Opinião
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25 de julho de 2023
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06:44

Nada acontece até acontecer: a burocratização da indiferença e a instrumentalização do desamparo (Coluna da APPOA)

Foto: Gilson Mafacioli/Arquivo pessoal
Foto: Gilson Mafacioli/Arquivo pessoal

Volnei Antonio Dassoler (*)

Os estudiosos e leitores aficionados da literatura encontram na obra clássica A Odisseia a narrativa da longa jornada de aventuras que o protagonista, Ulisses, precisou enfrentar para alcançar seu propósito de retornar a casa. Deste poema épico atribuído a Homero deriva a acepção figurada do termo odisseia, utilizada para designar um tipo de experiência intensa com características de aventura, marcada por peripécias e acontecimentos variados e atípicos. 

Para nos contrapor à condição trágica de seres mortais, itinerantes e nada extraordinários, arquitetamos um arranjo sintomático que condensa lei e desejo oferecendo-se como um roteiro para nossa pequena odisseia no cálculo de possíveis obstáculos e imprevistos. Com efeito, a experiência – aquilo que acontece em nós – assume a prerrogativa de vir a ser vivida por qualquer um e em qualquer tempo e espaço. Jorge Larossa, filósofo e educador espanhol, a conceitua como sendo algo relativo ao que nos passa, ao que nos acontece, ao que nos toca. Não ao que se passa, não ao que acontece, nem ao que toca.  

Nada acontece até acontecer. Ora se trate do encontro amoroso da vida, da oportunidade profissional desejada ou da gravidez improvável; ou, ainda, do adoecimento repentino, da perda de alguém querido, da demissão do trabalho ou até de um acidente. A vida, animada pela vigência do desejo – silencioso e imortal –, requer a existência de alguns pontos de referência que têm a função de acolher o sujeito em seu desamparo errante antes de enviá-lo de volta a seu itinerário pelas veredas do mundo. Nada acontece até acontecer. Mas… e quando acontece, o que podemos fazer? Com quem podemos contar? A promessa da Constituição garantida pelo Estado brasileiro é para todos?

Duas breves cenas são elucidativas acerca do referido acima. Atordoado pela necessidade de cuidar da mãe com quadro demencial, o homem busca atendimento em um serviço de saúde mental. Lá pelas tantas menciona seu exame de próstata, referindo que estaria numa lista de espera, aguardando ser chamado para consulta com o especialista, há um ano. Na simplicidade cultivada pelo silenciamento estratégico imposto pela burocracia, o paciente desconhecia a gravidade do quadro. Quem de nós discordaria quanto a que a evolução do quadro para uma provável metástase teria uma responsabilidade compartilhada a ser discutida? Em situação traumática, a mulher busca atendimento porque se envolveu num acidente de trânsito que resultou em uma vítima fatal, sendo ela a motorista. A mesma alega que estava dirigindo em baixa velocidade por conta da chuva e que teria perdido o controle porque o carro entrou num buraco que estava encoberto pela água. Cabe, então, pelo menos duas questões quanto à responsabilização do ocorrido: a suposta imperícia da motorista associada às condições climáticas seria a causa do acidente ou o recorrente abandono das estradas seria uma prova irrefutável de outra ordem de responsabilidade? Tal como interroga a pena crua e poética de João Cabral de Melo Neto na saga retirante de Morte e Vida Severina, os casos descritos acima seriam de morte morrida ou de morte matada? 

A história de uma única pessoa se mostra, por si só, um recurso metodológico suficiente de explicitação da orientação ética, política, estética e epistemológica do jogo de poder que permeia a realidade brasileira afetando desigualmente seus cidadãos. Nesse horizonte permeado pelo imaginário, o gênero, a raça, a religião e a classe são marcadores sociais submetidos à hierarquização que faz com que nem todas as pessoas usufruam igualitariamente da garantia de direitos e do acesso a eles. 

Territórios como educação, saúde, judiciário e assistência social, que têm o ser humano como protagonista, são alguns dos ambientes propícios para acolher estes acontecimentos que testemunham pequenas odisseias. Para tanto é imprescindível que estejam abertos e disponíveis para dar lugar ao indeterminado e seus efeitos: só assim essa dimensão de experiência poderá advir. 

De uma ótica estrutural mais ampla, o pacto civilizatório diz respeito a qualquer ordenação da vida coletiva; ele é tramado pela renúncia pulsional e pela restrição de liberdade em diferentes graus em favor da convivência coletiva e em troca de certa dose de satisfação subjetiva obtida no nosso universo particular. Quando aplicado à realidade brasileira, identificamos a Constituição Federal de 1988 (constituição cidadã) como a versão atualizada desse acordo. Todos nós, brasileiros e brasileiras, somos signatários/as do compromisso contido na Carta com a democracia, a garantia dos direitos humanos e dos direitos sociais como a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, a segurança, o lazer, entre outros. 

Mesmo no contexto democrático nem toda morte morrida foi morte morrida; algumas recobrem mortes matadas. Tal cenário opera pela instrumentalização do desamparo, em especial, nos espaços institucionais de poder, ao acentuar a responsabilidade individual como forma de proteger aqueles que são negligentes com a função legal de garantir o cumprimento do pacto civilizatório da constituição. 

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Doutor em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). [email protected] 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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