Opinião
|
10 de julho de 2023
|
15:45

Preferidos x Preteridos (por Althen Teixeira Filho)

Alunos sem terra formados em Medicina Veterinária no RS. Foto Divulgação MST RS
Alunos sem terra formados em Medicina Veterinária no RS. Foto Divulgação MST RS

Althen Teixeira Filho (*)

Não usarei os meus conhecimentos médicos para violar direitos humanos e liberdades civis, mesmo sob ameaça”

Juramento Hipocrático

Não existe qualquer crítica ou censura quando alguns nutrem predileção por pessoas bem vestidas, educadas e abastadas. Entretanto, quando essa preferência acompanha uma depreciação e desprezo por aqueles despossuídos, de vestimentas simples e em situação de dificuldades, constata-se então o preconceito e a discriminação.  Uns recebem elogios pelos belos carros, roupas da moda, joias, viagens ou cursos, enquanto outros são tratados como “essa gente”, deles exige-se a autenticidade de “calos nas mãos”, que saibam “dar duro”, além de não fazer “corpo mole”.

Sobre a iniciativa de um curso de medicina para uma “turma especial” oriunda de assentamentos, lembra-se que as universidades públicas brasileiras são mantidas com verbas públicas, elas pertencem a quem paga impostos, ou seja, elas pertencem a todo e qualquer cidadão. Entretanto, deve ser ressaltado que, proporcionalmente, quem paga os impostos mais elevados são os mais pobres, eis que a tributação sobre o consumo é muito elevada. No Brasil as grandes fortunas não sofrem taxação diferenciada e milionários não pagam IPVA sobre bens de luxo, como jatinhos, aviões, helicópteros, barcos, motos aquáticas e iates. Ainda, a tributação sobre grandes heranças é muito baixa e a da terra é insignificante.

Se tais fatos forem transpostos para a questão agrária no Brasil, entende-se porque esse tema não pode ser analisado na superficialidade, pois significaria estupidificar-se com a distorcida, mentirosa e milionária propaganda midiática, financiada por aqueles que se enriquecem com verbas públicas, acumulando fortunas que são contadas em bilhões de Reais.

Da mesma forma, esse debate sobre uma “turma especial agrária”, também não pode ser apoiado e desenvolvido, a priori, exclusivamente em opiniões pré-concebidas, mas, antes de mais nada, em informações fidedignas, caso contrário não chegaremos a lugar nenhum. Então, a proposta aqui é trabalhar a “justiça no campo” (agronegócio de um lado versus agricultura familiar, degradação ambiental, saúde humana e animal do outro) e quem merece o quê, com fatos advindos de indicadores financeiros, além de resultados de reuniões de instituições isentas, de aspectos políticos e, é claro, de questões legais!

Assim, no âmbito econômico, alardeiam-se impedimentos para atender tal turma, tendo em vista presumíveis dificuldades financeiras do Estado. A bem da verdade as verbas existem, mas são destinadas prioritariamente para “ricos e poderosos”. Esse é o caso, entre inúmeros outros exemplos, do R$ 1,2 trilhão enviado como verba suplementar aos bancos em 2020, objetivando auxiliar pessoas e empresas com problemas financeiros durante a pandemia. Entretanto, desse total os banqueiros repassaram apenas 4% do valor para servir tal propósito, e o resto, possivelmente, foi enviado para cofres já transbordantes.

No campo dos impostos, fica a informação de que, em 2017, os “empresários agrícolas” exportaram US$ 96 bilhões, pagando reles R$ 38 mil em impostos, menos que o preço de um carro popular seminovo. Segundo o Fórum Paulista de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos, se toda a receita tributária arrecadada no país fosse “colocada numa cesta, o setor agropecuário e de celulose representaria 0,2% desses tributos arrecadados”.

De outro lado, os agricultores familiares feirantes, além de taxações nas vendas de seus produtos em feiras livres, também são impedidos de vender vários de seus próprios produtos alimentícios de fabricação caseira, sob a alegação de que poderiam ocasionar doenças. Concomitantemente, para o agronegócio é permitido e incentivado o uso de centenas de toneladas de venenos agrícolas e transgênicos, os quais ocasionam inúmeros males, além de mortes indiretas e diretas com grande sofrimento.

Ainda em 2017, as empresas químicas de venenos deixaram de pagar quase R$ 10 bilhões somente com isenções e reduções de impostos (acesso: ).

No RS, em 2016, mais uma vez sob a justificativa de “baratear alimentos”, esses potentes venenos receberam só de ICMS uma isenção de R$ 182 milhões. Também no RS, as nossas qualificadas pradarias, gramíneas, fontes hídricas e a subsistência da agricultura familiar estão sendo destruídas por sojicultura de exportação e lavouras de árvores, tudo com incentivo e apoio do governo gaúcho e de entidades do setor agronegocial.

Ainda no confronto desses segmentos agrícolas, o governo federal informou que o Plano Safra 23/24 (verba pública) repassará R$ 364,22 bilhões aos empresários do agronegócio, enquanto a agricultura familiar receberá R$ 71,6 bilhões. Essa é mais uma comprovação de que a agricultura familiar não faz parte do agronegócio.

Identifica-se, assim, um financiamento cinco vezes menor para os que põem o alimento na mesa dos brasileiros, do que para os agronegociantes exportadores – bancos, grandes plantadores, empresas de grãos transgênicos, de agrotóxicos, de celulose, especuladores do setor agrícola, alguns invasores e outros “empresários”.

Essas empresas de celulose, também denominadas de “pasteiras”, querem aumentar a área de plantio de lavouras de árvores no RS, sob a alegação de que trarão desenvolvimento ao Estado. Entretanto, registre-se que elas: a) também não pagam impostos na exportação do seu “produto”; b) geram desemprego ao afastarem o homem do campo e no campo, tendo em vista o período de sete anos de latência para o crescimento das árvores; c) após a colheita, levam embora a riqueza hídrica e mineral, além de exterminam a vida biológica do solo; d) destroem e depredam quase que irreversivelmente a região pampeana; e) desenvolvem atividades que geram intoxicações no campo e cidades; f) são um exemplo inequívoco de um “Brasil colônia”, já que exportamos produto primário e sem valor agregado, que é a pasta de celulose (por isso “pasteiras”), sendo que, só em 2019, o Brasil importou US$ 850 milhões em papel.

Como a lista é longa, opta-se por abreviá-la.

O agronegócio é só um negócio, em que os presumíveis saldos positivos da balança comercial ocorrem por conta de apoio de verbas públicas (como visto acima), isenções fiscais (como visto acima) e privilégios do Estado (como visto acima)!

Esse sistema acumulativo absolutamente injusto, desleal, anticivilizatório e desumano fez com que, agora a nível mundial, o 1,1% dos mais ricos detenham 45% da riqueza mundial (ainda pagam menos impostos e recebem financiamento público), enquanto os 54% mais pobres retenham somente 1,3% dessa mesma riqueza!

Alcançando a área da saúde, afinal a proposta é formar pessoas que se comprometerão (e se comprometeram) com o “Juramento de Hipócrates”, reunião do Ministério Público Federal (MPF) em 2019, em Brasília, concluiu que, apenas em 2018, o Brasil deixou de arrecadar pelo menos R$ 2,07 bilhões de Reais com a isenção fiscal concedida aos agrotóxicos. Nesse mesmo período, foi constatado que cada dólar gasto com defensivos agrícolas gerava um custo de até US$ 1,28 na saúde, somente para o tratamento de casos de intoxicações. O MPF ainda informou que “desde a década de 80, foram notificados mais de um milhão de episódios de intoxicações por agrotóxicos no país, à cuja exposição aumentam os riscos de câncer, doenças crônicas, além da incidência de aborto e de malformações congênitas”, entre muitíssimas outras patologias.

Oportunamente, uma reflexão: Como a pergunta de hoje não é se agrotóxicos ocasionam doenças, mas sim quais doenças que eles não ocasionam, então por que conselhos regionais (medicina, veterinária, agronomia, biologia, de advogados e outros) não se preocupam em alertar, e até coibir o uso de agrotóxicos, já que comprovadamente definham e debilitam a própria espécie humana, e ainda exterminam vários seres da natureza, como abelhas, fauna edáfica e pássaros? Em crianças, já estão comprovados cânceres, distúrbios endócrinos, neurológicos, malformações fetais, puberdades precoces, alergias, autismo, contaminação do leite materno e outros.

Por que o silêncio, falta de compaixão, piedade e omissão para com as crianças?

No campo político, deputados e senadores da denominada bancada ruralista manifestam-se depreciando “essa gente” (MST e assentados), e fazem CPI para investigar supostos financiamentos irregulares de governos e “invasões” de terras. Entretanto, quando da implantação do Código Florestal Brasileiro, o Congresso Nacional tomou a iniciativa de isentar de multas desmatadores por crimes ambientais (alguns do próprio Congresso), fazendeiros que também respondiam por processos judiciais por crimes contra o meio ambiente, além de infratores processados por manter trabalhadores em condições análogas à escravidão. O valor total do perdão das multas aplicadas pelo IBAMA somou R$ 8,4 bilhões.

Aliás, o trabalho escravo é outra das marcas do agronegócio, mas sem esquecer, é claro, o “dia do fogo”!

Sobre as “invasões” de terras, as ocupações do MST são justificadas, no sentido de forçar a implementação da reforma agrária que a Constituição Federal exige (a colocação é feita como um fato). De outro lado, o relatório “Os invasores: quem são os empresários brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas” (04/2023), mostra que agronegociantes produtores de grãos e pecuaristas invadiram um total de 199,5 mil hectares, uma truculência sobre terras indígenas (a colocação é feita como um fato). Entre as grandes empresas nacionais e internacionais citadas como invasoras estão a Bunge, Amaggi, Bom Futuro, Cantagalo e Terra Santa.

Tantos e tantos incentivos ao agronegócio são justificados, porque esses venenos incrementariam a produção de alimentos, visando “matar a fome do mundo”. Entretanto, durante o período pandêmico, em que pessoas sentiram fome a ponto de se alimentarem de restos de ossos e carnes descartadas como lixo pelos frigoríficos, não se tem notícia alguma que esses agronegociantes tenham enviado qualquer saca de grãos para os famintos. Porém, nesse mesmo interim, há relatos do envio de toneladas de alimentos (arroz, feijão, farinha láctea, suco orgânico, leite, laranja, outros) advindos de assentamentos da reforma agrária, e cuja ação conjunta os colocou como os maiores produtores de arroz orgânico na América Latina (produção sem agrotóxicos).

Por fim, mas não por último, fica a análise baseada na Constituição Federal.

No seu Capítulo III – Da Educação, da Cultura e do Desporto, na Seção I – Da Educação, o Art. 205 impõe que: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Desta forma, a Carta Magna não discrimina pessoas, privilegia grupos, ou isenta o Estado frente a presumíveis dificuldades financeiras para a obtenção desse direito. Também não elenca questões de origem de qualquer cidadão, experiência na área ou sequer exige “calos nas mãos”.

Então, se basta ser brasileiro para ter acesso à educação, fica o entendimento de que o Estado tem responsabilidades, com deveres inarredáveis e inadiáveis, atuando na recuperação dos escombros universitários, resultado direto dos últimos seis anos de descasos e agressões.

Nossas instituições vivem uma gravíssima crise, certamente um dos piores momentos que já passamos, com uma absoluta falta de verbas, de pessoal e de equipamentos. A situação catastrófica e de desestímulos atingem com dramaticidade um ápice jamais imaginado de abandono e desprestígio. O próprio Ministério da Educação notabilizou-se por ministros quase analfabetos, outros que tiroteavam em aeroportos ou acusados de negociatas em ouro com “religiosos” para a construção de templos suntuosos (outros com isenções fiscais para o acúmulo bilionário de fortunas).

A Universidade pública enfraqueceu e debilitou-se a tal ponto que nos impediu de oferecer a formação qualificada que gostaríamos aos jovens que nela estudam. Ainda sofremos os impactos de um governo que atuou destruindo estruturas do Estado, e com especial predileção pela educação. O ensino deve receber com urgência a atenção minimamente necessária, e com aportes de verbas expressivos, visando o soerguimento da educação!

No retorno ao texto constitucional, nota-se que esse não responsabiliza isoladamente o Estado pela educação, mas também chama a colaboração e incentivo da própria sociedade. Ou seja, se problemas impedem o acesso de jovens aos bancos universitários, que esses entraves não sejam usados como desculpas para enxotarmos as futuras gerações, mas que sirvam como fator de mobilização na busca de soluções.

Voltando ao Capítulo III, mas agora no Art. 207 do texto constitucional, esse afirma que: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

Isso significa que aos cidadãos e entidades de classe é repassado o direito e dever de cobrar das Universidades uma formação qualificada de seus estudantes (ensino), que participe e impulsione o progresso científico do país (pesquisa), assim como atente para a população em aspectos assistenciais específicos e de orientação através de hospitais escolas, vacinações, postos de saúde (extensão). Mas isso não lhes dá a autoridade de exigir prazos de manifestação, ou muito menos impor que as Universidades não cumpram o seu dever e exigência constitucional, que é desenvolver o ensino!

Não existe bom senso ou racionalidade em exigir algo que desrespeite a lei!

Quando a Constituição trata da “Ordem Social”, Da Saúde, no Art. 196, ela ordena: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário”.

Embora esse princípio seja lido de forma vesga por alguns, há de se refletir, sobre como poderia a Universidade cumprir tal determinação de proteger a saúde, sem que ocorra a formação de novos profissionais nessa área da saúde?

Entende-se, assim, que essa formação de médicos cabe às Universidades, respeitando e amparando os anseios de toda e qualquer pessoa que deseje estudar, enquanto que a orientação, distribuição e destino dos mesmos cabe à sociedade e a políticas de governo. O que não pode ocorrer, como exemplo, é que pacientes necessitem ser deslocados de uma cidade para outra, em busca de atendimentos traumatológicos ou cirúrgicos. Impossível aceitar que postos de saúde e prontos-socorros estejam lotados, com pacientes em macas, outros deitados no chão, aguardando em longas filas e várias horas pela assistência que necessitam e merecem ter! Muitos preferem ir numa farmácia e perguntar para balconistas o que podem tomar para aliviar determinada dor ou mal estar.

Agora, algumas reflexões pessoais.

Sobre a argumentação da necessidade de “igualdade de condições” para entrar numa universidade, é importante perceber que tal “igualdade” não reside no fato de distribuir a mesma prova para todos resolverem, mas sim que todos estejam preparados intelectualmente de forma igualitária para resolverem a mesma prova. Aliás, é outro respeito ao princípio constitucional do Art. 206 (Capítulo III) que impõe “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”.

Ademais, “preparo” e “inteligência” são questões diferentes. É claro que um campesino, que necessita cuidar da horta, do gado, da colheita, que mora longe da escola e ainda ter tempo para estudar, não tem o mesmo preparo daquele urbano dedicado exclusivamente ao estudo. Entretanto, em hipótese alguma pode-se aquilatar qual deles teria superioridade de inteligência e, importante, esse detalhe também não é fator de escolha, eis que os bancos universitários acolhem todos aqueles que querem estudar e aprender.

Ademais, retirar propositadamente de outrem a possibilidade de aprender, de progredir ou de qualificar-se intelectualmente, fica entendido como mesquinho e desprezível!

Ainda, um último e irônico confronto.

De um lado, um setor financeiro/agronegocial agressivo, com financiamentos bilionários, gerando destruição ambiental, intoxicações, angústias e mortes. De outro os campesinos, os que mais sofrem com essas intoxicações e mortes, os maiores produtores de alimentos para a população, mas que são impedidos de progredir, de desenvolver exatamente o conhecimento médico que poderia lhes salvaguardar a vida, além de reconhecer e denunciar os gravíssimos impactos desse sistema de produção baseado em venenos agrícolas.

Defende-se o poderoso agressor; ataca-se o fragilizado agredido!

Educação é um direito universal e frequentar uma universidade é receber uma dádiva da vida (ainda mais em países como o Brasil). É trabalhar o presente preparando-nos para um futuro melhor, fazendo com que o aprimoramento individual transborde para o coletivo. Ela é a mola maior e impulsionadora do progresso, da civilização, da cultura, da cidadania.

Fica aqui entendido que é desumano dizer a um jovem, a qualquer jovem, que ele não tem direito de acesso à educação porque não gostamos de onde ele vem, do que ele é, ou do que ele representa.

E esse é o fato, é o cerne, que muitos não têm coragem de assumir: não gostam desse grupo, alcançando a atitude de tentarem impedir o progresso dos mesmos!

Essa preocupação e sensibilidade que todos deveriam ter com os semelhantes é chamada de empatia, um dos atributos que distinguiria a espécie humana dos demais animais no nosso longo e lento processo evolutivo.

O termo “Universidade” tem origem no latim “universitas”, “universitatis”, significando “universalidade”, “totalidade”, indicando que ela não pertence a pessoas, grupos ou entidades; ela pertence a humanidade!

A “Universidade” é uma entidade “Universal”, caso não fosse assim, chamar-se-ia “particularidade”!

Terra, trabalho, alimento, saúdeça e universidade para todos!

(*) Professor Titular / Instituto de Biologia / Universidade Federal de Pelotas (UFPEL)

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21

 


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora