Opinião
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13 de dezembro de 2022
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06:32

Futebol, Natal e nossos caminhos (Coluna da APPOA)

Foto: CBF/Divulgação
Foto: CBF/Divulgação

Robson de Freitas Pereira (*)

Mas sei de uma coisa; meu caminho não sou eu, é o outro, são os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro, estarei salva e pensarei: eis meu porto de chegada
Clarice Lispector

No momento em que escrevo, a Copa do Mundo de 2022 ainda não está definida. Não sabemos quem foi o campeão desta primeira edição no mundo árabe e, última neste formato de competição (parece que o numero de seleções vai aumentar significativamente das próximas vezes). 

Mas para a seleção brasileira já terminou: perdemos para Croácia. Frustração para milhões de torcedores; fossem os amantes regulares (e fiéis) do futebol ou aqueles que redescobrem o “esporte bretão” a cada quatro anos. O que nos leva a alguns pensamentos a respeito de nossa condição atual.

Inegável reconhecer que o futebol ainda é o esporte coletivo mais popular e agregador, espelho do pior e do melhor de nossa brasilidade – com toda a diversidade de elementos que este adjetivo implica. Afinal, faz algum tempo que nos perguntamos sobre o que nos define como nação. De qualquer maneira, ao nos referirmos a sua função agregadora, lembramos de Freud quando dizia que uma das fontes de nosso mal-estar civilizatório, talvez a mais difícil de lidar, é a relação com os outros, nossos “semelhantes”. 

Com relação a esta condição coletiva, talvez possamos fazer uma constatação otimista: nossa identidade nacional não depende tanto do futebol como antes. Desde 2014, quando não ganhamos a copa em casa (e tomamos uma goleada histórica), que este efeito aparece claramente: a derrota não foi uma tragédia nacional, ao contrário de 1950. É do jogo. A pátria não precisa mais calçar chuteiras (nem botas militares acrescentaríamos). O país ficou menos exótico aos seus próprios olhos – tem outras coisas além de samba, futebol e mulatas para  nos definir. Embora, ainda persistam alguns “hábitos” arraigados, como o ímpeto destrutivo para explicar um fato corriqueiro como uma derrota no esporte. Ainda precisamos achar culpados e destruí-los cabalmente; como se isto pudesse purgar o fracasso. Vide as acusações ao técnico Tite que foram muito além das críticas técnicas; desejos mortíferos disfarçados de “opiniões abalizadas”. Ainda precisamos de heróis ou culpados para serem execrados, ou exaltados, em praça pública. Nossa política recente é um bom exemplo. Lula venceu as eleições; mas muita gente não se conforma e sente-se injustiçada. Assim toca falar e fazer manifestos em nome do povo e demandar que forças militares assaltem o poder, derrubem os representantes das instituições que garantem a legitimidade da democracia e restabeleçam uma ditadura que a maioria nunca viveu realmente. O ressentimento é tamanho que não importa se algumas reivindicações possam estar apontando para o que temos de mais nefasto em nossa história: poder autoritário (que é diferente de autoridade), manutenção de relações ainda escravagistas e exaltação de práticas criminosas que pensávamos erradicadas como sarampo ou caxumba; leia-se o nazismo e seus campos de extermínio, eufemisticamente chamados de “solução final”. 

Isto nos permite comentar um outro tema: a proximidade das festas natalinas e de final de ano. Fim de ano já é uma época marcada por angústias das mais diversas, principalmente porque abre a possibilidade do reencontro familiar. Baita problema, porque neste ano a divisão político/ideológica adentrou os lares brasileiros. O bode entrou na sala e ficou. Em muitas famílias, não será possível se reunir. Além dos efeitos da pandemia, as feridas da divisão ficaram e não conseguem cicatrizar. Por um lado, demonstrou que laços consanguíneos ou de parentesco não são garantia para solidariedade ou amor fraterno. Alguns poderiam dizer, só evidenciaram um conflito de base entre as pessoas: o ódio fraterno, ou o narcisismo das pequenas diferenças – transformadas em grandes, revela que o homem é o lobo do homem. Se não comunga do meu credo é um traidor, se não tem o mesmo totem talvez não seja humano, pode ser comido, diriam os antropólogos. Em suma, nos colocou diante de uma realidade que mostra o quanto ainda temos que elaborar, lutar muitas vezes contra nossos próprios impulsos destrutivos,  para que uma democracia se sustente e uma vida em um ambiente menos poluído possa ser legado às novas gerações.

A epígrafe acima, alude a isto, de uma forma esperançosa, utópica e real; pois esta tensão de reencontro do outro diferente e semelhante simultaneamente é impossível de ser eliminada. Se desaparecer, adeus nossa condição humana. Muitos filósofos, poetas e psicanalistas entre outros trataram disto em sua maneira singular (Carlos Drumond de Andrade e Octavio Paz são dois deles). Parafraseando outro grande poeta: caminante no hay caminos/al andar se hace el camino. Somos responsáveis por nosso atos, mas o caminho, a caminhada não se faz sozinho. Boas Festas. 

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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