Opinião
|
8 de fevereiro de 2023
|
13:59

Reindustrialização e segurança nacional nos Estados Unidos (por André Moreira Cunha e Andrés Ferrari e Luiza Peruffo)

Joe Biden, presidente dos Estados Unidos.
(Foto: Fotos Públicas/Divulgação/Joe Biden)
Joe Biden, presidente dos Estados Unidos. (Foto: Fotos Públicas/Divulgação/Joe Biden)

André Moreira Cunha, Andrés Ferrari e Luiza Peruffo (*)

Onde está escrito que a América não pode liderar o mundo na manufatura novamente? Por muitas décadas, importamos produtos e exportamos empregos. Agora, graças a tudo o que fizemos, estamos exportando produtos americanos e criando empregos americanos.” (Joe Biden, State of the Union Address 2023)

Reindustrialização e Segurança Nacional

Em seu discurso sobre o estado da União, o presidente Biden destacou o vigor da economia estadunidense com a recuperação do setor manufatureiro e investimentos robustos na renovação da infraestrutura econômica, combate aos efeitos das mudanças climáticas, inovação tecnológicas e melhorias sociais. Nas estimativas oficiais, a gestão Biden gerou 12 milhões de empregos e estimulou 200 grandes empresas privadas a anunciarem US$ 700 bilhões em novos investimentos em setores-chave para o futuro da competitividade estadunidense, particularmente em semicondutores, energia, veículos elétricos, baterias e outros segmentos de fronteira tecnológica. Para além dos aspectos estritamente econômicos, as ações implementadas nos últimos dois anos enfatizaram a conexão entre segurança nacional e reindustrialização. Para garantir a capacidade de o país manter sua posição de poder hegemônico, haveria de se deixar para trás parte das políticas neoliberais. 

Na perspectiva da administração Biden, a segurança nacional está intrinsicamente ligada ao desenvolvimento de políticas que reduzam gaps em infraestrutura física, humana e tecnológica. Isto fica claro no documento “National Security Strategy”, lançado em outubro de 2022. A estratégia da administração Biden-Harris assume que “… a era pós-Guerra Fria acabou definitivamente e uma competição está em andamento entre as grandes potências para moldar o que vem a seguir” (p.6). Para conter seus rivais estratégicos, os EUA não poderiam ficar à mercê das forças de mercado, cuja lógica durante os anos de predomínio do neoliberalismo foi a de distribuir a produção industrial em nível global de forma a atender aos interesses das corporações privadas: reduzir custos, maximizar a valorização das ações e garantir bônus generosos para os gestores.  

Assim, a reindustrialização e as políticas de promoção de transformações na estrutura produtiva se tornaram temas ainda mais visíveis. A retomada do ativismo estatal por parte dos Estados Unidos (EUA) e dos países europeus, com ênfase em novas tecnologias digitais, economia verde e infraestrutura, busca contra-arrestar o movimento das últimas décadas de deslocamento da produção manufatureira para a região asiática, em geral, e a China, em particular. As estatísticas da ONU sobre contas nacionais nos permitem estimar que, no começo dos anos 1970, 75% do valor adicionado na indústria de transformação era gerado na Europa e na América do Norte, excluído o México. Em 2020, tal participação recuou para 40%. Neste mesmo período, os países asiáticos, incluindo Japão, passaram de 14% para 54%. No final dos anos 2020, a China, nova “fábrica do mundo”, detinha ¼ da produção manufatureira global, cabendo aos EUA a posição de segundo lugar.

Para reverter esta situação, a administração Biden aprovou novas legislações que se estruturam em torno da ideia de que o país precisa recuperar sua infraestrutura e sua capacidade de liderar as inovações tecnológicas e a produção manufatureira em setores-chave, bem como enfrentar desafios estruturais como a ascensão da China e as mudanças climáticas. Tais medidas envolveram, inclusive, mediações e apoios conjuntos de Democratas e Republicanos, o que não deixa de ser surpreendente neste período de tanta polarização. Este fato indica que há aspectos onde a convergência de visões é elevada, particularmente na conexão entre indústria e segurança nacional. Atualmente, cerca de duzentas mil empresas são fornecedoras de produtos, serviços e equipamentos utilizados pelas Forças Armadas estadunidenses no quesito armamentos. De acordo com a base de dados do SIPRI, entre 1991 e 2021, os EUA gastaram, em média, 3,9% do PIB anualmente em dispêndios militares. Isto equivale a quase o dobro da média mundial. Para se colocar em perspectiva, seguem os indicadores de outros poderes regionais ou globais, sempre como proporção dos respectivos produtos: Alemanha (1,3%), França (2,1%), Reino Unido (2,5%), Japão (1,0%), China (1,8%), Índia (2,7%) e Rússia (2,8%).

Muito Mais do Mesmo

Se a relação entre segurança nacional e indústria não é nova, cabe destacar que três políticas da administração Biden sinalizam para uma outra escala de investimentos e prioridades. Do ponto de vista quantitativo envolvem pelo menos US$ 2 trilhões (8% do PIB de 2002) em recursos orçamentários a serem dispendidos nos próximos anos em medidas de caráter estrutural. São elas: The Infrastructure Investment and Jobs Act”, que destina US$ 1,2 trilhão para investimentos em infraestrutura nos próximos dez anos, particularmente na renovação de estradas, pontes, redes de comunicação e energias renováveis; The Chips and Science Act, que prevê estímulos de US$ 280 bilhões para desenvolver tecnologias-chave e garantir a ampliação na produção de semicondutores;  The Inflation Reduction Act, que enfatiza despesas de US$ 391 bilhões – e que podem atingir o dobro deste valor – para que o setor produtivo possa utilizar novas fontes de energia.

A The Economist analisou tais medidas em sua primeira edição do mês de fevereiro. Admite-se que as políticas de Biden já estão produzindo resultados concretos em termos de novos anúncios de investimentos nos setores beneficiados por subsídios, de novas plantas para a produção de semicondutores a segmentos relacionados à “economia verde”. Bancos e consultorias estão otimistas com as novas perspectivas. O Credit Suisse afirmou que o IRA pode tornar os EUA o líder global na economia de baixo carbono a partir dos anos 2030. Este banco estimou investimentos totais de US$ 1,7 trilhão com o IRA, o que equivale ao quádruplo dos subsídios já anunciados naquele programa – ou o dobro do seu teto em potencial. 

O Citigroup sugere que os aspectos relacionados à redução de emissões serão positivos, ainda que apresente restrições aos elementos protecionistas. Perspectivas semelhantes aparecem no JP Morgan, Goldman Sachs, BlackRock, EY, dentre outros. A McKinsey fez eco às estimativas do Congressional Budget Office (CBO) de que o programa é consistente com a redução dos déficits públicos em até 238 bilhões na próxima década. Isto porque, se por um lado, o IRA prevê novos gastos totais de US$ 499 bilhões, entre estímulos ao setor produtivo, subsídios na saúde etc., e receitas de US$ 738 bilhões, entre novos impostos e eliminação de incentivos criados em administrações anteriores.

Em resposta à ampliação dos subsídios ao setor privado estadunidense, os países europeus estão trabalhando para rever sua legislação restritiva aos estímulos específicos a determinados setores da economia, o que a literatura especializada denomina de políticas verticais. Assim como nos EUA, os setores relacionados à mitigação dos problemas climáticos serão priorizados. O European Green Deal será financiado por recursos já previstos no Next Generation EU Recovery Plan, cujo orçamento é de 2,0 trilhões de euros. Cerca de 1/3 deste montante irá para os investimentos verdes. A Comissão Europeia denomina o Next Generation de o maior programa de estímulos da região, o qual tornará a Europa “mais verde, digital e resiliente”. 

A política industrial nunca desapareceu completamente, nem mesmo nos EUA, que foi um pioneiro neste quesito com as iniciativas do seu primeiro Secretário do Tesouro, Alexander Hamilton. A assim chamada proteção da indústria infante era umas estratégias centrais da jovem nação, assim como a criação de fontes de financiamento de longo prazo por meio da dívida pública. Ha-Joon Chang em seu “Chutando a Escada” detalha os instrumentos protecionistas utilizados pelas nações que se industrializaram primeiro, perpassando barreiras tarifárias e não tarifárias, controles sobre a disseminação de novas tecnologias, compras governamentais, financiamento público, investimentos em infraestrutura etc. Em “Concrete Economics”, Cohen e DeLong demonstram que a visão hamiltoniana perseverou nos EUA em diversos momentos históricos. 

Para marcar seus dois anos de mandato, Biden comemora o que considera ser uma retomada da indústria de transformação e a realização do maior programa de investimentos em cinco décadas, o qual poderá redundar em mudanças profundas na economia nacional. O país se prepara para os desafios da disputa pelo poder global diante de rivais potentes, particularmente a China. Por isso mesmo, Biden afirmou em seu discurso sobre o Estado da União: “Não vou me desculpar por estarmos investindo para fortalecer a América. Investir na inovação americana, em indústrias que definirão o futuro e que o governo da China pretende dominar.”

 A versão original e completa deste artigo está disponível no Portal da FCE-UFRGS

(*) Docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora