevi várias vezes neste espaço que se trata de uma troca no tempo. Uma economia deprimida, com baixo crescimento, em que consumidores e empresas estão retraídos, pode ser estimulada por gastos públicos, especialmente em obras de infraestrutura. Esta política geraria emprego e renda, funcionando como um estímulo à retomada da atividade, inclusive “chamando” o setor privado para realizar novos investimentos. É claro que este gasto público adicional piora o resultado fiscal no curto prazo, mas com o crescimento do PIB as receitas públicas (impostos e contribuições) aumentam nos anos à frente.

Além disso, o indicador dívida/PIB, examinado sempre com muito cuidado pelos financiadores da dívida pública, tende a cair pelo aumento do PIB. Por isso que se diz tratar-se de uma troca no tempo, resultados fiscais piores no curto prazo geram mais crescimento e produzem resultados melhores no médio prazo. Este raciocínio é normalmente criticado pelo pensamento ortodoxo, que o associa com irresponsabilidade e com um pensamento econômico de esquerda.

Observe-se que a premissa para esta política de estímulo via gasto público é de um ambiente anterior de retração da atividade, em que os agentes privados estão sem confiança e receosos de gastar. Ou seja, esta economia está com capacidade ociosa, logo a retomada não ativa forças inflacionárias por excesso de demanda. Qual a alternativa? Esperar o tempo passar para algo acontecer, uma força exógena, que faça o PIB voltar a crescer?

Ora, a presidente do Conselho de Administração do Grupo Santander não quer esperar. Sua posição é clara, mais importante é aproveitar as nossas potencialidades e as oportunidades que o momento da economia internacional nos oferece para crescer, e o problema fiscal se resolve a seguir. Coincidentemente, Deepak Puri, CIO para as Américas do Deutsche Bank, também fez manifestações no início da semana entusiasmado com o potencial de crescimento do Brasil e do México diante do cenário de reglobalização, ainda que não tenha referido nada sobre gasto público. Falas que provocam uma indagação: a presidente do Conselho de Administração do Grupo Santander estaria em linha com o pensamento de esquerda ou ela, junto com o representante do Deutsche Bank, só está preocupada em aplicar a política certa na hora devida e não deixar a oportunidade do crescimento passar?

(*) Professor Aposentado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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