Opinião
|
15 de julho de 2023
|
19:04

O povo como abstração, o mercado como deus e a democracia a serviço dele (por Jacques Alfonsin)

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Jacques Távora Alfonsin (*)

Sob o título de “Lula, o democrata”, a Zero Hora do dia 10 deste julho publicou um artigo do empresário Roberto Rachewsky, no qual ele atribui ao mercado praticamente  tudo o que há de bom, embora não mencione nem a justiça nem a responsabilidade, como indispensáveis para o que a os mesmos fins d compra e venda. Ele identifica o povo como uma “abstração”, “os indivíduos devem ser livres para agir de acordo com o seu próprio julgamento”, criando e mantendo valores que permitirão a “busca da felicidade num processo que deve ocorrer no mercado, não através do Estado”. Dá como exemplo os Estados Unidos que, segundo a sua opinião, não se constitui numa democracia, mas sim como uma “República Constitucional”, que teria sido definida por Benjamin Franklin, um dos pais da Declaração de Independência daquele país em 1776, como “dois lobos e uma ovelha decidindo o que haverá para o jantar”. Daí a o alarme do articulista pela conduta do presidente Lula recebendo “tiranos”, como Maduro, da Venezuela.

 Mesmo a primeira vista, existem muitas razões para se contestar o artigo desse empresário, especialmente no que constitui sua “receita de felicidade”, como virtude do mercado. Se o povo é uma abstração e se a felicidade só pode ser conquistada no mercado, aí já aparece uma primeira contradição no raciocínio de fé do articulista. Não há como compreender-se um objetivo, ainda mais do desejo de ser feliz, que não tenha um sujeito, no caso o povo por ele considerado abstrato. Ao qualificá-lo sob tal “intangibilidade,” ele certamente deve estar se referindo ao povo pobre porque esse, sem dinheiro, não compra nem vende, assim pode ser descartado como abstrato, inexistente para o mercado. A ausência completa de justiça social e ética, só por isso, já marca o mercado do articulista como poderoso promotor da infelicidade, bem ao contrário do que ele afirma.

 Em sentido oposto à receita do empresário, do tipo que o mercado absolutiza como um deus garante de “vida, liberdade e busca da felicidade”, o teólogo da libertação Jon Sobrino, por exemplo, a primeira medida que recomenda é justamente retirar o povo da abstração a que o articulista de ZH o condena:

Pôr nome: salvar da não-existência. Hoje se repete que, no regime feudal havia escravos e, na revolução industrial, proletários, e se recorda que suas vidas eram cruéis, porém visíveis. Agora se passou para a não visibilidade do pobre. Fala-se – sem pestanejar, dos excluídos, aqueles para quem não há lugar – ironia máxima e, sobretudo, hipocrisia da globalização, na qual, por definição, deveria haver, pelo menos, lugar para todos. E a não-visibilidade gera, logicamente, a insensibilidade, que coloca os pobres no seu lugar natural, como diria Aristóteles: um horizonte distante, vago, sem rosto, entre irreal e macabramente exótico; uma espécie de xeol moderno. É a não-existência.” (Fora dos pobres não há salvação. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 56.  Grifos do autor).

Ou seja, o mercado “divino”, dador de felicidade, como o identifica o empresário Rachewsky, não é para todas as pessoas. É classista, discriminatório, econômica e politicamente antidemocrático. Aliás, como ele mesmo se trai ao preferir a chamada “República Constitucional” dos Estados Unidos como superior à nossa democracia, pois essa, segundo ele afirma, nunca funcionou em lugar nenhum, submetida “aos caprichos das massas ou à força bruta, revestida de vontade majoritária.” Aquela República “limita o processo democrático, submetendo-o aos direitos individuais inerentes à condição humana: vida, liberdade e busca da felicidade, como consta na Declaração e Independência de 1776.”

Isso “justifica”, portanto, o caráter sacrificial do deus mercado, pois revela explicitamente que a “felicidade” proporcionada pelo mercado não é para todas as pessoas, descarta as massas por sua força bruta, certamente vendo aí, seguramente, só o povo pobre, esquecido da força bruta que o mercado tem por descarta-lo. Constitui um decreto despido de prova histórica, também, o fato de a “Republica constitucional” que vige nos Estados Unidos, segundo a opinião odo empresário, ser superior à nossa democracia, pela razão dos limites que ela faz dos direitos supra lembrados.

Ele pinçou, fora do seu contexto, – e isso pode até lançar suspeita de que o artigo do empresário busque enganar leitoras/es, na base da publicidade enganosa tão ao gosto do capital – a Declaração norte americana. Pois essa não deixa no ar os direitos e valores mencionados no artigo dele, prescrevendo logo depois do que ele não copiou o seguinte: “Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a Segurança e a Felicidade.”

Ao contrário da intangibilidade, portanto, como o articulista identifica o povo, esse aí parece bem tangível e poderoso. Ademais, basta fazer uma simples comparação da Declaração norte-americana com a do preâmbulo da nossa Constituição federal de 1988, para se comprovar que a última é muito mais abrangente, determinada e prática: “…instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.”

Direitos sociais, justiça como valor supremo, isso não aparece na fração do texto da Declaração norte-americana lembrada pelo senhor Rachewsky. Só a referência aos direitos sociais, na nossa Constituição, expressamente previstos ali, impugna todo o texto do empresário. Delegar somente ao mercado, a vida, a liberdade e a busca da felicidade, como ele defende, é uma receita de morte e não de vida, comprovada, aliás pela mesma ZH, logo depois da publicação do artigo ora criticado. Na dição do dia 13 deste julho, o retrato dessa tragédia num país capitalista como o Brasil, que o articulista quer submetido ao deus mercado, está contando com 21,1 milhões de pessoas sem ter o que comer todos os dias.

 Um escândalo dessa magnitude não dá para esconder a urgência de serem enfrentadas e removidas as suas causas, nem colocado exclusivamente nos ombros do Poder Púbico a responsabilidade para fazer isso. Se terra, teto e trabalho, como tanto insiste o Papa Francisco, são condições indispensáveis para a alimentação do povo e a garantia dos direitos sociais, aqui o capital e o mercado dominam com folga todos esses meios de vida, sem outro interesse que não   do interesse próprio de “crescer” na apropriação deles, impedindo progressivamente o acesso do povo pobre à satisfação de suas necessidades vitais que depende deles. Um retrato fiel do que cria de maus efeitos pode ser visto por quem se identifica com as suas vítimas:

“A absolutização do valor é a exigência da morte do homem para que viva o valor. O valor se transforma na expressão de um fetiche, um Moloc. Em sua forma absolutizada, o valor tem sempre essa forma: deixa o homem morrer para que viva o valor. Tem a forma admissiva, não ativa. Entretanto, transforma-se na forma ativa frente ao homem que não aceita a sua morte em função do valor absoluto. Assume a forma: “mata-o”.  HINKELAMMERT, Franz. As armas ideológicas da morte. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 334

Que ideologia sustenta tudo isso como receita de felicidade garantida pelo deus pai capital que domina o deus filho mercado? Uma boa resposta foi dada pelo padre José Comblin e arremata muito bem o que submetemos agora à crítica das nossas leitoras e leitores:

“A nova classe de “analistas simbólicos” trabalha com cifras. Eles trabalham com dinheiro. Não trabalham com pessoas” {…} “A produção, o Estado, a política, a vida social, tudo está a serviço do jogo do dinheiro. As elites, que vivem separadas do resto da humanidade, são politicamente irresponsáveis. Não devem prestar contas a ninguém. São os tiranos da sociedade contemporânea. Nunca terão má consciência porque, afinal, tudo é jogo. Um dia a gente perde, outro dia a gene ganha. Uma sociedade de jogo total é a melhor base para uma economia neoliberal.” (HINKELAMMERT, Franz. As armas ideológicas da morte. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 334)

Note-se, então, que essa é uma tirania internacional, globalizada, bem pior do que aquela da qual ele acusa o presidente da Venezuela e a democracia que nos aguarda sob a presidência de Lula. Por tudo isso, tem-se de concluir que a pior das alternativas, para a felicidade da vida louvada pelo articulista, é a de sufocar a indignação ética que ela provoca e resignar-se.  Felizmente, existem muitas outras que não caem do céu do deus pai capital e do deus filho mercado, apregoadas pelo empresário Rachewsky. São alcançadas pela organização do povo, especialmente daquele que ele considera “abstrato”, “intangível”, na verdade, o pobre. Aliás, como os Foruns Sociais Mundiais, o primeiro deles realizado em Porto Alegre, por sinal, já mostraram a viabilidade de 13 (treze), delas, pelo menos, descritas por quem as conhece e sabe como coloca-las em prática, porque também conhece bem o poder do adversário delas:

“1. Resgatar a dimensão pública do Estado; 2. Refazer as contas; 3. Assegurar a renda básica; 4. Assegurar o direito de ganhar a vida; 5. Reduzir a jornada de trabalho; 6. Favorecer a mudança do comportamento individual; 7. Racionalizar os sistemas de intermediação financeira; 8. Taxar as transações financeiras; 9. Repensar a lógica dos sistemas tributários; 10. Repensar a lógica orçamentária; 11. Facilitar o acesso ao conhecimento e às tecnologias sustentáveis; 12. Democratizar a comunicação; 13. Resgatar a capacidade pública de planejamento.” ( DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia literária, 2017, p. 279/292)

Difícil? Evidentemente. Viável? sim. Mas quem começa não precisa esperar.

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora