Opinião
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2 de maio de 2023
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10:36

Sobre a formação do economista e o papel das universidades: mudar o que, mudar pra que?

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Hélio Afonso de Aguilar Filho (*)

Os cursos de Economia vêm sendo pressionados a alterarem seus currículos, no sentido de adaptá-los às novas necessidades da sociedade, dando conta, ao mesmo tempo, do desinteresse e evasão crescentes por parte dos estudantes. Mas o problema vivenciado pelos cursos de Economia são parte de um problema maior, que acomete a própria Universidade. 

As universidades como as conhecemos, voltadas à investigação, formação e domínio e cultivo do saber humano, datam do século XII. Nos últimos anos, sua importância tem sido questionada no Brasil e no mundo, não só pela comunidade externa mas pelos próprios acadêmicos, que veem diminuídos o escopo, bem como o prestígio de seu trabalho. Somadas à incapacidade de atender as demandas de um mercado de trabalho em rápida mutação, está a angustiante perda de autoridade diante de um mundo que sofre também rápidas transformações; onde as novas formas de comunicação e interação produzem conteúdos informativos quase instantaneamente.

Mas qual o sentido maior da Universidade neste novo mundo? Tradicionalmente, sua contribuição foi delineada para abarcar o tripé Ensino, Pesquisa & Extensão. Minha resposta foca na questão do conhecimento que, de algum modo, perpassa os três. Aqui, tomo conhecimento como sinônimo de crenças confiáveis. Em um contexto em que as redes sociais se formam e produzem novas crenças sobre o mundo, onde a produção de fake news, o negacionismo e as teorias conspiratórias dividem o mesmo espaço com teorias científicas consagradas, é importante pensarmos em mecanismos que aumentem a proporção de crenças confiáveis em relação ao conjunto de crenças da sociedade. Outras instâncias tradicionais lutam para a produzir e validar conhecimentos, como a pesquisa privada patrocinada pelas grandes empresas, ou a pesquisa corporativa militar; a diferença com relação à contribuição da Universidade é epistemológica.

Há razões para crer que o sistema de ciência colegiada adotado nas universidades aumenta o estoque de conhecimentos confiáveis da sociedade. Como? A pesquisa acadêmica na forma de artigos científicos, baseados na revisão por pares anônimos, constitui-se na estrutura de incentivos apropriada para conciliar o autointeresse do pesquisador e o bem público que é o conhecimento. Onde prevalecem os interesses privados exclusivamente, como na pesquisa das empresas comerciais, é forte o incentivo em exagerar resultados positivos ou minimizar os efeitos negativos do uso de certas descobertas. Propagandas veiculando o consumo de produtos como café e cigarro à saúde e bem-estar são exemplos mais recorrentes, há também o caso de alguns medicamentos, defensivos agrícolas e conservantes químicos. 

Na Universidade, o conhecimento não é gerado apenas na pesquisa e disponibilizado nos periódicos, é transmitido em sala de aula, na medida em que os saberes acumulados e filtrados a partir da pesquisa na fronteira do conhecimento passam a ser incorporados aos materiais didáticos. O processo é lento, mas mostra que ensino e pesquisa se conectam de algum modo. A Extensão é uma conquista mais recente, e aponta para o esforça da Universidade de ir além muros, buscando trocar saberes de modo complementar e não hierarquizado com o público externo não universitário.

Novamente, aqui reside o questionamento principal aos cursos de Economia, que é quanto ao descolamento completo dos conteúdos produzidos em relação às necessidades da sociedade, principalmente aquelas refletidas pelo mercado de trabalho. Em outros termos, a Economia falha em produzir seu próprio capital humano. Isto é um problema, já que de um ponto de vista mais substantivo, o objeto da Economia é o estudo da própria dinâmica da vida econômica; o curso seria, neste sentido, acusado de não entender o que estuda e de não cumprir a oferta, entregando um produto diferente do anunciado.

Um argumento alternativo sustenta que os cursos universitários e de Economia não falham na formação do aluno, pois não há nenhuma relação entre os conteúdos genéricos aprendidos em sala de aula e o aumento da capacidade técnica do trabalho. No caso, o diploma seria apenas uma forma de sinalização da produtividade intrínseca do estudante, uma forma de se diferenciar para o contratante em um mundo onde a informação é assimétrica. Acredito que o aluno egresso da Universidade é, de fato, mais produtivo, e o que explica essa maior produtividade não é tanto os conteúdos aprendidos, e sim os meios envolvidos na formação universitária, os quais incluem metodologias e disciplina de estudo. No linguajar gasto do marketing, pode-se dizer que a contribuição da Universidade é mais em processos do que em produto

Se o diferencial da Universidade é em processos, ou seja na formação de capacidades mais do que em informações, pode-se objetar que o esforço em adequar os conteúdos às necessidades do mercado seria um aditivo, um bem a mais. Não me oponho completamente a isto, contudo, é difícil determinar o conteúdo necessário para ser competitivo em um mercado em rápida transformação, ou seja, a sociedade bem como a informação mudam, mudando o que é relevante. Dito de outro modo, o estoque de conhecimento requerido por um trabalhador, instituição ou empresa competidora hoje não é o mesmo que o de dez anos atrás, e assim segue. Esta seria uma boa razão para os cursos de Economia evitarem um ajuste em termos de sintonia fina com o mercado, pois, comportarem-se como uma empresa as fariam perder sua razão de ser.

Se formos falibilistas o suficiente para aceitarmos que não fazemos uma descrição derradeira do mundo, que nosso conhecimento é provisório e muitas vezes falho, então a maior garantia de produzirmos conteúdos que reflitam crenças confiáveis, é defendermos um ambiente acadêmico aberto e plural. Onde os interesses exclusivamente coorporativos ou de mercado prevalecem sem freios e contrapesos, o resultado pode ser uma visão bastante unilateral, se não dogmática, vide as decisões sobre juros no Brasil, baseadas em um consenso praticamente imposto pela autoridade dos economistas do mercado financeiro. Este estreitamento deve, portanto, ser evitado na formação dos economistas.

Por fim, nem a Universidade nem os cursos de Economia precisam estar insulados da sociedade, desconsiderando mudanças necessárias. Mas, em um mundo em que não vivenciamos a emancipação humana, no qual cada indivíduo poderia se dedicar ao campo que lhe aprouver, sem um esfera exclusiva de atividade, a especialização universitária na produção do trabalho intelectual ainda é a melhor garantida contra os extremismos, modismos e histerias coletivas. E isto é não trivial, com o constrangimento da aceleração da informação, que fragmenta a percepção, o tempo requerido pelos processos da Universidade, embora não tão céleres como gostaríamos, contribuem para dar possibilidade de dar tempo ao tempo e resultar em conhecimentos mais robustos e crenças mais confiáveis.

(*) Professor da UFRGS, doutor em Economia pela UFRGS – Ênfase em Economia do Desenvolvimento. E-mail: [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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