Opinião
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10 de outubro de 2023
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06:16

Percevejos de cama: leito da extrema-direita (Coluna da APPOA)

Reprodução/CNews
Reprodução/CNews

Alfredo Gil (*)

Os preparativos para os Jogos Olímpicos, que devem acontecer na França no ano que vem, têm sido intensos. A expectativa é tal que uma das façanhas é de tornar possível que algumas atividades aquáticas aconteçam no Sena. São 1,4 milhões de euros investidos para retirar séculos e séculos de lixos e sujeiras que este rio acumulou ao longo da história parisiense. Trabalho de formiguinha. 

Porém, um intruso inesperado vem dando muito o que falar desde a semana passada, borrando assim a imagem do país. Ao que se diz Paris e outras grandes cidades estariam infestadas de percevejo de cama. Este fez as manchetes da imprensa local e europeia. O parasita virilizou-se nas redes sociais com imagens, fotos e vídeos nos quais ele é captado em flagrante, instalado no espaço público, nos bancos dos ônibus, metros, nas salas de cinema e teatro. A psicose vem tomando conta da população. Os que podem evitam o transporte coletivo, e outros suspendem os lazeres fora de casa. Os especialistas em desinfestação orientam a população nos numerosos programas de tevê ou rádio e os entomólogos explicam o fundamento, ou não, de tamanha preocupação diante de um inseto que nos acompanha muito antes da era cristã.

Os relatos das pessoas que tiveram que enfrentar este parasita em suas residências são alarmantes. Apesar de não ser um transmissor de doenças, as consequências podem ser graves até o momento de erradicar completamente o bicho. O custo moral e financeiro pode ser alto. 

A crise que este pequeno vampiro desencadeou obrigou o governo a tomar algumas medidas interministeriais. Mas isso não é o que nos interessa.

Pois, se os estragos podem ser desastrosos para os lares contaminados, sobretudo para os que não têm recurso financeiro para combater o parasita, exigindo medidas governamentais importantes, esta praga veio revelar como o debate midiático e político está profundamente infestado por um outro parasita infinitamente mais nefasto que o percevejo de cama, que é a extrema direita. 

Ela vem contaminando a democracia francesa. Além do partido de extrema direita, Rassemblement National ( RN, ex-Front National ) liderado pela família Le Pen, vários analistas políticos observam – e mesmo alguns representantes da direita denunciam – as afinidades ideológicas do governo do presidente Emmanuel Macron com a ala do RN. Por vezes, seu governo é capaz de ultrapassar o partido tradicional de extrema direita, no terreno de predileção destas facções que é a política imigratória. Ou seja, se mostrando mais ao extremo que a extrema Le Pen. Foi assim que o atual Ministro do Interior, Gérald Darmanin (cria direta do ex-presidente Nicolas Sarkosy), num debate com Marine Le Pen, afirmou que ela anda “mole” em suas considerações sobre os imigrantes, e que ela deveria “tomar algumas vitaminas”. 

É neste contexto quase obsceno, em que o imigrante encarna todos os males, que o inimaginável aconteceu, ou seja, assistiu-se no canal CNews, na semana passada, em horário nobre, uma proposição de causalidade entre percevejos e imigrantes: e se a presença massiva destes explicasse a invasão daqueles ?  Aqui, um lembrete ao leitor: CNews pertence ao bilionário Vincent Bolloré a quem devemos a produção, em poucos meses, de modo laborioso,  nas eleições do ano passado, de um outro candidato de extrema direita, além da Marine Le Pen, chamado Eric Zemmour. Então, foi no  programa do jornalista Pascal Praud que, entrevistando um especialista sobre a contaminação dos percevejos de cama costurou num passe de mágica, na mesma frase, o “problema” da “presença massiva” de imigrantes com o parasita, o percevejo de cama. “Gostaria de perguntar se não são as pessoas (os imigrantes) que não têm as mesmas condições de higiene dos que são do solo francês que os trazem (os percevejos de cama) por estarem na rua ? ” 

Não podemos reclamar de falta de coerência na orientação ideológica deste jornalismo que tem estado onipresente na imprensa francesa gangrenada por acionistas que só pensam em seus benefícios e impõem suas visões de sociedade. A promiscuidade entre o uso de um bem comum como a informação, detido por um punhado de empresários e os representantes políticos tem sido descarada. Se um canal como CNews promove a extrema direita, os ministros do governo Macron participam frequentemente de seus programas inflacionando uma política discriminatória e racista.   

A dita coerência deve-se ao fato de que a aproximação entre o estrangeiro e a praga data dos anos vinte do século passado. Charles Maurras, o grande inspirador ainda hoje de um nacionalismo exacerbado e racista, já havia acusado “os judeus do oriente de trazerem os piolhos, a peste, o tifo”. 

Ninguém deseja dormir com percevejos de cama. Porém, o que deveria nos impedir de dormir é a transformação insidiosa no uso da língua, de aproximações perigosas como a do jornalista do CNews que se infiltram cotidianamente em nossas vidas. 

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]  

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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