Opinião
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27 de janeiro de 2023
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13:51

Em defesa da irresponsabilidade fiscal – parte II (por Marcelo Milan)

Foto: Marcelo Cassal Jr./Agência Brasil
Foto: Marcelo Cassal Jr./Agência Brasil

Marcelo Milan (*)

Na  primeira parte deste artigo, argumentou-se que o adjetivo ‘responsável’ e seu substantivo correspondente refletem uma posição moral sem qualquer relação lógica ou histórica com as questões fiscais que transpassam o sistema do capital. Nesta segunda parte, procede-se à discussão sobre a necessidade, a razão e inevitabilidade dos déficits fiscais, além da avaliação moral e econômica das despesas estatais. Na terceira e última parte (espero), algumas experiências fiscais serão abordadas, e também a perspectiva fiscal do novo Ministro da Fazenda da Bananilga. 

A questão fiscal é um ponto nevrálgico para o sistema do capital e seus economistas. Para mostrar essa centralidade, basta relembrar um episódio ocorrido após a crise das hipotecas nos Estados Unidos em 2007-2008. Como em todas ocorrências históricas deste tipo, o Estado veio ao resgate do capital. Quando tentou mudar a regra com o Lehman Brothers, a proximidade de um colapso  gigantesco fez o governo rever sua posição. Obviamente, o resultado foi um déficit fiscal histórico, menor apenas que o ocorrido durante a recente pandemia. Houve então um escândalo acadêmico. Dois professores de economia de Harvard manipularam dados para calcular um limite de expansão dos déficits fiscais, a partir do qual o crescimento do PIB entraria em colapso (ironicamente, o PIB só não entrou em colapso justamente em função dos déficits massivos no período anterior). Mas depois de descoberto o escândalo, por um estudante de pós-graduação heterodoxo, o limite se mostrou irrelevante, como de fato é. E mesmo a relação da causalidade déficit-crescimento foi posta em dúvida. De qualquer forma, vale até mesmo fraude ou desonestidade intelectual para defender uma suposta responsabilidade fiscal. Dilma, que gastou menos que o Príncipe do Liberalismo FHC, sofreu um processo de impeachment por uma questão nominalmente fiscal. É o fisco, estúpido!

O exemplo da crise nos EUA deixa claro que os desarranjos fiscais evitam depressões longas e profundas. Em uma economia intrinsecamente instável, os déficits são inevitáveis e portanto desejáveis a partir da própria perspectiva capitalista, tanto por evitar a destruição de grandes estoques de capital e de emprego (fonte última de riqueza) quanto ao garantir a valorização dos capitais monetários pelo endividamento público. A revolução Keynesiana na economia, já com quase um século de vida e tão pouco entendida, tem como um de seus cernes a constatação de que a instabilidade intrínseca das economias capitalistas pode ser absorvida pelo resultado fiscal do Tesouro, que assim não pode ser ‘equilibrado’ por definição, pois só pode minimizar os desajustes privados ao se desarranjar (ficar negativo), e pelo orçamento monetário ou provisão de liquidez do Banco Central. Keynes desprezava a visão do Tesouro das finanças saudáveis ou sólidas- sound finance- do liberalismo britânico como princípio rígido de administração do sistema do capital. O papel arrefecedor dos déficits fiscais e da expansão da liquidez primária pelo Banco Central foi demonstrado ad nauseam pelo economista pós-Keynesiano Hyman Minsky. 

Portanto, não há responsabilidade fiscal possível, entendida como tendência de igualdade entre arrecadação e despesa, sob o capitalismo. Paul Sweezy, o excelente cientista social norte-americano, resumiu a questão fundamental que relaciona as finanças públicas com o sistema do capital: o capitalismo não consegue sobreviver sem déficits fiscais frequentes, mas tampouco consegue se manter com eles indefinidamente. Em resumo, não existem finanças públicas ‘equilibradas’, de forma sustentada, no capitalismo. É um delírio, mas de forma alguma desinteressado. 

Outro apelo sem o menor sentido dos economistas vulgares, que deveria causar vergonha a qualquer estudante do primeiro ano do curso de economia, é aquele de que, para ser responsável, o governo deve administrar as finanças públicas como as finanças privadas, principalmente as familiares, intrinsecamente responsáveis por uma suposta restrição orçamentária. Não sei em quais famílias eles estão pensando. Nas famílias ricas, possivelmente, para quem prestam todo tipo de deferência. Mas mesmo as famílias ricas vão à bancarrota. As famílias de classe mérdia, ‘irresponsáveis’, vivem endividadas, muitas vezes sem controle (relação explosiva dívida no cartão/salário…). O acesso ao crédito para consumo foi durante muito tempo um dos diferenciais desta classe. O problema do endividamento privado hoje, talvez seja ainda mais preocupante do que a dívida pública, já que a única forma de muitas famílias conseguirem dinheiro para servir suas dívidas é se assalariando para alguém que queira utilizar este trabalho para lucrar com ele. E mesmo as famílias pobres se endividam, mas para comer. Ou seja, deveriam ser financeiramente responsáveis e…morrer de fome (esse é o objetivo de rotular a PEC 32/2022 de PEC da gastança). 

Isso sem falar na dívida das empresas, também ampliada durante a pandemia. Tome como exemplo as Americanas e sua a gigantesca fraude contábil, cujo rombo alcança 10% do déficit no resultado fiscal federal previsto para este ano e dívida reconhecida igual a 20%. Como já argumentamos, a fraude é inerente ao capitalismo. Já o governo tem mecanismos de gerar dinheiro sem contrapartida na tributação do trabalho direto ou indireto presente. A dimensão intertemporal do governo e de suas finanças é outro diferencial. O falecido pensador David Graeber discute em importante livro os 5.000 anos de história da dívida, não apenas pública. Ou seja, 5.000 anos de irresponsabilidade financeira…

Porém, a discussão do déficit, quando conveniente, é colocada em um segundo plano. A ênfase se desloca para o pântano da justificativa (moral) das despesas, não importando mais sua diferença com a arrecadação. Por exemplo, alguns grupos sociais podem achar que gastos estupidamente elevados com os pintores de meio-fio são desnecessários. O mesmo para a juristocracia. Estes gastos poderiam ser cortados. Como o orçamento é assumido como fixo no curto prazo, então se poderia reorientar o orçamento do parasitismo para áreas supostamente mais produtivas. E que isso seria feito de forma rápida e indolor. Porém, cortar gastos na expectativa do crescimento econômico sustentável de longo prazo é acreditar no conto de fadas da confiança na forma de austeridade expansionista, comprovadamente falsa. De onde virá o gasto para expandir o produto no curto prazo, com seus multiplicadores e sua histerese, se o governo o reduz? Só pode vir do setor privado ou do setor externo. Cortem e esperem sentados. Aproveitem para esperar Godot. E aí vem o papinho aranha de ineficiência, distorção (gargalhadas) e escassez. A ortodoxia é repetitiva. 

Coloque-se o problema de outra forma. Se as farsas armadas conseguirem a mesma ingestão proteica com rações especiais, como os kits dos soldados dos países desenvolvidos, haveria economia de verbas. Mas, feita a economia das despesas com picanha e cerveja, permanece a decisão política, que segue uma lógica de poder: agora dá para comprar mais viagra e próteses penianas. Segue a mesma disfuncionalidade do gasto, modificando os capitalistas beneficiários finais da substituição das rubricas: saem os frigoríficos e cervejarias, entram as farmacêuticas. E cortando os gastos moralmente indefensáveis com os incubadores de terroristas e transferindo a poupança na forma de menores tributos para o setor privado, haveria ganhos de eficiência, como deliram os liberais? Os gastos disfuncionais abundam aqui também: Tapetes persas nos escritórios, iates (que não pagam tributos na Bananilga), privadas de ouro etc. Luxo privado também representa disfuncionalidade da despesa, mas gera lucro tanto quanto gastos básicos e necessários com moradias populares. Portanto, os déficits não apenas evitam queima de capital e de trabalho, mas validam distintas capacidades de valorização setorial dos capitais, refletindo disputas e conflitos intra e interclassistas.

Por outro lado, é impossível comparar despesas distintas de uma perspectiva agregada, pois o gado apoia politicamente a disfuncionalidade. Segundo o teorema da impossibilidade de Arrow (um economista burguês não vulgar), os resultados coletivos apresentam mecânicas específicas de funcionamento, hierarquizando áreas de aplicação e despesas públicas de forma diferente daquelas derivadas individualmente e, pode se argumentar, principalmente daquelas derivadas com base no moralismo pequeno burguês. Em suma, o todo é diferente da soma das partes. E Arrow não considera o elemento fundamental, que é o poder de classe, de frações de classe, de grupos organizados e elites, na determinação da composição dos gastos.

Pode-se tentar, assim, disfarçar a desfaçatez e justificar a responsabilidade fiscal em termos não morais, mas de eficiência dos gastos e da arrecadação: conseguir o mesmo resultado com a mesma despesa (ou até uma despesa menor – como as universidades públicas vêm fazendo, mostrando uma enorme ociosidade ou completa ausência de visão política…) ou então com uma arrecadação menor (sobre o capital e seus rendimentos). Por sua vez, de fato há mais gente querendo mamar nas tetas do governo do que há tetas disponíveis. Os liberais são os primeiros a quererem uma farta teta, utilizando o truque da redução retórica do Estado para os outros, não para eles. Vociferam bobagens como querer que o Estado caiba no PIB. Liçãozinha de macroeconomia: o Estado já está no PIB, de diversas formas. O que não cabe no PIB é a voracidade liberal. Eles defendem a responsabilidade fiscal para que aqueles que precisam de serviços públicos não os consigam, para que sobre mais leite (verba) na sua teta. Mas a lógica de poder é a mesma, não importa a rubrica do orçamento. O que muda é o grau e o perfil da disfuncionalidade. Que não se limita ao setor público. 

Não que os políticos tenham sempre a melhor das intenções ao direcionarem recursos para suas bases. Pode não fazer o menor sentido comprar viagra e próteses penianas para os guarda-costas de golpistas. Ou picanha. Ou o trem da alegria das motociatas e viagens internacionais, com a filharada rachadista a tiracolo. Ou guindastes para a pasta de direitos humanos. Ou a picaretagem nos gastos do cartão corporativo presidencial. A restrição aqui, porém, volto a insistir, é moral. As empresas farmacêuticas ganharam muito com as compras de viagra e cloroquina pelo desgoverno federal fascista. Mas tapetes persas nos escritórios da burguesia não contribuem em nada para a capacidade administrativa, assim como os Patek Philippes no pulso. Mas geram lucro. Tem uma diferença entre o funcional, o lucrativo e o luxuoso. Uma lixeira de ouro cumpre o mesmo papel que uma boa lixeira de plástico ou alumínio. A ostentação privada não tem nada a ver com eficiência, como querem fazer crer seus miquinhos amestrados do ‘mercado’. Ou que o façam de modo sempre diligente. No âmbito estatal a questão se resolve com mecanismos de transparência e controles efetivos (não controles nominais que são, na verdade, instrumentos neoliberais para a destruição da capacidade de ação do Estado – que gera os ‘inaceitáveis’ ‘desperdícios’ na forma de tempo desnecessário de trabalho, que é a verdadeira fonte de Riqueza, já sabia Adam Smith). Mas ainda assim haveria déficits fiscais. E dívida privada. E calotes. E crises de liquidez e solvência.

E então volta-se à questão moral: gasto disfuncional privado é problema particular (as pessoas teriam uma liberdade natural de rasgar dinheiro se assim o quisessem), e gasto público disfuncional é problema público ou universal (políticos com dinheiro desviado em paraísos fiscais). Na verdade, desperdício é desperdício, não importa se público ou privado. Contudo, o desperdício é uma reclassificação de despesa com base em rendas auferidas por critérios de poder, seja na hierarquia do Estado, seja na hierarquia das corporações capitalistas. Se o fim desejado não é alcançado, o lucro em geral é. Do ponto de vista de uma economia capitalista, são transferências de propriedade. O problema econômico, não moral, aparece quando o dinheiro é desviado para fora do país e subtrai do fluxo circular da renda doméstico. Do ponto de vista mundial, contudo, que é uma economia fechada, não há como destruir riqueza por esta via, efetuando apenas redistribuição espacial. Da mesma forma, um empresário que rouba o próprio sócio e adota um estilo de vida esbanjador, não desperdiça dinheiro. Está gastando e alguma empresa está lucrando ao explorar a força de trabalho para produzir e vender os bens e serviços do nababo. Ele abre falência e surge outro em seu lugar. A lógica é sistêmica. A questão moral é a de um critério abstrato que geralmente não encontra respaldo na realidade (embora seja performativa e condicione resultados contábeis, mas por pressão política). Explorar o sócio ou os trabalhadores da empresa são formas distintas de redistribuição.

Portanto, se defender que o gasto estatal com a população mais necessitada não seja reduzido quando ela mais precisa dele é ser irresponsável, sob o pressuposto de que os ricos seguirão não pagando tributos nos montantes necessários para evitar que eles mesmos emprestem dinheiro a juros ao governo, então que assim seja. Irresponsabilidade aqui seria elogio, não rótulo para identificar os detratores dos interesses que se entendem como portadores do monopólio do conhecimento correto do funcionamento da economia abstrata e sem nenhuma relação com a história das finanças públicas. Mas tributar apropriadamente os ricos, com alíquotas bem maiores que as atuais e fechando os canais de isenção, elisão e evasão para paraísos fiscais como aqueles do Chicago “Boy” Já Vai Tarde Guedes ou do Bob Fields Grandson é igualmente uma questão moral, podendo ou não diminuir o déficit. É uma questão de justiça fiscal. Não deve ser vista como forma de tentar equilibrar como emulação da física o que não pode ser equilibrado e aumentar uma suposta eficiência (sinônimo de renda dos ricos neste caso). A ‘responsabilidade’ fiscal então não seria aceita por aqueles que gritam ‘irresponsável!’ para qualquer proposta que busque colocar a população pobre no orçamento e cobrar imposto de quem pode (ou deve) mas não paga. 

O terrorismo financista da responsabilidade fiscal avança até o paroxismo ao assumir que cortar gastos sociais (gastança) com a população pobre é bom para a população pobre. Aqui entra o truque do longo prazo. O sacrifício da população pobre hoje em benefício dos ricos rentistas permitirá aos ricos rentistas paradoxalmente investirem (mesmo que o ganho com juros sobre a dívida, cuja garantia é justamente a necessidade de responsabilidade fiscal, seja elevado e com risco praticamente inexistente de calote) e criarem empregos para a população pobre no longo prazo. Quando chega o longo prazo? Levantar esta questão também é irresponsável. 

O que é ser fiscalmente responsável, então? É manter um compromisso tácito com os ricos e poderosos. É ter a garantia de que os ricos poderão pagar poucos impostos ou sonegar em paraísos fiscais, sem incômodo. E que, não conseguindo (ou querendo) arrecadar impostos significativos desta malta, ou o governo corta os gastos sociais ou empresta daquela turba rica, pagando juros estratosféricos (escorchantes, diria um conhecido neoliberal) que nunca podem ser cortados ou limitados em função da própria responsabilidade fiscal. Cara eu ganho, coroa você perde.

A irresponsabilidade fiscal não deveria ser motivo de preocupação (claro, assumindo que não se quer um carguinho no governo federal e em seguida passar na porta giratória para a banca – neste caso, a defesa da responsabilidade ou pior, o silêncio, é oportunística – Contratos! Exposição!). A responsabilidade fiscal na Bananilga nada mais é que o compromisso com a estagnação, a desigualdade e o subdesenvolvimento. Ou seja, a questão da responsabilidade ou irresponsabilidade é sobretudo distributiva (quem paga imposto e quem recebe dinheiro ou serviços do governo). Defender a responsabilidade fiscal é defender a concentração de renda, com os rentistas mantendo seus privilégios em detrimento do resto da sociedade. E sem alcançar a igualdade contábil entre saídas e entradas, posto que praticamente impossível pelas necessidades do capital.

Assim, a responsabilidade não é apenas uma visão ingênua de que é possível compatibilizar os interesses divergentes e formar uma ampla conciliação de classes por meio do orçamento de despesas em igualdade com a arrecadação esperada. É pura e simplesmente a defesa dos interesses das finanças (garantidos meus juros, pode cortar todo o resto). Irresponsabilidade então é a defesa intransigente da destinação dos recursos arrecadados para os mais necessitados como prioridade (transferências) e para áreas financiadas com o trabalho social na forma de tributos (educação, saúde, pesquisa, diplomacia, administração da injustiça etc.). Sejamos, pois, irresponsáveis. Neste modo de produção, é impossível ser fiscalmente responsável se a escolha é pela base da pirâmide social.

(*) Bacharel, Mestre e Doutor em Economia

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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