Opinião
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4 de outubro de 2023
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18:53

Em defesa da Carris e do Transporte Público (por Raul Pont)

Foto: Alex Rocha/PMPA
Foto: Alex Rocha/PMPA

Raul Pont (*)

O prefeito Sebastião Melo (MDB) em artigo assinado na ZH (28/07/2023) foi taxativo: “Desestatizar a Carris é Preciso”. Os argumentos apresentados no texto, no entanto, não possuem a mesma consistência. Ou são generalidades sem nenhuma base histórica real, “o sistema de ônibus já estava falido antes e consolidou o desequilíbrio na pandemia”, ou a ladainha ideológica neoliberal de que “não é mais papel da prefeitura ter empresas”.

Afinal, de quem é a crise? Da Carris ou do sistema? Como fiscalizar e saber a real situação do conjunto, se o outro governo do MDB, do Prefeito Fogaça, entregou para o consórcio das empresas privadas o controle da bilhetagem e da caixa de compensação entre as empresas? Os governos Fogaça (MDB) e Melo (MDB) esvaziaram a EPTC e uma de suas principais funções, o efetivo controle financeiro do sistema.

Qual a fonte do prefeito Melo (MDB) para afirmar que outra razão para “desestatizar a Carris – que custa 20% a mais do que a operação privada e pesa na tarifa do cidadão?”

Para a Carris, basta ser superavitária, ter capacidade própria de investimento, ter equilíbrio orçamentário etc., diferente das empresas privadas, que além disso colocam em suas planilhas taxas de retorno, ou seja, seus lucros. O argumento do prefeito Melo (MDB) é uma declaração de incompetência, pois apenas demonstra a péssima gestão dos diretores que coloca na empresa.

Em seus 150 anos de existência, a Carris viveu grandes transformações. O sistema radial convergindo ao centro histórico construiu o primeiro grande sistema de transporte coletivo da capital e influiu no crescimento urbano dos bairros servidos pelas grandes avenidas radiais. Sua maior crise foi no regime militar e dos prefeitos nomeados quando a malha ferroviária elétrica foi abandonada pelo transporte rodoviário e as linhas tradicionais e mais rentáveis entregues a mais de uma dezena de empresas. Para a Carris sobraram as linhas menos rentáveis, mais difíceis e mais distantes, mas a empresa sobreviveu e continuou cumprindo seu papel no transporte coletivo da capital.

Nos governos da Administração Popular a empresa recuperou o fôlego e com gestões capazes, passou a cumprir um novo papel, principalmente, com o crescente sistema transversal das linhas T. Estas passaram a prestar um serviço complementar ao sistema radial, que já não dava conta do novo perfil do crescimento urbano, permitindo a ligação entre bairros sem passar pelo centro histórico.

Como vice-prefeito (1993/96) e prefeito (1997/2000) de Porto Alegre acompanhei de perto esses processos e sou testemunha da transformação da empresa em excelência de gestão e resultados, graças aos seus diretores e funcionários. A Carris aprofunda seu planejamento, adota modernos sistemas de gerenciamento e qualidade e inscreve-se no crivo do Prêmio de Qualidade da Associação Nacional de Transporte Público (ANTP).

Decide, também, obter certificado internacional de qualidade baseado nas normas do ISO 9000 e, no ano seguinte, a ISO 9002.

Em 1999, a Carris conquista o Prêmio de Melhor Empresa de Transporte Coletivo do Brasil (Prêmio ANTP) concorrendo com empresas públicas e privadas. Em 2001, novamente, a Carris é reconhecida pelo mesmo certame como a melhor empresa de transporte coletivo do país. A empresa estabeleceu uma sólida relação com seus funcionários através do mecanismo de formação profissional e na relação com a cidade, como o Conselho de Clientes, que envolvia a participação das macrorregiões e temática do Orçamento Participativo, grandes usuários como PUCRS e UFRGS e a União das Associações de Moradores de Porto Alegre (UAMPA).

Essa empresa pública que foi a primeira a operar com ônibus adaptados para acessibilidade de pessoas com deficiências, que dotou o transporte coletivo com ar-condicionado e estabeleceu uma relação direta com os seus usuários – na disponibilidade dos boletins informativos da prefeitura, nas campanhas de saúde e na difusão da cultura com os Poemas nos Ônibus –  apresentava números sólidos na virada do século. A frota possuía 285 ônibus, 1650 funcionários, atuando em 21 linhas na cidade, com idade média da frota em 3,8 anos, 21,4% do transporte coletivo da capital e mais de 71 milhões de passageiros transportados no ano de 1999.

A Carris e seus funcionários provaram que são uma empresa viável e necessária a qualquer administração pública comprometida com a população. É o melhor parâmetro, a melhor referência para um efetivo controle de custos das planilhas de referência para o preço do bilhete ao usuário. Se a crise é do sistema, como diz o prefeito Melo, o que justifica transferências e subsídios às empresas privadas? Nada melhor do que transformar todo o sistema em público e transparente, e aí sustentá-lo com tarifas e recursos de outras fontes públicas, democraticamente decididas.

Os últimos governos neoliberais, ditos “inovadores”, não deram continuidade a nenhum projeto para enfrentar a crise ou apresentar alternativas. Não tomaram iniciativas para enfrentar a irracionalidade do transporte metropolitano, nem levaram a cabo o projeto Terminal Triângulo, feito para essa integração naquele eixo de transporte.

O Governo subsidia o transporte sem ter controle de custos e não cobra nenhuma contrapartida, por exemplo, em relação ao uso de ônibus elétricos ou integração tarifária de duas ou mais viagens com o mesmo bilhete. O Governo atual só sabe flexibilizar idade da frota, não exigir ar-condicionado, extinguir o cobrador (fraudando a desoneração da folha para manter emprego), não fiscalizando número de ônibus e tabelas de horário, não regrando o uso de aplicativos, privatizando os estacionamentos públicos rotativos. Ou seja, não gera recursos nem fiscaliza para qualificar o transporte coletivo e quer que o usuário não o abandone. Isso é tão ilusório como esperar que as iniciativas e melhorias atrativas na frota brotem de quem raciocina apenas em diminuir custos e maximizar ganhos.

Por fim, mais uma lembrança, o Plano Diretor de Transporte de Porto Alegre do início do século previa que, em 2020, já estaríamos desfrutando de veículos leves sobre trilhos (VLT) ou ônibus elétricos, aproveitando a malha que a cidade preservou e ampliou com as Perimetrais. Esse é o caminho que o futuro exige.

(*) Ex-prefeito de Porto Alegre

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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