Opinião
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28 de maio de 2023
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09:05

As escolhas de Dilma (por Marcelo Milan)

Dilma Rousseff, presidenta (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Dilma Rousseff, presidenta (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Marcelo Milan (*)

A indicação e posterior aprovação unânime da ex-presidenta Dilma Rousseff para presidir o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), criado pelo bloco BRICA (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) foi um grande acerto do presidente Lula, em meio a desatinos e barbeiragens nos cinco primeiros meses (como o calabouço fiscal, manter o GSI nas mãos dos golpistas fardados e a decisão de deixar as vias públicas nas grandes cidades mais entupidas de automóveis). A escolha se mostra acertada em função da atual conjuntura geopolítica e geoeconômica, para além da experiência executiva da ex-presidenta. Em particular, existe hoje uma considerável ameaça à hegemonia do dólar estadunidense no sistema monetário e financeiro internacional. Mesmo o estrupício que antecedeu o Zé Bidê em Washington D.C. consegue entender que a perda de hegemonia do dólar seria equivalente a uma derrota histórica de vastas proporções. E não se pode duvidar que o dólar tem sido utilizado como arma contra muitos países que teimam em buscar autonomia e independência. Essa violência monetária é muitas vezes mais efetiva que o poderio bélico.

As ações do NBD presidido por Dilma devem contribuir assertivamente para este declínio gradual ou tendencial do dólar e para uma maior participação das moedas dos países do bloco principalmente na circulação internacional, e também nas reservas internacionais e portfólios. Caso seja criada uma moeda supracional, sem os problemas do Euro, melhor ainda. E o novo banco está bem posicionado para atuar como este relevante vetor de mudança da atual configuração monetária mundial centrada no dólar e na dívida yankee. A crise bancária nos EUA e em outros países desenvolvidos, além da dificuldade momentânea em aumentar o teto da dívida pública, facilitam ainda mais a tarefa, dada a covardia do hot money e seu processo de fuga permanente.

É importante aqui diferenciar a tendência de prazo mais longo (medida em lustros) e movimentos de curto prazo (oscilações de meses ou anos) nas diferenças funções desempenhadas pelo dólar. Reversões temporárias na tendência sempre levam os sabujos de plantão a manterem sua projeção do passado no futuro, no qual a posição de domínio do dólar é inabalável (e indesejável…). Se nunca aconteceu antes, exceto com a libra esterlina, por que aconteceria agora? O futuro nada mais é que a repetição do passado próximo. Mas, para o desespero dos mesmos, até a porta-voz oficial do establishment mundial chama a atenção para esta possibilidade.

Assim, a dança das moedas passa do vivace para o alegrissimo e o reposicionamento futuro dificilmente implica acomodação ao larghissimo anterior. Isso requer fortalecer e acelerar os arranjos monetários bilaterais em curso, a exemplo dos procedimentos que já acontecem há anos entre o Real e o Peso Argentino. A China já negocia em sua moeda em transações com seus principais parceiros. Há transações em mercadorias primárias (commodities) sem a intermediação do dólar, que se mostra desnecessária do ponto de vista de transação em si, mas representa um ato vital para o imperialismo estadunidense. O próprio presidente Lula questiona, acertadamente, deixando claro que os sabujos são apenas sabujos: qual o sentido de se utilizar o dólar em transações de países que não utilizam esta moeda como meio de pagamento doméstico? Nenhum. Da retórica à prática, o histórico acordo de swap (arranjo recíproco de troca) entre o Kuai e o Real é um passo fundamental no sentido de eliminar o dólar do radar destas transações. Mas é possível e preciso generalizar para o maior número possível de moedas e parceiros. 

O NDB deve portanto atuar no sentido de reforçar este movimento da China, do BRICA e de outros países em modificar seus arranjos de pagamentos bilaterais com países não emissores do dólar. Isso passa por fomentar e fortalecer redes de pagamentos em outras moedas. Inclusive para evitar o uso político das existentes (como ficou patente no caso da SWIFT com a tentativa de enquadrar a Rússia pela OTAN). Fomentar infraestrutura de redes de pagamentos locais fora das redes VISA, Mastercard e American Express em cada um dos países membros do NBD, a exemplo da UnionPay e da Mir, integrando-as em uma rede mundial descentralizada, tendo já a arquitetura do CIPS da China e da SPFS Russa, e possivelmente com a Elo sendo o braço nacional no caso da Bananilga. E medidas de estímulos para mudanças na composição das reservas internacionais dos países (vendas massivas estratégicas de dólares, por exemplo). No âmbito dos países membros, é preciso também criar canais de pagamentos e financiamentos para neutralizar os bancos centrais, que se transformaram em meros apêndices das grandes instituições financeiras nacionais e internacionais. Isso requer atuar diretamente com os bancos de desenvolvimento e agências de fomento, provendo alternativas financeiras de longo prazo e de baixo custo, inclusive com mercados cativos para papéis das dívidas públicas que deem uma banana para a Faria Lima e congêneres. E fomentar o (verdadeiro) cooperativismo de crédito.

As mudanças exigidas são enormes, pois o domínio político e econômico do dólar tem mais braços do que as serpentes na cabeça da Medusa. As instituições de Bretton Woods são outro obstáculo a ser superado gradualmente. Ainda não é possível diminuir fortemente a importância do Banco Mundial. Mas este deve ser um dos objetivos estratégicos do NBD, forçando-o a abandonar as condicionalidades e a imposição de programas liberais de austeridade para os países mutuários. Um meio para alcançar este desiderato passa por articular os projetos do novo banco com a nova rota da seda da China, subordinando as finanças à economia real, como deve ser. E resgatar o projeto original do arranjo cambial do BRICA, com um fundo para reduzir ou eliminar o papel do FMI no caso de crises de liquidez e consequentemente o papel do dólar nos empréstimos do mesmo. Nenhum financiamento do NDB deve acontecer em dólares. Nenhum. 

Para contribuir com esta importante tarefa democrática, Dilma precisará se cercar de pessoas confiáveis e competentes. Isso é fácil do ponto de vista da instituição com um todo, pois o NBD tem um grande quadro  de funcionários e técnicos (de fato) recrutados de forma impessoal no mundo inteiro. As opções de recursos humanos são maiores e muito melhores, dado o escopo internacional de atuação e operação da instituição. Por sua vez, as rotinas estabelecidas sugerem que não há espaço para revoluções ou profundas transformações no modus operandi da organização. E elas nem são necessárias. As pessoas entram em um banco multilateral que já funciona e tem uma direção bem clara no sentido de financiar infraestrutura e atividades sustentáveis no Sul global. Portanto, a filosofia e as medidas/regras que as traduzem em procedimentos operacionais importam mais. Isso, todavia, não diminui a importância das boas escolhas pessoais. 

Ou seja, como a ex-presidenta precisa de assessore(a)s e consultore(a)s para sua equipe próxima no NBD, as escolhas de Dilma não são muito difíceis. Elas só precisam evitar um perfil conhecido. Uma lista curta de atributos já é suficiente: deve rejeitar o monetarismo e sua variante wickselliana da taxa natural de juros, recusar as metas de inflação como forma de controle dos bancos centrais, enjeitar a austeridade, repelir o liberalismo e outras tonterias, como por exemplo as que defendem que os ciclos econômicos são derivados de choques tecnológicos ou aleatórios, como as manchas solares. Em suma, nunca mais nomear alguém com perfil de economista formado em Chicago para postos que envolvam decisões monetárias. O NBD é instrumento de participação no financiamento dos países, não de intervenção liberal nos assuntos domésticos dos países que precisam de recursos financeiros. Deve sempre defender o trabalho contra as pretensões do capital. 

Esse tema só se torna relevante porque, como mandatária, Dilma teve de fazer escolhas em todas as áreas. Na seara política, ela errou feio nas indicações para o STF. O fato de terem sido aceitas sem muita resistência pelo Senado, instituição oligárquica, já diz muito sobre as mesmas. Então, se houvesse uma exceção boa ou razoável, a chance de veto pela câmara alta (sic) seria significativo. Talvez a única exceção tenha sido Teori Zavascki. Talvez. O universo jurídico à disposição é muito ruim, contudo. Então, a chance de escolher mal é sempre muito grande. É preciso ir atrás das exceções, que são raras. Ou talvez apenas minimizar o dano. E no NBD Dilma estará livre deste fardo político. Contudo, na dimensão econômico-financeira as escolhas são necessárias.

E o histórico de Dilma na área econômica é contraditório, mas pendendo para o negativo. Ela acertou ao manter Guido Mantega na transição da presidência de Lula para a sua própria. Acertou ao nomear Alexandre Tombini para presidir o Banco Central, tirando a presidência da instituição, momentaneamente, das mãos da Faria Lima. Mas cometeu um erro catastrófico ao nomear um Chicago Boy como Joaquim Levy, reincarnação de Joaquim Murtinho, para o lugar de Mantega. A nomeação pode inclusive ter acelerado o golpe. Não se coloca alguém de Chicago em posição decisória importante impunemente. Os EUA, por exemplo, jamais cometeriam esta loucura. Na média, então, prevalecem as escolhas equivocadas de um ponto de vista progressista, democrático e popular. Do ponto de vista de reforçar o atraso e a opção oligárquica, foram perfeitas. Há algum espaço indireto para reversão, contudo.

A atuação do NDB pode auxiliar politicamente o Brasil na medida em que evite financiamentos de projetos ligados ao agro-escravismo-exportador (como fez a Apex no caso das empresas escravistas). Depois da devastação ambiental promovida durante o governo genocida apoiado pelo ogro-negócio, fica claro que esta agenda do atraso é incompatível com o objetivo estratégico do NBD de financiar o desenvolvimento sustentável. O agro representa o subdesenvolvimento e é refratário às pautas ambientais atuais. Basta ver o que estão fazendo com a Ministra Marina na Bananilga.

A presidenta Dilma do NDB, dentro dos marcos institucionais descritos, tem algum espaço para ousar. Ela se encontra distante, territorialmente e espiritualmente, da escumalha que interrompeu ilegitimamente seu mandato. O braço da Faria Lima não tem alcance além de Brasília. A oligarquia não tem como projetar seu atraso nas instituições multilaterais quando a Bananilga não é governada pela súcia. E a natureza internacional do NBD impede que a ‘companheirada’ pressione por indicações sem qualificação. Ousar então é contribuir, mesmo que pontualmente, para um recuo no imperialismo monetário estadunidense, na posição internacional do dólar e no fortalecimento de instituições de democracia econômica, na dimensão monetária, nos países membros e circunvizinhos. O cavalo encilhado da nova ordem monetária e financeira internacional está passando.

(*) Bacharel, mestre e doutor em economia

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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