Opinião
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21 de junho de 2023
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09:24

Dez anos de impactos da ‘revolução colorida’ derivada de junho de 2013 (por Ricardo Dathein)

Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Ricardo Dathein (*)

Dez anos depois das chamadas jornadas de junho de 2013 pode-se tentar um balanço de alguns aspectos ou consequências econômicas e sociais daquele fato que pode ser considerado um marco, ou detonador do que veio nos dez anos seguintes. Uma revolta colorida que se transformou em uma revolução colorida, com todas as consequências políticas, econômicas e sociais, além de morais.

Em primeiro lugar, o que ocorreu não surgiu do nada. O contexto econômico e político internacional foi impulsionador e havia as novas redes sociais. Mas havia também uma piora da estrutura econômica e ocupacional nacional (desindustrialização e perda de complexidade econômica) que vinha desde os anos 1980 e que não se conseguiu reverter, o que minou as bases sociais da democracia. A nova realidade, de uma sociedade dominada por latifundiários, especuladores e pequenos burgueses, tende historicamente para a extrema direita. Com essa deterioração da estrutura econômica, a taxa de lucro média da economia já vinha declinando, acirrando os conflitos. Mais, com a economia dependente da produção e exportação de commodities agrícolas e minerais, o país teve sua performance determinada, cada vez mais, pela conjuntura internacional, perdendo dinamismo endógeno. E a partir de 2011 iniciou-se um forte processo de diminuição dos termos de troca internacionais para o Brasil.

Há, portanto, o fracasso do social liberalismo iniciado no final dos anos 1980, um sistema ideológico amplamente dominante no qual a sociedade (via o Estado) renuncia ao comando sobre a economia, mas há avanços sociais, mesmo que limitados pelo baixo dinamismo econômico. Isso formou as bases para uma revolta antissistêmica de direita, pois até parte substancial da esquerda aderiu ao social liberalismo.

A partir de 2013 o Brasil entrou em uma crise de múltiplas dimensões. Um elemento importante é o forte crescimento de burocracias estatais liberais (judiciário e militares, entre outros), super empoderadas e com visão tecnocrática, ao mesmo tempo em que a burocracia ligada à esfera produtiva estatal definhava (na administração direta e nas estatais). A operação Lava Jato, cujo objetivo último era reestabelecer a liberdade e o “direito” à corrupção por parte das classes dominantes, surgiu nesse contexto e tem papel fundamental no processo de destruição da economia e da democracia. Essas classes se consideram proprietárias do Estado, portanto com direito a usufruí-lo (ou melhor, saqueá-lo), direito esse que estava em risco pelas iniciativas do governo da época.

 Os gráficos seguintes ilustram o que ocorreu nos dez anos posteriores a 2013 em relação aos dez anos anteriores, sendo alguns dados para 2021 e 2022 estimativas. O PIB por habitante, que havia crescido tendencialmente 34% de 2003 a 2013, regrediu quase 5% de 2013 a 2022 (ver gráfico 1). Se antes, desde os anos 1980, já ocorria regressão econômica relativa (em relação à média mundial, aos países desenvolvidos e aos principais países não desenvolvidos), a partir de 2013 a regressão passou a ser absoluta. Assim, ao invés de superarmos o subdesenvolvimento, ou diminuirmos a distância em relação aos países desenvolvidos, a partir de 2013 o subdesenvolvimento ampliou-se.

A produtividade do trabalho é fundamental indicador sobre a dinâmica do desenvolvimento. Enquanto essa cresceu 25% de 2003 a 2013, decresceu 5% desse último ano até 2022 (ver gráfico 2). Os crescimentos de 2020 e 2021 foram efeitos estatísticos da saída em massa de mão de obra da população ocupada por conta da pandemia, principalmente nos serviços de baixa produtividade. Em 2022, com a forte reentrada desses trabalhadores no mercado, a produtividade caiu muito, mostrando a “realidade”. Esse é o retrato de um mercado “comandado” pelo agronegócio, pelo rentismo e pelo empreendedorismo economicamente inviável.

A taxa de investimentos do Brasil tem sido muito baixa, insuficiente para gerar amplo e duradouro dinamismo econômico. Mesmo assim, havia crescido para cerca de 22% do PIB até 2013 (gráfico 3), com o estímulo de políticas, das estatais e do governo. No entanto, principalmente após 2015, passou a vigorar um ultraliberalismo que cortou os estímulos vindos do Estado. Há uma recuperação nos anos mais recentes, mas ainda muito aquém do necessário. Os investimentos estatais líquidos inclusive foram negativos em anos recentes, o que significa deterioração da infraestrutura e, portanto, crescimento dos custos para a produção.

Esses investimentos insuficientes explicam a dinâmica negativa da produtividade do trabalho. É claro, se os empresários investem muito pouco, o capital não se renova, não se amplia, o aprendizado no trabalho estanca e a economia não cresce, a demanda por mão de obra qualificada é pequena. Ou seja, a mão de obra sofre as consequências.

Essa economia cada vez menos complexa, mais dependente de produção e exportação de commodities, com baixos investimentos, gera uma fraca demanda por mão de obra no mercado formal. Enquanto de 2003 a 2013 os empregos formais cresceram 66%, em 2021 ainda eram inferiores aos níveis de 2013 e 2014 (ver gráfico 4). Temos um mercado de trabalho com débil dinamismo causado por insuficiência de complexidade e sofisticação produtiva. Essa complexidade é cada vez mais concentrada em poucos setores, sem disseminação na economia, e, em contraposição, há uma multidão de pequenos empreendedores com baixíssima produtividade e sem capacidade de investimento. Portanto, não temos desemprego causado pelas novas tecnologias. Ao contrário.

Os salários médios anuais cresceram 34% de 2003 a 2013 e, após, reduziram-se 14%, quase sistematicamente (gráfico 5). Isso reflete a dinâmica estagnada da produtividade e a criação de empregos ou ocupações cada vez com pior qualidade.

Por fim, contrariamente às outras variáveis, a massa de lucros estimada cresceu nos anos recentes, 22% após a redução com a crise de 2015 e 2016. Especialmente em 2021 e 2022 elevaram-se substancialmente (gráfico 6). As reformas feitas sob os governos Temer e Bolsonaro (reforma trabalhista, da previdência e privatizações), além da política de austeridade fiscal, tiveram o objetivo justamente de recuperar a rentabilidade do capital via concentração de renda, isso em um dos países mais desiguais do mundo. Além disso, a pandemia e a elevada inflação foram essenciais para reduzir o poder de compra dos trabalhadores, o que aparece nos dados dos anos 2021 e 2022 do gráfico 5.

Assim, antes de 2013, lucros e salários aumentavam simultaneamente. No entanto, após 2013, como resultado da revolução colorida, os lucros começaram a crescer enquanto os salários passaram a se deteriorar.

Portanto, pode-se ver com nitidez a mudança de trajetória. O ano de 2013 foi um ponto de inflexão econômica, além de política e moral ou de valores civilizatórios. A revolução colorida dirigida pela direita conseguiu alcançar seus objetivos, enfraquecendo a classe trabalhadora e permitindo que o excedente econômico fosse apropriado em proporção cada vez maior pelo capital. Com produtividade estagnada, PIB per capita em queda, poucos investimentos, ocupações precárias e salários em queda, o excedente passou a ser ainda mais concentrado. Ou seja, o dinamismo de nossa economia, que já possuía sérios percalços, piorou muito, revelando a dificuldade de nossa sociedade em resolver seus obstáculos estruturais. Por outro lado, revelou a capacidade das classes dominantes resolverem seus problemas privados.

Trata-se de uma regressão histórica, talvez sem volta. Não é apenas fruto de um projeto de subdesenvolvimento, regressivo, mas inclusive um retorno, para parte substancial e crescente da população, a uma inserção pré-capitalista, em atividades de subsistência e/ou dependentes permanentemente de auxílios governamentais. O capitalismo brasileiro pode conviver perfeitamente com essa estrutura social. É uma pena, em um país com o potencial do Brasil. Tal o desafio, revoltar-se contra esse projeto com um plano progressista, de mudança estrutural.

(*) Professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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