Opinião
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24 de março de 2023
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07:37

A necessidade urgente de ‘desenrolar’ (por Flavio Fligenspan)

Foto: José Cruz/Agência Brasil
Foto: José Cruz/Agência Brasil

Flavio Fligenspan (*)

A economia brasileira já vinha “andando de lado” no início de 2020, quando se estabeleceu a pandemia. De fato, depois da recessão de 2014/2016, quando perdemos 6,8% do PIB, tivemos três anos seguidos de taxas de crescimento pouco superiores a 1%. Ou seja, no momento inicial da pandemia estávamos longe de recuperar o estrago da recessão. E aí tudo ficou pior, com mais um ano de taxa negativa (-3,3% em 2020). A recuperação veio a seguir, com 5% de expansão em 2021 e 2,9% em 2022. Com isso, finalmente chegamos hoje num nível de PIB (pouco) superior ao do início de 2014. É algo a se comemorar? Claro que não; nove anos depois voltamos ao nível anterior. E se considerarmos o PIB per capita, dado o crescimento médio da população de 0,78% ao ano, há uma queda de 4,4% entre 2014 e 2022. Muito ruim.

 A pandemia, portanto, só veio atrapalhar o que já não estava bom. A emergência sanitária parou a produção, desorganizou cadeias produtivas e abalou o mercado de trabalho. Depois de alguma hesitação e por pressão social e legislativa, o Governo Bolsonaro teve que correr para amparar trabalhadores e empresas com programas diversos de benefícios sociais e de financiamento. O sistema financeiro e as empresas fornecedoras de serviços de utilidade pública – energia etc – fizeram a sua parte, postergando pagamentos e evitando considerar imediatamente seus clientes como inadimplentes. Era notória a falta de renda para as famílias cumprirem seus compromissos, especialmente para quem vivia de ocupações no mercado informal. E não era pouca gente nesta condição. De nada adiantaria colocar todos nos cadastros negativos.

Com o avanço da vacinação, as atividades foram paulatinamente retomadas, geraram-se novas ocupações, mas os rendimentos não se recuperaram, até porque aumentou o número de ocupados que trabalham menos horas do que gostariam e recebem menos do que necessitam; expandiram-se os contratos precários de trabalho intermitente. Além disso, muita gente saiu do mercado de trabalho, fazendo baixar a variável taxa de participação, um fenômeno ainda não bem explicado.

O fato é que o período mais duro da pandemia deixou muitas famílias em apuros financeiros e a retomada não foi simples, pois muitos não conseguiram restabelecer seus status anteriores de ocupação e renda. Para tornar tudo mais difícil, a inflação entre 2021 e 2022 diminuiu o poder de compra e as dívidas postergadas começaram a ser cobradas novamente. O quadro de arrocho encontrou duas saídas, ambas ruins. Uma foi se endividar para pagar o que já estava vencendo, porém agora com taxas de juros bem mais altas. Outra foi deixar os compromissos vencerem sem pagar, aumentando as estatísticas de inadimplência. Observe-se que a primeira opção acaba levando à segunda, porque os juros cresceram muito desde o início de 2021 e uma nova dívida nestas condições rapidamente tornou-se impagável.

As empresas, principalmente as pequenas e micro, têm vivido situações semelhantes e estão com as finanças em frangalhos. Mesmo as que recorreram aos programas governamentais de ajuda no auge da pandemia agora se defrontam com a hora de pagar os empréstimos com juros bem maiores. Não por acaso, o Pronampe, programa de financiamento para pequenas e micro empresas lançado em 2020, vai ter seu prazo de pagamento aumentado nos próximos dias, dependendo apenas de aprovação praticamente certa do Congresso. Se as dívidas batem à porta, as vendas não ajudam, pois o mercado está fraco.

As estatísticas recentes de inadimplência resumem bem o contexto, já que se verificam aumentos generalizados de devedores nas mais variadas linhas de crédito livre, excluindo-se o crédito consignado e o direcionado, como o imobiliário. Nas linhas de cartão de crédito, crédito pessoal, aquisição de veículos, cheque especial e microcrédito destinado a microempreendedores a inadimplência cresceu muito desde a metade de 2021. Impressiona a inadimplência de microempreendedores, que de cerca de 2% na metade de 2021 chegou a 20% na virada de 2022 para 2023.

Este nível elevado de inadimplência trava a economia, especialmente se estiver associado a juros muito altos, como no caso brasileiro. As famílias não têm renda nem crédito para comprar, pois estão com cadastro negativo. Se tivessem capacidade de consumo, isto aliviaria as finanças das empresas. Estas, por sua vez, não têm folga para fazer boas compras e/ou oferecer vantagens aos seus consumidores. Estão todos na retranca, à espera de uma solução.

Uma parte da solução está sendo organizada pelo Governo através do programa Desenrola, por ser lançado logo a seguir. Trata-se de uma ampla renegociação de dívidas das famílias com seus credores do sistema financeiro, das empresas de serviços públicos e do varejo. As empresas devem oferecer um pacote de descontos e a ampliação do prazo de pagamentos com juros baixos. Assim, recebem uma (pequena) parte da dívida e reabilitam seus clientes. O setor público entra com recursos para formar um fundo garantidor para a parte da dívida renegociada. Todos têm interesse no bom funcionamento do programa, para “digerir” as dívidas e a inadimplência.

Desenrolar a situação financeira das famílias e torná-las novamente aptas ao consumo pode melhorar a situação das empresas, mas talvez não baste. Neste caso, haverá necessidade de um Desenrola empresarial. O fato é que o sensível desaquecimento da economia brasileira precisa ser resolvido com urgência, para salvar uma parte do ano de 2023 e poder começar a se pensar em propostas mais consistentes de crescimento para os anos seguintes.

(*) Professor Aposentado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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