Opinião
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28 de junho de 2023
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08:50

A destruição da casa de Dyonélio Machado e a política da amnésia cultural (por Jonas Dornelles)

Casa onde Dyonélio Machado viveu no bairro Petrópolis, em Porto Alegre. (Foto: Luiza Castro/Sul21)
Casa onde Dyonélio Machado viveu no bairro Petrópolis, em Porto Alegre. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Jonas Dornelles (*)

Trago no título algo que ainda não aconteceu, mas que poderia: A destruição da primeira casa própria de Dyonélio Machado, na qual ele viveu momentos cruciais de sua trajetória. Situada no bairro Petrópolis, muito perto de onde viveu Érico Veríssimo e Cyro Martins no mesmo período, a década de 1940. Pensemos na importância desses escritores, todos vindos do interior e responsáveis por textos fundamentais de nosso modernismo literário, se encontrando pelas ruas do Petrópolis, vizinhos a poucas quadras um do outro. 

Leia mais: Casa do escritor Dyonélio Machado corre risco de ser demolida em Porto Alegre

A casa desses três escritores forma, junto com outros tantos referentes artísticos do bairro, o que levou a organização de uma rota cultural, cuja experiência integrou a 6ª edição das Caminhadas da Jane (Jacobs) em Porto Alegre. A ideia da caminhada foi apresentar a vida desses três escritores até sua chega ali na residência, sua experiência enquanto morou na casa, e os rumos de sua produção literária naquele período. Se outras grandes capitais possuem as suas rotas culturais, por que não podemos assegurar que também tenhamos as nossas?

Deve-se destacar a importância dessa residência, para a memória do escritor, pois não é pouca. Projetada e construída ao longo de 1942, o próprio Dyonélio Machado revisou e orientou aspectos de sua concepção arquitetônica. O escritor veio a habitá-la em um momento fundamental de sua trajetória: lembremos que desde sua prisão como liderança grevista da Aliança Nacional Libertadora em 1935, seus dois anos de prisão e anistia em 1938, Dyonélio buscou recuperar sua dignidade humana e retomar seus direitos enquanto cidadão. Sua mudança para a casa própria, financiada pelo IPE, órgão do funcionalismo público do Estado. Sua mudança para a casa, próxima de Érico e Cyro, é como um recomeço, uma virada de página. 

A construção da casa coincide também com a publicação de O Louco do Cati, seu aguardado romance após o premiado Os Ratos. Será nesse endereço que escreverá Desolação (1944) e Passos Perdidos (1946), assim como Deuses Econômicos, que tomará dez anos de trabalho e pesquisas históricas, e cujo manuscrito será concluído em 1956 (Dyonélio só conseguirá editora para publicá-lo dez anos depois). Nessa residência, irá produzir também alguns trabalhos como ensaísta: Neurose traumática (1943), Eletroencefalografia (1944) e Os fundamentos econômicos do regionalismo (1945).

Será na Rua Souza Doca, número 131, que Dyonélio Machado será eleito deputado estadual pelo Partido Comunista Brasileiro em 1947, participando da elaboração da constituição estadual daquele ano, com contribuições na área da saúde pública. No ano seguinte terá seu mandato cassado, junto com o conjunto dos políticos eleitos do PCB, devido a perseguição anticomunista que seguia no Brasil, mesmo depois da ditadura do Estado Novo já ter acabado. Ainda assim, em 1956 será diretor do Hospital Psiquiátrico São Pedro, implementando uma série de melhorias, naquele que era um dos maiores centros de tratamento para doenças mentais da América Latina de seu tempo.

Depois da publicação de Passos Perdidos em 1946, Dyonélio Machado ficará vinte anos sem publicar livro algum, sendo que a primeira edição de Deuses Econômicos em 1966 sairá com falhas e será recebida com insatisfação por seu ator. Mas por volta dessa época, um processo de recuperação de sua memória será iniciado, crescendo até os anos 1970, quando Dyonélio será “redescoberto” e terá reconhecimento público por sua produção, com vários originais sendo publicados e premiados, até sua morte em 1985.

Considerando então os muitos agravos que a sociedade gaúcha cometeu a Dyonélio Machado, a destruição de sua casa no bairro Petrópolis seria infelizmente, apenas mais um episódio em uma longa série de ameaças editoriais, políticas e policiais. Preservá-la seria uma forma de saldar um pouco nossa dívida, para com esse escritor e ator político fundamental na história da resistência no Estado.

A casa é então dos locais da memória de Dyonélio Machado, talvez o mais significativo. Mas não esqueçamos que foi ele quem nos deu Os Ratos, um dos mais potentes retratos da luta periférica de nossa cidade, com seu cotidiano de enfrentamentos no centro de Porto Alegre. Aos olhos atentos, há sempre Naziazenos nos arredores do Mercado Público, há décadas sobrevivendo a uma cidade que não faz sentido e os oprime.

É também que mesmo o Mercado Público, não deixa de ser um ponto de memória do escritor. Afinal, se os irlandeses tem seu “Bloom’s Day”, dia em que celebram a odisseia de vinte quatro horas de Leopold Bloom na Dublin do Ulysses de Joyce, não seria demais sugerir que tenhamos também nossas próprias 24 horas literárias, um “Dia de Naziazeno” que nos relembre ano após ano a importância da imaginação literária, para compreensão crítica do espaço urbano e seus dilemas.

“Esse texto é o primeiro de uma série três, que serão publicados como parte da campanha Salve Dyonélio Machado, que busca assegurar o inventariamento da casa, assim como evitar a demolição da casa onde o escritor morou por décadas no bairro Petrópolis. Acesse @salvedyonelio (Instagram) para mais informações e materiais de divulgação.”

(*) Doutorando em Teoria da Literatura pela PUCRS e pesquisador de vida e obra de Dyonélio Machado. Responsável pela página no Instagram Salve Dyonélio Machado (@salvedyonelio), que visa preservar e ressignificar a casa do escritor gaúcho no bairro Petrópolis. Como poeta, publicou recentemente o livro Sinais de Fumaça (2022, Editora Bestiário). Email: [email protected].

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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