Opinião
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30 de abril de 2024
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07:06

Instantes de memória, histórias de amor (Coluna da APPOA)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Robson de Freitas Pereira (*)

“Ya sé, siempre soy yo/andar siempre buscando/.
y siempre volviendo a tu corazón”
(Fito y Spinetta)

“And a man’s life is no more than to say one.” (Hamlet, ato5, cena2).

O tempo de modificar uma percepção é quase instantâneo. Num momento tínhamos uma ideia, no instante seguinte nos damos conta que agora trata-se de outra coisa. Entre o instante de ver e o momento de concluir muita coisa pode acontecer. Instant-Taneas . Passei mais de trinta anos entendendo o título desta música como algo enigmático, com elementos misteriosos. Afinal Instant- Taneas pronunciado assim, com esta divisão de sílabas tão acentuada (ouçam a canção ¹), me ressoava Tanatos (e Eros), até mesmo um pouco Tannus (o destruidor de mundos do universo Marvel). O intrigante era pensar como uma música tão melódica e amorosa podia referir-se a estes elementos que aludiam ao desaparecimento e a separação. 

Levei muito tempo guardando, ou com estas impressões que retornavam quando escutava a canção, de tempos em tempos. Afinal tratava-se de uma gravação num álbum ² de dois artistas queridos: Fito Paez y Luis Alberto Spinetta (el Flaco Spinetta que depois da série sobre Fito ³ ficou maior ainda). Pois, outro dia, fui surpreendido. Quando a música entrou nos alto-falantes, por obra do algoritmo que selecionou títulos aleatoriamente em meus arquivos, me dei conta que se tratava de uma escansão, um recurso poético/musical para falar de “Instantaneas”, como fotografias que se faziam com polaroides em outros tempos, ou flashes de memória da cidade, de uma relação amorosa que perdura apesar das brigas, ou mesmo alguém que se foi permanentemente. Instantâneos, fragmentos poéticos de vida onde traçamos bordas nos dias sem sol, nas margens da separação e na persistência do amor. Vide os versos iniciais e outros: “Instant-Taneas de la calle/Veo una separacion, un choque, un estallido, una universidad

hay um chico que se escapa, um toro, uma señora, um cielo, um capitán.” Ou ainda: “ yo sigo com vos/ sabes, se hace difícil seguir anclado aqui sin tu amor../

Capitán y Olmedo foram grandes personagens da cena cómico/artística da Argentina, Rosario em particular. Fito dizia que gostava tanto de Olmedo que interrompia suas gravações ou qualquer outra atividade para assistir o programa de Olmedo na televisão. Chegou a compor uma homenagem quando ele faleceu: Tema de Piluso.  Além disto, não nos esqueçamos que Fito e Spinetta eram admiradores de John Lennon, autor de Instant-karma.

La,la ,la é o título do álbum conjunto lançado em 86. Algumas de suas canções figuram em coletâneas dos dois artistas desde seu lançamento. Tornaram “clássicos” da canção popular, del rock argentino y latino-americano. Movimento do qual o Brasil faz parte, pelas articulações e parcerias que muitos artistas brasileiros e castelhanos sustentam há anos. Entre tantas iniciativas, o festival El Mapa de todos demonstrou isso de forma magnífica várias vezes.

Despedidas; a elaboração dos lutos faz com que associemos com perdas anteriores, um futuro anterior rememorado nos detalhes, nos instantâneos que surgem quando estamos caminhando ou fazendo qualquer outra coisa. Para mim, algumas cidades como Buenos Aires são uma referência, como o Rio de Janeiro, de onde escrevo agora, minha cidade natal. Lembro de “los maestros” e dos amigos com quem compartilho momentos de vida [4]. Meu pai que nasceu no Pará, sempre amou o Rio, para onde veio adolescente e se considerava carioca. Hoje divido com meu irmão a vista do Morro Dois Irmãos e conversamos sobre nossas memórias.

De volta a Instan-Taneas. Este retorno me ajuda a dissipar certa tristeza, ou nostalgia de um lugar onde estive e outros onde nunca estive e tenho saudades. Coisas da vida e dos sentimentos. Ajudou a ressignificar tanatos e colocá-lo em seu devido lugar. O escuro de nosso tempo pode ser atravessado como uma nuvem, ou um dia nublado, ou uma tempestade na estrada. O mal-estar da cultura que habitamos e que nos habita é impossível de apagar completamente. Mas há que “vivir para contarla”, como escreveu Gabo Márquez e cantar de forma que o peso se dissipe e a chuva às vezes possam ser lágrimas que o céu nos oferece.

Assim que as associações iniciais não estavam tão longe: a presença da ausência de lugares e das pessoas é cantada em forma lírica e fragmentada por memórias que num instante, no piscar de olhos, no estalar dos dedos fazem uma fulgurância. Podemos dizer que o amor permanece, mesmo na ausência. 

[1] Para ouvir acesse aqui  ou aqui

[2] La,la,la”, EMI, 1986 (relançado em 2007).

[3] “El amor Después del amor”, no Brasil “Amor e música” (2023), série da Netflix.

[4] Agradeço a Daniel Paola e Osvaldo Arribas as contribuições preciosas sobre Olmedo, rock argentino, y tantas outras histórias.

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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