Opinião
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1 de novembro de 2022
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07:00

Um homem, o poema e a rua outra vez (Coluna da APPOA)

Arquivo pessoal
Arquivo pessoal

Marcia H. de M. Ribeiro (*)

Andar na rua é meu abrigo no desassossego. Pode bem imaginar o leitor a quantidade de passos nos últimos meses. Marcelo está morando numa avenida perto daqui onde nos cruzamos todos os dias desde que a insanidade cresceu. Ele vive onde eu passo. Ele e os dois cachorros sob dois colchões. Ao lado, um carrinho de supermercado e outros pertences. Uns dias atrás vi também dois livros. Um encontro marcado escrito na capa de um. Parei pela primeira vez. Pedi licença para fazer uma fotografia. Ele autorizou e ainda me entregou o outro livro. – Abre na página 150, disse. Obedeci. Logo começou a declamar o poema de memória: 

[…]

A esperança entreabria a verde palma

Ante meus olhos, tépida, fagueira,

Como um aroma que inebria e acalma …

Romaria de amor, doce romeira!

[…]

Não me pediu nada. Nem dinheiro. Tampouco parabéns. Na verdade, quem ganhou fui eu. Parti afetada de nosso encontro. Uma mistura de consternação e esperança. No caminho de volta para casa fiz uma brincadeira com as letras de seu nome. Imaginei agradecer o poema-presente no título de um escrito – Um verso a Mar(c)elo, plagiando o poeta Emicida – e com um trecho da canção  AmarElo. Mas, ao conversar com uma amiga sobre o quanto hoje estava mais difícil escrever e do que havia pensado, ela lembrou do sequestro do amarelo por uma vertente ideológica. E, pronto, caiu um interdito sobre o título. Bem assim se realiza a morte da palavra quando constrangida pelo discurso a representar uma só coisa. Quando a polissemia é proibida. Benditos poetas que torcem as palavras e permitem ler e ver outras coisas. 

Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes 

Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes 

Que nem devia tá aqui 

Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes 

Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nós?

Alvos passeando por aí 

Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes

Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência

É roubar o pouco de bom que vivi

O cursor pisca sobre o texto na tela do computador enquanto o tempo avança tal qual um relógio com pilhas gastas, neste domingo mormacento de eleições em Porto Alegre, e aguardo o começo da derrocada da extrema direita pelas urnas. A hora de escrever as últimas frases antes de enviá-lo para o Editor. 

Hoje é dia de comemorar! Amanhã recomeça o trabalho. Palavras para torcer e retorcer não faltam.

(*) Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA, e do Instituto APPOA – Clínica, intervenção e pesquisa em psicanálise.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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