Opinião
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22 de novembro de 2022
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07:06

‘Os olhos dos outros’ (Coluna da APPOA)

Manoel Madeira (Foto: Marco Nedeff/Divulgação)
Manoel Madeira (Foto: Marco Nedeff/Divulgação)

Lucia Serrano Pereira (*)

Neste mês da Feira, um livro. 

Ramiro e a vida prosaica e duríssima de um jovem na pensão, no centro de Porto Alegre. O que marca, na largada desse belo romance com pegada e ritmo de thriller (apesar de não se inscrever no estilo), são esses dias perto do fim do ano em uma Porto Alegre asfixiada pelo calor, sem respiro; a narrativa já parte do opressivo e, de repente, uma desorientação brutal. 

Ramiro está de saída e quando cruza com o Vagner da pensão surge certa estranheza – faz o cumprimento, mas o outro devolve o olhar meio surpreso. Até aí nada de mais, só um pequeno indício – essa surpresa. 

Vai ao supermercado, deslumbre com Maya, que atende no balcão. Ele pede para ela “o de sempre”, mas recebe da moça algo de impaciência. Até então, “o de sempre” era suficiente, mas não dessa vez.

“Os olhos dos outros” (Divulgação)

E quando Ramiro sai com sua pequena e medida compra, se formula pela primeira vez o que vai compor a teia do livro, que se dá no início pelo menor detalhe, e que depois se escancara: “Estranhamento. Há um desencaixe entre mim e o mundo.”

O livro fala desse desencaixe que tem a ver com muitos desencontros, com tantas situações que dizem do que não fecha na vida, para cada um, de muitas maneiras.

Desconhecimento – é quase do lado do fantástico o que vai acontecer. Ramiro simplesmente não é mais reconhecido pelos outros. O que já se intuiu com a surpresa de um e a impaciência da outra agora ganha lugar, e ninguém no seu mundo de relações o reconhece. Os amigos, o dono da pensão, os colegas do trabalho na Biblioteca Pública, ele passa a ser um estranho.

Vive um desespero absoluto: passa a ser visto com desconfiança, e perde os seus lugares. A situação com a pensão é exemplar. Perde tudo, é expulso, fica na rua, sem nada. 

“É estranho: eu reconheço perfeitamente o mundo. […] Na loucura, a pessoa se perde do mundo. No meu caso, foi o mundo que se perdeu de mim.”

E o livro nos joga por muitos caminhos da falta de reconhecimento e seus efeitos. O abandono, a mãe que vai embora aos seus 8 anos (o que houve??); os moradores de rua que tem também as vidas à margem (mas que são justamente os que oferecem acolhimento a Ramiro, mais do que os amigos de antes). O racismo, as situações que perpassam a vida de Maya e também a de sua família. O abismo entre ele que vem de rua de chão batido em Viamão e a namorada perdida – família de grana e situação social, bairro Moinhos de Ventos, escola de ricos, o encontro na UFRGS, mas entre eles algo que não se pôde transpor; e mais o brutal, na sua história, do conjugal do pai e da mãe.

No meio de tudo isso, a vida que atravessa, e o desejo que empurra.

O livro vai ser também uma história de desejo, de aposta, de amor, que vai se desdobrando no encontro forte entre Ramiro e Maya. 

Ramiro leva, na sua mochila, já no primeiro capítulo ficamos sabendo, “O conto da ilha desconhecida” de Saramago.

No conto da ilha desconhecida o homem que queria um barco vai ao rei. Espera dias infindáveis até ser recebido.  

Dá-me um barco. 

Para quê? Quer saber o rei. 

O homem chegava pela porta das petições (cheia de burocracia), mas o rei vivia sentado na porta dos obséquios (presentes e favores a ele). 

O homem que queria um barco insiste: “quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és.”

Não podemos nos ver se não saímos de nós mesmos.

O homem que queria um barco vai ser acompanhado pela mulher da limpeza, a mesma que servia o rei desde sempre, mas que sai pela porta das decisões, de uma vez por todas, mudando seu rumo, indo ao cais em busca do homem que queria um barco e seu sonho. Com quem se enlaça, embarca. 

Esse vai ser de alguma forma o caminho de Ramiro junto com Maya, “na nave” que vai ser sua casa – no carro que rouba no estacionamento do chefe – carro que carrega de tudo um pouco do que conseguiu juntar, depois que ficaram/roubaram suas coisas na pensão.

Vai ter o sexual, forte, e ao mesmo tempo uma poética amorosa nesse encontro com a menina que atende no super e que estuda astrofísica.

Eles se acompanham, e é pela mão de Maya que ele se anima a procurar a mãe, que não via desde criança, apesar do bilhetinho com o endereço dela há anos sempre na carteira.

O livro é este trilhamento mas que também é uma busca.

 A dor e o encontro. A dor e a perda. As dores, e a diferença quando se podem trilhar os caminhos dos encontros. A dor e a alegria do encontro.

Ao final do livro, o reencontro com a mãe – que o reconhece – permite algo que renasce nele e nela; vem para a mãe a dor absurda que a presença dele faz irromper, como se lhe caísse em cima toda a falta que viveu e que também o filho porta… Ramiro recompõe então a cena perdida, aquela dos oito anos – do pai expulsando a mãe que está gravida do professor, e que vai embora com ele.

O livro lê, profundamente, nosso tempo e os conflitos tanto do lado das subjetividades quanto do encontro do que nos implica no laço social e discursos que atravessam a contemporaneidade. 

Há dois caminhos que nos conduzem no livro, como dois mapas que se misturam e se sobrepõem. 

De um lado, a intimidade com a cidade, com Porto Alegre, que vai nos dando chão. Vemos a cidade se desenhar de uma forma muito impressionante, seus trajetos a pé, seus prédios, suas ruas, o ganho de outras distâncias, com o carro, seu barco, que carrega tudo de seu/do outro. Aqui como em Ausentes, onde transitamos por Paris, o primeiro romance de Manoel.

A cidade que é também acontecimento, personagem, o mar da navegação e que se mistura com esse outro mapa que é o da Literatura.

“Súbito, estou perdido. No bairro em que vivo há tantos anos. Bar Justo, imenso letreiro. Estética e saúde. Brechó do Futebol, Almondegaria, Borges, Loterias, Cinema Capitólio, Boka Loka, Ajaccio Mercantil, ACM, Rabusch, Cinema Capitólio, Krusburguer, Nova Vida Restaurante, Rabusch. Os ouvidos burburinham loucos, “becos da memória, memórias póstumas, o processo, paixão segundo g. h. – Ramiro, paixão, – grande sertão veredas, crime e castigo, triste fim.”.

Os manuais de psiquiatria na Biblioteca Pública, onde busca um diagnóstico para o que lhe acontece. Os labirintos da biblioteca, trabalho e refúgio. 

E isso atravessa todo o livro. O que faz com que o leitor ande “de verdade” dentro da cena da cidade, e do mundo da Literatura.

Turbilhão e vertigem

Turbilhão desencadeado no texto de Manoel, isso faz uma marca forte no livro, na forma da narrativa, em cada trajeto onde no mais das vezes andamos com as angústias, os medos, os imprevistos, os perigos – o carro roubado, a falta de grana, a falta de casa, o pouco de tudo, as pequenas coisas que permitem o passo seguinte, sem certeza de nada. A dúvida com cada encontro, e as dúvidas sobre o que vai ser dele, vai conseguir?

E o ponto mais vertiginoso, o umbigo do sonho/texto. É na cena magnífica que acontece quando ele literalmente mergulha no conteiner do lixo. João, o morador de rua, catador, ajuda Ramiro a buscar no lixo o que podem levar para conseguir algum dinheiro. E Ramiro vai. E ali dentro encontramos todos os restos do mundo, todos os excessos que ultrapassam Ramiro, seus fantasmas esquartejados, com o chorume fazendo a liga viscosa na qual ele precisa mergulhar para, de alguma forma, poder ultrapassar. 

O reconhecimento do outro, fundamental para a constituição de cada um, e para ajudar a dar sustentação de nossas vidas. Ao mesmo tempo, poder reconhecer o que não vem pelo reconhecimento, mas que nos permite a coragem de se aventurar para poder encontrar com o outro, ilha desconhecida que tem a ver também com o desconhecimento íntimo que nos permite aventurar.

Tive o privilégio, junto com Luís Augusto Fischer, de poder fazer o lançamento do livro de Manoel Madeira nesta Feira do Livro, neste mesmo centro da cidade onde se passa esta aventura. E ainda mais, estacionei meu carro, indo para a conversa, no estacionamento Rex, que é, por coincidência ou pelos mapas que se encontram, o mesmo onde Ramiro encontra o carro/barco, e o leva para navegar.

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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