Opinião
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29 de maio de 2023
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19:07

Big tech e economia: inovação ou extrativismo? (por Tarson Núñez)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Tarson Núñez (*)

Um dos debates contemporâneos da maior importância diz respeito às grandes empresas que controlam as plataformas da internet, as chamadas Big Tech. Hoje em dia grande parte das nossas interações sociais são mediadas por estas plataformas. Empresas como a Meta (proprietária do Facebook e do Instagram) a Alphabet (proprietária do Google e do Youtube), a Amazon, entre outras, as chamadas Big Tech, controlam boa parte de nossa vida social. Elas estão hoje entre as maiores empresas do planeta e se tornaram em grande medida os meios através dos quais interagimos com amigos e parentes, compramos e vendemos serviços e produtos, nos informamos dos acontecimentos do mundo. Com a expansão da internet e a disseminação de equipamentos como os telefones celulares, muito de nossa vida social contemporânea passa por estas plataformas. Por conta disso o poder adquirido pelas empresas (e os governos) que controlam estes meios de comunicação e de interação social se torna gigantesco. 

A dimensão deste poder vem alertando especialistas e autoridades para a necessidade da regulação das redes. Nos Estados Unidos e na Europa as iniciativas neste sentido vêm avançando, ainda que tenham se mostrado incapazes de alterar profundamente a dinâmica de funcionamento das plataformas. No Brasil o projeto de lei 2630, que aponta para uma regulação da atuação das plataformas, vem sendo alvo de toda uma ofensiva das empresas, que apresentam qualquer possibilidade de regulação pública da internet como um ataque contra a liberdade de expressão.

O debate sobre o poder das grandes plataformas e seus impactos sobre a política já vem se realizando a muitos anos. Em seu livro “Eterna Vigilância”, Edward Snowden revela com clareza a relação entre estas empresas e o governo norte-americano, que resultou no estabelecimento de um mecanismo de espionagem e controle sobre os cidadãos do mundo inteiro. Já o livro “A Máquina do Caos” o jornalista Max Fischer do New York Times mostra como os algoritmos das plataformas, em sua busca eterna por mais engajamento e tempo de uso, são responsáveis por grande parte da radicalização e polarização política que ocorre hoje na maioria dos países. São apenas dois exemplos, dentre tantos outros, de que as tecnologias destas plataformas têm um tremendo impacto no ambiente político, sendo em parte responsáveis pela chamada “crise das democracias” que atinge o mundo inteiro.

Já a professora de Harvard, Shoshana Zuboff, em seu livro “A Era do Capitalismo de Vigilância” vai além destas dimensões políticas. Ela mostra que o poder das plataformas tem também uma dimensão econômica, representando uma nova configuração das relações produtivas e das trocas econômicas, um novo momento do capitalismo contemporâneo. Esta dimensão do poder econômico das chamadas Big Tech fica em geral em segundo plano quando se discute o impacto das plataformas na nossa sociedade, mas é um tema sobre o qual seria importante dedicar uma maior atenção. Isto porque seu impacto é universal e incide de forma muito direta sobre as possibilidades de desenvolvimento econômico de todos os países. 

As tecnologias de informação e comunicação são apresentadas de forma unilateral no senso comum como instrumentos de inovação e desenvolvimento. Isto porque, em tese, contribuem para aumentar a produtividade e a eficiência econômica, contribuindo, portanto, para o bem-estar geral. No entanto um olhar mais cuidadoso e sistêmico revela que a realidade é bastante distinta destes modelos de utopia tecnológica. Analisando os impactos objetivos da ação das plataformas nos distintos territórios o que se pode ver é que estas novas tecnologias de fato se constituem em instrumentos de extração de excedente e de concentração de renda em escala mundial. Alguns exemplos concretos podem nos permitir compreender de forma mais objetiva esta afirmação.

O primeiro exemplo é o do Uber e outras plataformas de transporte. Apesar de todo um discurso relacionado com a mobilidade urbana, essas plataformas na prática desestruturaram os sistemas locais de transporte. Mas para além disso é importante refletir sobre o fato de que enquanto a renda dos meios de transporte tradicionais era apropriada por agentes locais, cerca de 30% do que se paga para o Uber sai diretamente da economia local para a sede da empresa, em San Francisco (EUA). Uma estimativa conservadora, baseada no número de motoristas de aplicativos existentes em Porto Alegre, aponta para o fato de que nestes sete anos e meio de operações na cidade a Uber é responsável pela transferência de mais de R$ 7 bilhões daqui para os Estados Unidos.

Aplicativos de entrega como o I Food e o Rappi não são apenas concorrentes que tendem a eliminar serviços de entrega já existentes (desde empresas a motoboys individuais). Esta eliminação implica também em que uma parte importante dos recursos que antes circulavam entre atores econômicos locais, os restaurantes e os entregadores, passa a ser canalizadas para as matrizes das plataformas. Os empresários dos setores da gastronomia, que antes pagavam apenas aos entregadores, precisam também pagar para o novo intermediário que se coloca entre eles, os entregadores e os seus clientes. 

E nestes dois casos, tanto do Uber como das plataformas de entrega, além desta canalização dos recursos, as plataformas são responsáveis também pela precarização das relações de trabalho. Os “colaboradores” dessas plataformas são submetidos a jornadas excessivas, condições insalubres e rendimentos mínimos. O que aparece como inovação na relação entre os serviços e seus clientes, se revela, do ponto de vista das relações de trabalho, um retrocesso civilizatório. Direitos mínimos em termos de relações dignas de trabalho são eliminados, o que representa, sem dúvida, um retrocesso em termos da qualidade de vida e das condições de trabalho dos “colaboradores”.

Outro exemplo é o da Amazon, que hoje controla uma parte significativa das atividades de comércio on-line do mundo. Atuando em escala global, a empresa consegue atingir uma escala de operações que a tornam uma concorrente quase imbatível. E desde a sua entrada no mercado brasileiro, a Amazon vem ganhando espaço crescente, ameaçando até mesmo as grandes empresas do varejo on-line que já operam no país. No entanto o impacto da Amazon vai muito além da concorrência que a empresa exerce sobre os grandes grupos de varejo nacional, mas atinge sobretudo o pequeno comércio de rua. O caso mais dramático é o das livrarias, que cada vez mais se vêm ameaçadas de extinção pela concorrência do gigante norte-americano. Com sua escala gigantesca e capacidade logística, a gigante do varejo eletrônico norte-americana tende a esmagar o pequeno comércio de base local, além de se constituir em um concorrente de peso aos grandes grupos de varejo nacionais. E novamente, uma parcela significativa do faturamento vai diretamente para o exterior.

Já o Google, com seu gigantesco poder quase monopolista como principal ferramenta de busca na internet, vem açambarcando uma parte cada vez maior das verbas publicitárias nos países onde atua. Recursos de propaganda que originalmente seriam canalizados para veículos locais (jornais, TVs e rádios) cada vez mais são direcionados para o gigante norte-americano. Segundo Zuboff, já em 2016 o Google, junto com o Facebook, já era responsável por 20% do total de gastos com publicidade em todo o mundo, quase o dobro da fatia do mercado que tinham em 2012. Como nos três exemplos anteriores, recursos que estariam girando nas economias locais são canalizados para o país onde a empresa se localiza.

Todas estas empresas, por conta de seu tamanho e impacto global, se constituem em concorrentes quase imbatíveis em termos de preço e de alcance em relação aos atores econômicos locais. Mas seu sucesso representa, de fato, um deslocamento da riqueza produzida nos territórios para as sedes das empresas. Recursos da economia local são transferidos em larga escala dos territórios para as matrizes das plataformas. E a sua concorrência predatória tende a eliminar uma quantidade significativa de pequenos, médios e até grandes grupos de base local e nacional. 

Estudiosos das relações entre a economia e os territórios mostram que o desenvolvimento em cada lugar depende sobretudo dos fluxos de riqueza entre os territórios. Paul Singer, em seus estudos sobre economia urbana, mostra que o desenvolvimento local depende sempre da capacidade de cada território de produzir localmente bens e serviços. Um território se desenvolve na medida em que produz localmente o suficiente para suprir suas necessidades, reduzindo sua dependência de produtos e serviços de fora e sendo capaz de exportar produtos e serviços, canalizando recursos de fora para o seu próprio desenvolvimento endógeno. 

Já a urbanista Jane Jacobs, em seu clássico “A Economia das Cidades”, mostra que o desenvolvimento nos territórios depende sobretudo da capacidade de diversificar o seu tecido econômico a partir da constituição de novas atividades, novos empreendimentos e tecnologias de base local. Para ela, o desenvolvimento de uma cidade acontece na medida em que novas atividades econômicas se agregam à economia local, aumentando sua diversificação e a consistência do tecido econômico local, permitindo que a renda gerada no território seja reinvestida em novas atividades econômicas.

As grandes plataformas caminham exatamente na direção contrária, uma vez que canalizam renda local diretamente para os países centrais, concentrando riqueza de uma forma exponencial. E mais do que isto, com seu enorme poderio econômico e político, as plataformas eliminam de forma agressiva a sua concorrência, matando muitas das empresas locais que atuavam nos mesmos setores.

Além disso, em que pese o discurso ufanista acerca da inovação e das novas tecnologias, qualquer observação mais objetiva mostra que estas plataformas não agregam de fato inovações à economia local. Do ponto de vista da mobilidade urbana, um Uber não faz nada substancialmente mais inovador que um táxi já fazia. As plataformas de entrega não mudaram substancialmente o trabalho dos entregadores, pelo contrário, ampliaram o grau de exploração e a precariedade do seu trabalho. A publicidade no Google não é substancialmente diferente da que se fazia por outros veículos. 

De fato, a inovação trazida pelas plataformas se concentra sobretudo na capacidade de ampliar os lucros dos seus proprietários, aumentando a exploração e a precarização do trabalho, eliminando de forma predatória a concorrência das empresas locais e exercendo um grande poder sobre os governos e as agências reguladoras. Na verdade, sob um discurso voltado para as novas tecnologias e o progresso se esconde um processo neocolonial de exploração dos mercados dos países periféricos. Por trás da inovação o que se tem de fato é um processo de extração da renda local em benefício de grandes grupos privados internacionais. As Big Tech precarizam e exploram o trabalho, colonizam os mercados nacionais e liquidam com os empreendedores locais. Isto pode ser chamado de progresso ou de retrocesso?

(*) Doutor em Ciência Política pela UFRGS e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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