Opinião
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17 de janeiro de 2023
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07:09

‘Por que obedecer?’ – como se constrói uma arquitetura de obediência à barbárie (Coluna da APPOA)

Juventude Hitlerista - Wikimedia Commons
Juventude Hitlerista - Wikimedia Commons

Lucia Serrano Pereira (*)

Leitura recente, proposta original: coleção de pequenas conferências inspiradas no que poderia ser o podcast da época, Walter Benjamin entre 1929 e 1932 escreve para a rádio alemã algumas falas endereçadas aos jovens e publicadas sob o título de Lumières pour enfants. A proposta do título foi agora  retomada na França sob a forma de “petites conférences” por Gilberte Tsaï, falas que aconteceram, organizadas para as crianças a partir de dez anos junto com quem as acompanham. Pequenas conferências que estão sendo publicadas em também pequenos livros. 

Fiz a leitura do Pour quoi obéir? (Por que obedecer?), edição de setembro de 2022, realizada por Georges Didi-Huberman, pensador que diz muito aos nossos dias, com a força e a criatividade de suas ideias e obras (lembremos a exposição Levantes, que correu mundo).

Reprodução

 Didi-Huberman faz uma fala muito bonita neste endereçamento às crianças. Começa por dizer que em geral parece que elas tem uma vida fácil, protegida, com a família, com a escola e as brincadeiras, os amigos, os presentes de aniversário, os livros de historinhas, os doces, e muito mais ( sim que está trabalhando ali com um recorte, crianças que tem famílias que as cuidam). E que na infância se tem muitos momentos onde a sensação é a de verdadeira liberdade, do gozo do brincar, o prazer da imaginação. Que é uma vida aparentemente bastante fácil, e que os adultos tem uma tendência a simplificar esse estado de infância. Mas neste momento introduz a questão. 

Se por um lado há essa sensação de ser livre para brincar, por outro lado boa parte do tempo as crianças se sentem na obrigação de obedecer. E que aqui a questão da obediência se problematiza. A chamada à obediência vem com uma ordem externa, como certa intimação, que coloca em causa tudo o que é da intimidade da criança. Arruma teu quarto, não come isso, guarda tudo agora; ordens compreensíveis, às vezes nem tanto, mas que comportam o arbitrário. Não toma banho nessa parte do rio – a criança não sabe bem se é um conselho ditado pela experiência do adulto que cuida dos riscos, ou de alguém que deseja exercer seu poder de graça.

“Vocês, as  crianças são em devir”, em potência. Segue se dirigindo às crianças: que elas não tem a experiência dos adultos, por exemplo, de que ao se empanturrar com alguma coisa, podem ter indigestão. E compara. Os adultos podem se sentir suficientes em seu saber, mas será que sempre sabem mais? Diz do risco para um adulto que é a satisfação com o saber ao ponto de não querer saber mais, ou de não mais se colocar perguntas.

Quando não podem formular perguntas, quando se encontram obrigados a obedecer, quando são como as crianças, por vezes compreendendo a ordem que os intima, por vezes não. Crianças e adultos tem em comum, então, a desorientação frente à questão do por que obedecer, de pelo que obedecer. O que ele propõe é que tanto elas, as crianças, quanto nós, os adultos, deveríamos refletir juntos sobre as formas de “nunca obedecer cegamente, assim como nunca desobedecer gratuitamente”.

Poder tentar pensar isto que é imposto para que se possa aceitar ou recusar. Didi-Huberman se ocupa então de fazer a interrogação pelos totalitarismos, pela obediência cega no hitlerismo, por seus efeitos e desdobramentos, pela corrente de obediência que permite a adesão à execução de ordens abstratas, dada pelo líder da massa. E que pode estar na base da pergunta sobre a crueldade que os homens podem fazer sofrer aos seus semelhantes. 

Fanáticos fascinados que ele vai chamar de “fascisés”. Vai desdobrar a questão de “como se constrói uma arquitetura de obediência à barbárie”. O que é admirável vai também de poder propor esta questão à consideração das crianças às quais se destina sua fala. Mais forte ainda considerarmos que isso configura um ponto que precisamos trabalhar muito, nós adultos, pois disso depende a sustentação do que prezamos e chamamos laço social em nosso tempo.

As crianças são seres em devir, retomamos. Tem a ver com o crescimento, o se tornarem cidadãos, construir sua própria liberdade no sentido de poderem tomar posição. E para isso, poder aprender, fazer comparações e críticas, se abrir. “Isto quer dizer também que vocês são isso que nós, adultos, não deveríamos nunca esquecer. Um adulto que esquece seu “devir-criança”, como dizem os filósofos como Nietzche e Deleuze, é um adulto que perdeu seu essencial.”

O que seria transportar, como adulto, essa partícula de “tornar-se”? Não parando de brincar (jouer) mas aprendendo, se colocando a falta e ao mesmo tempo o desfrutar, como dizem os músicos  que eles “jouent” de um instrumento. O lúdico, brincar, aprender com gosto, imaginar, ficcionalizar, perguntar-se. Mover-se de forma a possibilitar reconhecer e poder sustentar uma posição que busque diferenciar quando a obediência nos protege do pior, nos dá espaço, e quando a obediência pode ter a propriedade de nos imobilizar.

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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