Opinião
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26 de outubro de 2022
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09:39

Vamos falar sobre o Vox (por Baltasar Garzón)

Baltasar Garzon (Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil)
Baltasar Garzon (Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil)

Baltasar Garzón (*)

Lembro-me que antes da pandemia vários jornalistas se perguntavam se falavam ou não sobre Vox, se convidar ou não seus líderes para programas de rádio ou televisão e tratá-los como qualquer outro partido político. Foi um debate interessante, porque contrastava o direito à informação e à liberdade de opinião, por um lado, e por outro significava dar uma plataforma a mentiras e discursos de ódio que geram tantos danos na sociedade. Naquela época já era evidente que a Vox era muito burburinho sobre nada, sem uma visão sólida do país ou das propostas de políticas públicas.

Naquela época, Abascal gostava de montar cavalos com a camisa desabotoada e, assim que lhe foi oferecido o microfone, ele gritou contra tudo e todos, mas não conseguiu articular uma resposta consistente a perguntas simples sobre aspectos da gestão de um país. Em um evento televisionado, em resposta a perguntas razoáveis da plateia, ele respondeu: “Eu não refleti” sobre isso, é “algo em que não pensei” e outras respostas semelhantes. Tanto que seus concorrentes mais próximos, o Partido Popular, aproveitaram esse material audiovisual em uma campanha eleitoral para ridicularizá-lo.

Quem diria que Vox se tornaria a terceira força política na Espanha e que os partidos relacionados, abertamente fascistas, conseguiriam formar um governo na Itália, liderado por uma mulher cujo slogan de campanha era Deus, Pátria e Família, e que pensa que Mussolini era um patriota. A Itália deve ser o alarme para toda a Europa. Agora, no país vizinho, Meloni aparece com essa aparente bondade que esses partidos usam para apaziguar o povo até que eles decidam extrair seu verdadeiro eu supremacista e negacionista na frente de todos aqueles que não são seus. E o Brasil corre o risco, se Lula não o impedir, de deixar a porta aberta para mais extremismo e insegurança.

Em um artigo interessante, o historiador Ernesto Galli della Loggia afirma que durante anos a esquerda abusou da bandeira antifascista acusando “qualquer rival mais à direita de ser fascista”, razão pela qual a mesma coisa aconteceu como na “fábula de Pedro e do Lobo”. Ele acrescenta que a ameaça fascista tem sido maior fora da Itália do que no próprio país.

Foi mesmo assim? Eu não minimizaria os primeiros avisos contra o fascismo. No meu último livro, Os Disfarces do Fascismo, eu argumento claramente que esses movimentos, que de alguma forma foram normalizados e gentilmente chamados de extrema direita, são partidos abertamente fascistas, e que eles representam um perigo real de que devemos lutar com todas as armas da lei e da democracia.

Minimizando o fascismo

“Somente a partir de uma posição de privilégio pode o fascismo que cerca Meloni e seu partido ser minimizado, considerado irrelevante. Só aqueles que nunca perceberam de perto o perigo representado na prática pela normalização dessa ideologia criminosa podem subestimá-la”, disse Alba Sidera, jornalista especializada em análise política e grupos de extrema-direita.

Especialmente interessante é sua conclusão: “Depois da primeira normalização de Meloni que lhe permitiu ganhar, agora testemunharemos a segunda, aquela que lhe permitirá governar.” E ela acrescenta que Steve Bannon já disse sobre ela em 2018 que admirava “sua capacidade de parecer menos perigosa do que ela”. Alba Sidera termina apontando o perigo representado pelas sociedades ocidentais sendo “perder o medo da ideologia que, no século passado, por consenso social, foi definida como o mal absoluto…” Nesse sentido, uma grande porcentagem de comentaristas já foi cativada por sua linguagem amigável e manipulada, a ponto de considerar esses grupos, na França, Suécia, EUA, “menos” perturbador, de modo que o risco de expansão é evidente.

Precisamos de líderes democratas de direita, e pelos democratas quero dizer antifascistas, como Churchill era em seu tempo, ou como Angela Merkel não era há muito tempo. Por outro lado, na Espanha há um flerte constante entre o PP e o Vox. Sem mencionar o novo governo italiano, que, apesar da encenação de diferenças quase anedóticas sobre Putin e a guerra na Ucrânia, com os vazamentos das palavras de Berlusconi no meio – que, aliás, se proclama como o último líder ocidental real – a verdade é que eles formaram um governo e um momento de incerteza começa dentro da União Europeia.

As barbas do vizinho

Temos que começar a tremer vendo como as barbas do vizinho foram cortadas? Nestas páginas, Alfons Cervera escreveu um artigo recomendado: “Pouco a pouco os fascismos foram legitimados. Neo-fascismos ou pós-fascismos, como são agora chamados, como se houvesse muita diferença entre os fascismos de agora e os de antes. Pensamos que estávamos fora de perigo aqui. Nós olhamos para Vox e eles não levantaram um gato da cauda. O PP manteve a essência do franquismo: nunca foi um partido antifascista. E você não pode ser democrata se não for antifascista. Nós sabíamos disso. (…) Agora, a extrema direita triunfou na Itália e muitos meios de comunicação espanhóis chamam de direita. É assim que eles normalizam Núñez Feijóo e preparam o triunfo do PP nas eleições do ano que vem…”

Na Europa, a extrema direita está mais forte do que nunca após as vitórias eleitorais na Suécia e na Itália. Uma em cada seis cédulas europeias é para eles de acordo com o estudo realizado pelo projeto PopuList. E eles começaram a partir de apenas um mínimo de 4% nos anos 80.

Eu acho que sim, que era e é necessário falar sobre Vox, mas não para dar-lhes uma plataforma sem mais e ecoar seus escândalos, mentiras e agressões verbais, mas para desmascará-los. Como aponto em Os Disfarces do Fascismo, essa ideologia se alimenta da ignorância de seus seguidores, em quem instila medo de um inimigo comum, geralmente um grupo vulnerável, como judeus, ciganos, imigrantes ou menores estrangeiros desacompanhados (menas), que culpa por todos os males deste mundo e depois, baseado em um bombardeio constante de farsas e notícias falsas, semear o ódio, que mais cedo ou mais tarde acabará em violência. Será então quando eles esconderão a mão e olharão para o outro lado, como aconteceu na noite do vidro quebrado (Kristallnacht) na Alemanha nazista em 1938, ou no ataque de granadas contra um centro de “minérios” em Madri em 2019.

E tudo isso com a ajuda da propaganda de certos meios de comunicação – estou relutante em chamá-los de notícias – e a não menos colaboração de alguns juízes.

Disfarçado de toga

Preocupa a atitude daqueles juízes que não só atenderam às exigências infundadas da Vox, mas, inclusive, deram-lhes a razão. Foi o caso do recurso ao Tribunal Constitucional sobre as restrições durante a pandemia, na qual foi decidido que o estado de alarme não era a ferramenta para enfrentar a situação difícil, pois restringia as liberdades, e que o instrumento adequado era o estado de emergência, muito mais restritivo na prática. Uma declaração totalmente fora do lugar do meu ponto de vista e da de muitos outros juristas.

O fascismo também muitas vezes se disfarça em uma toga e usa a máquina judicial para seus próprios interesses. É um remanescente da ditadura cuja obsessão era deixar tudo “amarrado e bem amarrado”, com o Judiciário sendo o guardião desse status quo autoritário, com muitos juízes que sentem nostalgia por esses tempos, alguns sem tê-los vivido.

Normalização

Devemos alertar para o fascismo e desmascarar isso. Não esqueçamos que eles já têm visibilidade suficiente nas redes sociais, precisamente onde os mais jovens estão, muitas vezes presas fáceis para suas contínuas farsas e apelos a sentimentos patrióticos, vazios de conteúdo real, mas que seduzem adolescentes que precisam de aceitação e pertencem a um grupo que os lisonjeia e os diverte com mensagens envolventes.

Também não criamos essa imagem de que Vox está em baixa. A extrema-direita internacional não permitirá isso. Ele tomará novas formas, como a ação de Macarena Olona no Panamá que a jornalista investigativa da InfoLibre Alicia Gutiérrez diz tão bem, ou se disfarçará de novas formas dentro da formação, mudando tudo para que nada mude. Não caiamos no que Alfons Cervera diz, quando ele reflete que o que estamos construindo são democracias frágeis que naturalizam os fascismos, que abrem suas portas para eles para que possam destruí-los de dentro. Expressa algo muito verdadeiro, e isto é, a agitação social leva aos triunfos da extrema direita. “Aqueles que têm menos votam nele. Eles acham que aqueles que não trabalharam em suas vidas salvarão a vida daqueles que trabalharam a vida toda. A vida é um maldito paradoxo muitas vezes.

Um paradoxo que deve ser desmantelado colocando as coisas em seu lugar. Não, Vox não trabalha para a sociedade; Não, Vox não defende liberdades. Também não protege os direitos das mulheres, quando fala de ideologia de gênero. Eles trabalham por si mesmos cortando direitos fundamentais, como já vimos na Polônia ou nos poderosos Estados Unidos nas mãos de sua Suprema Corte conservadora e republicana.

Em uma espécie de mimetismo ou submissão à Vox, o líder do PP, Alberto Núñez Feijóo, anuncia que, se chegar ao governo, retirará certas leis com as quais não concorda. É isso que nos espera se eles alcançarem o poder, cortes de direitos e retrocessos na democracia. Temos tempo para evitá-lo. Para desmascarar. Vamos falar sobre Vox.

(*) Jurista, presidente da Fundação Internacional Baltasar Garzon (FIBGAR)Publicado originalmente em Info Libre (Espanha).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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