Opinião
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1 de maio de 2023
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19:37

Os BRICS e a ‘desdolarização’ (por André Moreira Cunha, Luiza Peruffo e Andrés Ferrari)

Imagem: Pixabay
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André Moreira Cunha, Luiza Peruffo e Andrés Ferrari (*)

O Ocaso do Dólar?

Desde que o dólar assumiu a posição de principal moeda internacional no pós-Guerra, foram inúmeras as especulações de que “em breve” a moeda estadunidense perderia esta posição ou passaria a dividi-la com outras moedas. Nos anos 1960, o economista canadense Robert Triffin apontava para as fragilidades da relação entre o dólar e o ouro. Nos anos 1970, com a ruptura do regime de câmbio fixo derivado do Acordo de Bretton Woods, especulava-se que o dólar perderia a sua força global, percepção que foi reforçada com a internacionalização do marco alemão e do iene japonês nos anos 1980, e com o lançamento do euro no final dos anos 1990.

Após a Crise Financeira Global de 2008 (CFG), as apostas eram não apenas de um declínio do dólar, mas, também, de uma ascensão generalizadas de potências emergentes, em geral simbolizada pelo agrupamento dos BRICS, e que agora se concentram no caso chinês. Analistas estadunidenses flertam com a possibilidade de que desta vez a decadência do dólar pode ser mais do que uma mera ameaça retórica. Think tanks influentes junto ao empresariado dizem que a “desdolarização” já começou. O uso do dólar como arma e as inovações da revolução digital são apontadas como fatores que podem acelerar este movimento

O domínio do dólar tem-se mantido desde os anos 1950, a despeito das oscilações conjunturais e do avanço de outras economias na geração de renda e comércio internacional. Ele reflete o poder do seu estado emissor em múltiplas dimensões. A ascensão de novos poderes, particularmente a China, é percebida pelo establishment estadunidense como uma ameaça ao status quo. Ainda assim, o dólar segue como referência de 80% da dívida pública externa, 2/3 do ativos totais emitidos nos mercados globais, 55% dos empréstimos bancários, e algo entre 40% e 45% dos pagamentos globais e do giro diário do mercado cambial. Sua proeminência é ampla e em muito excede a participação dos EUA no comércio e no PIB global, cujas dimensões atuais oscilam entre 15% e 20%

O elevado apetite global, de investidores e governos, pela dívida pública estadunidense, cria uma fonte extremamente elástica de financiamento para as políticas doméstica e externa do hegemon global, a custos muito baixos. No início de 2023, havia um estoque de US$ 7,4 trilhões (ou 30% do PIB dos EUA) em treasuries na carteira de instituições fora da jurisdição emissora. No final de 2007, aquele montante era de US$ 2,4 trilhões (ou 15% do PIB). Da mesma forma, o total da dívida pública estadunidense como proporção do PIB dobrou nos anos que se seguiram à crise de 2007-2009, o que permitiu o país socorrer seus bancos e empresas, dinamizar seu mercado acionário e realizar políticas anticíclicas robustas, tudo isso sem abrir mão da presença militar no exterior. Em dezembro de 2022, tal indicador chegou a 123% do PIB.

Não à toa há a clara percepção da elite estadunidense quanto à importância de manter a hegemonia do dólar e, com isso, preservar o poder global dos EUA. Lawrence Summers rejeita a ideia de decadência do dólar e critica o que ele entende como uma superestimação do poder chinês. In verbis: “… qualquer pessoa que esteja em busca de estabilidade política, de previsibilidade, de uma adjudicação imparcial e objetiva de suas reivindicações realmente vão manter grandes quantidades de ativos em RMB? … Eu duvido.”

Tyler Cowen, da Universidade de Manson e colunista da Bloomberg, reafirma que é do interesse dos EUA manter a posição do dólar como instrumento hierarquicamente superior nos mercados monetários e financeiros globais. Admite, portanto, as vantagens criticadas pela China, Rússia, Brasil e outros países emergentes e em desenvolvimento. Para Carla Norrlöf, exatamente porque há uma disputa entre poderes estabelecidos e em expansão, os EUA deverão insistir em manter o predomínio do dólar. 

Atualmente, lideranças de países emergentes e em desenvolvimento têm sido mais vocais em suas críticas ao papel internacional do dólar. Uma convergência de fatores parece explicar a nova onda de previsões acerca da decadência iminente do dólar. Com a guerra na Ucrânia, aprofundou-se o uso de constrangimentos financeiros sobre a Rússia, com o bloqueio parcial das suas reservas oficiais e de ativos de propriedade de pessoas físicas depositados em bancos internacionais, exclusão de bancos russos da plataforma Swift que viabiliza transferências e pagamentos internacionais, suspensão de transações de operadoras de cartão de crédito ocidentais, dentre outras medidas e sanções econômicas.

Putin é explícito ao dizer que os Estados Unidos (EUA) utilizam sua moeda e as instituições financeiras que orbitam em sua esfera de influência como “armas” para pressionar quem contesta sua hegemonia. Ele defende a necessidade de construir alternativas, o que envolveria a ampliação na utilização do renminbi (RMB) e da infraestrutura institucional chinesa – plataformas de pagamentos, como a Cross-Border Interbank Payment System (CIPS), acordos de swap e de fornecimento de liquidez, operadoras de cartão de crédito, bancos, instrumentos digitais etc. – e a construção de novos instrumentos, como a moeda dos BRICS

Xi Jinping e seus comandados dizem o mesmo. Tais pressões ganham força com o apoio de outras lideranças dos BRICS e de países emergentes e em desenvolvimento que desejam entrar neste grupo. Para o governo chinês, o “privilégio ultrajante” do dólar e do uso das instituições nele centradas como arma de disputa geopolítica são incompatíveis com a nova distribuição do poder global. As lideranças chinesas enfatizam que a política monetária estadunidense é fonte permanente de instabilidade financeira. A assimetria entre o peso efetivo em termos de renda e de comércio dos EUA na economia global e a influência do dólar nas finanças só aprofundaria distorções e crises. 

O influente Esward Prasad resume assim as transformações em curso e suas consequências em potencial: “O sistema monetário internacional pode estar no limiar de uma mudança significativa a partir de uma combinação de forças econômicas, geopolíticas e tecnológicas. Mas é uma questão em aberto se essas forças derrubarão o dólar estadunidense de seu pedestal como moeda internacional dominante …”.

Há evidências de “desdolarização”?

O termo não é novo, porém vem ganhando impulso. Desde janeiro de 2022, o original em inglês (de-dollarization) foi citado 202 mil vezes no Google. Isto é dobro das citações dos anos que se seguiram à CFG, entre 2009 e 2021: 102 mil. Há pelo menos dois significados para o mesmo: a reversão – parcial ou integral – do processo de “dolarização”, onde este representa o uso do dólar estadunidense ou de ativos nele denominados fora do espaço jurisdicional que o origina, os Estados Unidos; e/ou a redução no uso do dólar em transações internacionais. Assim, quando pessoas físicas, jurídicas e governos de um país cuja moeda não é conversível internacionalmente reduzem suas dívidas (ou ativos) em instrumentos denominados em moedas estrangeiras, particularmente o dólar, fala-se que há “desdolarização”. O mesmo poderia ser dito com uma perda relativa de participação do dólar nas transações internacionais e na denominação dos ativos/passivos.

A última pesquisa trienal do BIS 2022, revela importante estabilidade no que tange às moedas de referências para as transações nos mercados cambiais, cujo giro diário foi estimado em US$ 7,5 trilhões. As “big four”, dólar (44%), euro (15%), iene (8,5%) e libra (6,5%), seguem na liderança. Dentre as moedas emitidas pelos emergentes, a chinesa avançou para 3,5%, ante os 2,2% da pesquisa de 2019. Nos pagamentos internacionais que cursam pela plataforma Swift dá-se o mesmo: em março de 2023, as big four concentraram 87% das transações, com a clara liderança do dólar (42%). Na quinta posição aparece o RMB, com 2,3%. Dois anos antes, a moeda chinesa tinha 2,5% e o dólar, 40%. 

Perez-Saiz, Zhang e Iyer, em estudo recente do FMI com dados da plataforma Swift, reforçam a percepção de que há uma importante inércia no sistema monetário e financeiro global. Todavia, sugerem que a emergência da revolução digital e as rupturas geopolíticas podem acelerar transformações rumo a um padrão monetário multipolar ou mais fragmentado. Com a mesma fonte de dados, Perez-Saiz e Zhang procuraram entender melhor os determinantes do uso internacional do RMB para pagamentos transfronteira no período 2010-2021, vale dizer, após a autorização oficial do governo chinês para tanto. Tal decisão gerou uma importante ampliação na utilização do RMB para a liquidação de contratos bilaterais com a China, particularmente em operações de comércio internacional. 

Para a mediana de países estudados, tal participação atingiu 20% em 2021, com o quartil superior da amostra registrando 70%. Os pesquisadores do FMI detectaram haver importantes diferenças regionais, as quais refletem proximidade geográfica, vínculos de comércio com a China, aspectos legais e a criação de facilidades financeiras especificamente desenhadas pelo banco central chinês para viabilizar a internacionalização do RMB, tais como linhas de swap bilaterais e bancos de compensação offshore. Tais mecanismos garantiram a provisão de liquidez na moeda chinesa, facilitando o seu uso.   

Em outra dimensão desta mesma dinâmica, Barry Eichengreen e seus coautores identificaram aumento de 5 p.p. no uso do ouro monetário na composição das reservas internacionais desde 2009. Nas quatro décadas anteriores à CFC deu-se o contrário, com a redução na sua importância relativa. Nos anos 1950 e 1960, os compromissos derivados do acordo de Bretton Woods, particularmente a relação fixa entre o dólar e o ouro, fizeram com que este metal mantivesse participações entre 55% e 70% no total das reservas oficiais. Com a eliminação deste vínculo formal, tal peso relativo caiu abaixo de 10% nos anos 2000. No final de 2021, a relíquia bárbara, para se tomar emprestada a expressão de Keynes, correspondia a 17% das reservas oficiais das economias avançadas, bem abaixo dos 80% verificados em 1950; e 7% nas economias emergentes e em desenvolvimento, contra os 30% de 1950. 

O trabalho de Eichengreen sugere que este movimento de ampliação pode ser explicado pelos riscos associados à instabilidade financeira e geopolítica, bem como aos efeitos das diversas sanções bilaterais ou multilaterais impostas a determinados países, as quais foram consideradas nas análises estatísticas, dentre as quais: Argentina (2001-2005), Bielorrússia (2006, 2010, 2020), Iraque (2010, 2012, 2017, 2019), Hungria (2018, 2021), Cazaquistão (2011), Qatar (2017, 2022), Rússia (2008, 2014), Turquia (2011, 2016, 2018, 2019), Uzbequistão (2003, 2005, 2006, 2017), Bolívia (2010, 2011), Egito (2016, 2017), Quirguistão (2010, 2013, 2014), Ilhas Maurício (2010, 2015), Mongólia (2018, 2019) e Sérvia (2000, 2001, 2003). 

De fato, tais movimentos de diversificação fizeram com que o dólar reduzisse sua participação na composição das reservas oficiais de 70%, em 1999-2000, para menos de 60% no período recente. Em outro trabalho de Eichengreen, sugere-se que aquela diferença não é explicada por uma elevação significativa no peso de ativos denominados em moedas tradicionais como euro, iene ou libra, mas em moedas não tradicionais como o renminbi, que sozinho respondeu por ¼ destas variações não associadas ao uso do ouro monetário, ficando os dólares canadense e australiano e o franco suíço com os ¾ restantes.

Nos últimos meses, o anúncio de ocaso do dólar parece ter mais a ver com cenários do que pode vir a ocorrer em um futuro ainda incerto, do que com evidências de um processo consistente de repúdio à moeda estadunidense. Há, de fato, um movimento de diversificação de ativos de reserva por parte das autoridades monetárias e a ampliação no uso de moedas emergentes, como o renminbi, em pagamentos internacionais. Tais processos podem ganhar impulso adicional com a inclusão de mais países no BRICS, a ampliação do escopo das parcerias entre os poderes emergentes e os demais países do assim-chamado Sul Global, e as inovações tecnológicas e institucionais em curso, a exemplo do e-RMB, do Cross-Border Interbank Payment System (CIPS), dos bancos multilaterais que estão fora do controle ocidental, como o New Development Bank, para citar alguns. 

Fundamentalmente, o futuro do sistema monetário e financeiro internacional está diretamente atrelado aos desdobramentos das disputas pelo poder global, onde a reação dos EUA e seus aliados não pode ser menosprezada a priori. Neste campo, o horizonte segue em aberto. 

(*) Docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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