Opinião
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11 de abril de 2023
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06:16

O que fazer com obras preconceituosas? (Coluna da APPOA)

Foto: Pixabay
Foto: Pixabay

Luciano Mattuella (*)

O leitor deve estar lembrado que no romance 1984 George Orwell fala do Ministério da Verdade, um órgão governamental encarregado por reescrever os livros e os jornais antigos de uma sociedade distópica. 

Cabia a este departamento manter a narrativa do passado alinhada à ideologia do governo, de modo a apagar os registros de quaisquer notícias ou informações que pudessem questionar a supremacia onividente do Grande Irmão. 

Pensei no romance de Orwell quando fiquei sabendo que a bisneta de Monteiro Lobato propôs que alguns trechos da obra de seu bisavô fossem alterados para apagar elementos racistas. O mesmo já havia sido feito pela editora que publica os livros de Roald Dahl nos Estados Unidos, escritor do conhecido “A fantástica fábrica de chocolate”. No caso do estadunidense, foram alterados elementos que remetiam à aparência dos personagens de forma jocosa.

A discussão não é simples, especialmente por conta dos temas delicados que estão em jogo.

Por um lado, a preocupação de Cleo Monteiro Lobato e da editora americana Penguin Random House explicitam o quanto algumas pautas urgentes precisam ser abordadas de frente, inclusive deixando claros preconceitos e proposições segregatórias de autores cujas obras ainda são lidas por um amplo publico.

Por outro lado, estas recentes notícias levantam uma questão que me soa incontornável: será que deveríamos mesmo alterar as obras de autores já mortos, ou até mesmo tirá-las de circulação, como chegou a sugerir Salmon Rushdie?

Um primeiro ponto que me parece ser importante levar em conta é que todo discurso carrega consigo não só a singularidade daquilo que o autor tem a dizer, mas também movimenta e explicita o que está nas malhas do discurso social. Em outros termos: quando falamos ou escrevemos, também estamos expressando os matizes ideológicos da época em que vivemos – para o bem e para o mal. Toda frase está tingida pela paleta ideológica do contexto em que é proferida.

Questão semelhante é colocada quando nos vemos em apuros para defender algumas propostas de Freud, em especial aquelas atinentes à questão homossexual (entendida como uma perversão) ou à famosa “inveja do pênis” (que denuncia o falocentrismo de Europa vitoriana – e também dos dias de hoje).

Isso significa que devemos parar de ler toda a obra de Monteiro Lobato, Roald Dahl ou Sigmund Freud? Do meu ponto de vista, não. Aliás, longe disso, o que me leva ao meu segundo ponto sobre esta discussão.

Aqueles que visam revisar estes textos parecem esquecer que uma obra é também o testemunho de uma época. Melhor dizendo, do discurso de uma época. 

Se os livros de tantos e tantos autores não suscitaram indignação quando foram escritos, isso nos diz do quanto a sociedade daquele tempo estava em consonância com o que foi publicado. O racismo das histórias de Monteiro Lobato denuncia uma lógica que desde antes da publicação de seus livros subjaz ao discurso social. O mesmo vale para a gordofobia explicitada nas narrativas de Roald Dahl e para o machismo de alguns ensaios de Sigmund Freud.

Creio que reescrever trechos preconceituosos de obras possa ter como efeito justamente o apagamento da discussão, como se este ato resolvesse o problema e até mesmo absolvesse a responsabilidade dos autores. Sim, responsabilidade, afinal, mesmo que atravessados pelo discurso de seu tempo, cada autor ainda é responsável pelo que produz.

Uma melhor saída talvez seja lermos estas obras com um olhar crítico e atento às lógicas segregatórias que até hoje produzem violência e marginalização, inclusive de forma a perceber – para melhor combater – o modo como algumas destas narrativas conseguiram se manter presentes ao longo dos anos.

Afinal, se partimos da hipótese de que a estrutura social de uma época fala através de nós – de todos nós, e não só daqueles francamente intolerantes -, então fazer uma leitura crítica implica também estarmos advertidos de que nós mesmos incorremos em diversas reproduções violentas que, com sorte, poderemos rever alguns anos adiante.

Tenho muito receio, por exemplo, de ler textos que escrevi há dez, vinte anos. Posso arriscar com alguma certeza que encontraria ali um autor carregado de preconceitos que hoje em dia me envergonhariam. O mesmo vale para esta coluna que meu leitor agora tem à sua frente: será que daqui a alguns anos ela não poderá ser lida de forma crítica, ressaltando pontos que me passaram batidos no momento da escrita?

O risco de simplesmente alterarmos o que foi escrito e fingirmos que não aconteceu é o destino de tudo aquilo que negamos ou escondemos, como nos ensina a psicanálise: a repetição sintomática do passado sob vestes atuais – uma atualização estridente do que foi silenciado.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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