Opinião
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7 de outubro de 2022
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14:22

Concessão do Jardim Botânico de Porto Alegre: falta de transparência e desvio de função (por Paulo Brack)

Jardim Botânico tem coleções de plantas raras. (Foto: Maia Rubim/Sul21)
Jardim Botânico tem coleções de plantas raras. (Foto: Maia Rubim/Sul21)

Paulo Brack (*)

No dia 4/10/2022, foi publicado, no Diário Oficial do Estado do RS, o edital de concessão do Jardim Botânico de Porto Alegre (JBPA), a vigorar por 30 anos, com leilão previsto para 8/12/2022 a partir do valor mínimo de 27 milhões de reais. Cabe destacar que o governo concede parte do uso dessa área, alegando falta de recursos, mas esquece de dizer os recursos para o JBPA poderiam ser angariados por meio de cobrança de multas ambientais, que totalizavam 26 milhões de milhões há cerca de 7 anos, mas prescreveram por falta de mecanismos de cobrança, ou melhor, por falta de vontade política em efetuar sua cobrança…

Cabe lembrar que o JBPA é considerado um dos cinco maiores jardins botânicos do Brasil e tem classificação A, conforme a Resolução Conama n. 339/2003, possuindo equipe de pesquisadores de excelência, juntamente com o Museu de Ciências Naturais (MCN), em parcerias com universidades e outros centros de pesquisa. Também vale assinalar que corre na Justiça Estadual processos movidos pelo setor ambiental do Ministério Público Estadual, acompanhados pelo setor jurídico de ONGS, quanto à precariedade da estrutura restante e a indefinição da continuidade de serviços essenciais ligados aos órgãos que pertenciam à extinta Fundação Zoobotânica, além do JBPA, o MCN e o Parque Zoológico (Zoo). 

Falta de Transparência

O governo justifica que a decisão teria sido aprovada recentemente pelo Conselho Gestor do Programa de Concessões e Parcerias Público-Privadas do Estado, sediado na Secretaria de Planejamento Governança e Gestão (SPGG), ou seja, encabeçado por outra pasta que não a da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Infraestrutura (SEMA). Entretanto, no sítio eletrônico do Conselho, as Atas de 2022 e 2021 não aparecem (a última sendo de agosto de 2020) e as Resoluções em três anos (últimas no máximo de 2019) [1].  

É importante destacar que durante o período de consulta e das audiências públicas do processo de concessão, o governo admite ter recebido 36 contribuições de pesquisadores, entidades ambientalistas e pessoas da sociedade, preocupados com o tema, entretanto, não houve retorno quanto ao atendimento ou não de suas sugestões. O InGá, por inúmeras vezes participou de várias audiências, inclusive referente à concessão do Parque Estadual do Turvo, e a situação foi semelhante: total ausência de respostas.  

Outro aspecto importante a considerar é a ausência de uma avaliação técnica ambiental, isenta, ou de âmbito de Estado e não de governo. O JBPA é um patrimônio de 63 anos, os governos passam, mas o patrimônio fica e deve seguir se desenvolvendo. No caso atual, fica evidente que os estudos e a modelagem da concessão, elaborados por empresas privadas e de fora do Estado, não possuem a expertise e não contaram com a análise técnica ou mesmo participação dos técnicos especialistas da SEMA que trabalham no JBPA em conjunto com o MCN. Ali estão sendo mantidas milhares de plantas de diferentes regiões do Estado e do mundo, e em especial uma centena e meia de plantas nativas do RS, em diferentes categorias de ameaça de extinção, especialmente cactáceas, bromeliáceas, árvores de pontos extremos do Estado, entre outros aspectos deste patrimônio verde biodiverso. Os técnicos da SEMA que trabalham na área desconheciam a construção e o teor do Edital de concessão

Os estudos que visam as concessões provêm de iniciativa do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com contratação do consórcio Araucárias e do Instituto Semeia, entre outros setores privados ligados ao incremento de negócios, agora “verdes”. Prezam-se neste modelo as vendas de muitos produtos, não necessariamente sendo contempladas as áreas de educação ambiental, pesquisas, manutenção e divulgação de acervos botânicos. Há que se considerar que as ações vinculadas aos acordos internacionais e as Metas que o Brasil assinou junto à Convenção da Diversidade Biológica e mesmo com os próprios Objetivos do Desenvolvimento Sustentável 2030, coordenados pela ONU, são funções de Estado e os governos devem levar adiante isso, e não setores de áreas comerciais como os responsáveis pelos estudos. Não se trata de trazer aqui um demérito a setores empresariais, legítimos, mas destacar que estão limitados a temas como turismo ecológico e áreas afins, muito pouco além disso. 

Pelo menos, estudos deste porte e que afetam um Patrimônio Ambiental do Estado (Artigo 8o da Lei Est. No 14.982/2017) – que veda destinação diversa – deveriam ser assinados por profissionais com experiência na área ambiental, preferencialmente com ART (Anotação de Responsabilidade Técnica), além do fato de que a condução do trabalho não acompanha nenhum Termo de Referência, que deveria ter sido elaborado pela equipe técnica da SEMA.  Havíamos solicitado à SEMA os possíveis documentos da área do corpo técnico concursado e especialista, que avaliasse a viabilidade de concessão e também solicitamos os nomes e a formação profissional dos membros das equipes de técnicos privados das empresas contratadas pelo BNDES que fizeram essa análise e proposição, mas não tivemos retorno. 

Desvio de finalidades

No perfil dos estudos, relatórios e proposições encomendados pelo Estado para o BNDES e empresas consultoras associadas, as palavras “comércio” e “comercialização” são citadas mais de 100 vezes, enquanto as palavras “plantas ameaçadas” ou “espécies da flora ameaçadas de extinção” inexistem nos documentos.  Cabe lembrar que em 2018 um Trabalho de Conclusão da bióloga Júlia Fialho Soares [2], com parceria dos técnicos do Jardim Botânico, contabilizou coleções que abrigam mais de 140 espécies de plantas ameaçadas de extinção “ex situ” (fora da natureza) a partir do Decreto Estadual N. 52.109/2014, que assinala 804 espécies ameaçadas para o RS, o que perfaz cerca de 17%, em categorias como criticamente ameaçadas, em perigo e vulneráveis. Cabe lembrar que a Convenção da Diversidade Biológica recomenda 75% de espécies em condições “ex situ”, ou seja, nos Jardins Botânicos. A defasagem é evidente.  O público deveria ser estimulado a conhecer a importância do tema, mas a concessão não prevê esta ênfase.

No que toca à expansão das atividades em finalidades fora dos objetivos principais de um patrimônio como um jardim botânico, com coleções de plantas, há que se destacar, por exemplo, que o prédio do orquidário seria transformado em um “restaurante botânico”, enquanto o antigo prédio que abrigava bromélias (bromeliário) está planejado para ser transformado em lojas de souvenir

Por que não estimular as pessoas a levarem um piquenique ao Parque? Precisamos estimular sempre o consumo como condição à conservação da natureza? Isso não é contraditório à educação ambiental? 

Estão ainda planejados aviários, aquários, borboletários (essa, enfim, uma boa proposta), pontes circulares, prédios ultramodernos que poderão se expandir sobre a vegetação e destoar da paisagem e dos objetivos deste nobre espaço que deveria abrigar plantas diversas e auxiliar as pessoas a conhecerem este patrimônio dos seus vários aspectos (conservação, beleza, raridade, distribuição geográfica, grupo botânico, usos, etc.). No que toca ao aviário, seria prevista uma estrutura e criação de animais em cativeiro ou semi-cativos, situação questionável, esquecendo-se que a área de 36 hectares do Jardim Botânico já abriga muitas dezenas de espécies de fauna de aves soltas e nativas, cantando em meio à copa das árvores. Bastaria, quiçá, as pessoas observarem com binóculos, mesmo com o aluguel de tais equipamentos e orientação por ornitólogos ou guias turísticos, em um outro modelo de eventual concessão, mais restrita, controlada e ecologicamente razoável e preferencial.

A situação não para por aí, pois o desvio de finalidades do JBPA, além da ênfase a lojas, restaurantes, inclui atividades esportivas e de aventura nem sempre vinculadas à flora com o planejamento de incremento de infraestrutura para a realização de eventos e festas

Consideramos que uma área de Jardim Botânico é um grande museu a céu aberto, uma grande sala de aula, mas estamos preparados para a circulação de bicicletas alugadas ou veículos elétricos não exclusivos para cadeirantes e a pessoas com deficiências? Você já se imaginou em um museu, e atrás de você estarem circulando pessoas com patinetes e bicicletas? 

O conflito entre os objetivos do JBPA, do MCN e o concessionário serão inevitáveis, já que são previstas expansões de prédios e estruturas que podem afetar, externamente, coleções botânicas, ou internamente espaços de laboratórios, gabinetes de pesquisadores, salas de exposições, coleções científicas e espaços de acervos de coleções científicas de animais, plantas e fósseis que representam a biodiversidade nacional e internacional, com ênfase no Rio Grande do Sul. O regramento desta relação não está claro. 

Documentos de Planejamento do JBPA desaparecidos e incertezas crescentes

Houve, ao longo destas duas últimas décadas, a construção de vários documentos por parte do corpo técnico, além do Plano Diretor do Jardim Botânico, que sofreu modificações destituídas de justificativas para atender o Edital de Concessão. Entre estes documentos que precisam retornar à página da SEMA e voltar à funcionalidade necessária do serviço público em áreas essenciais como a do JBPA em associação com o MCN, mas desaparecidos há muito tempo, destacam-se:  a obediência a um Plano Diretor do JBPA, com uma atualização técnica e não meramente burocrática para atender concessionários;  uma Política de Pesquisa já construída e elaborada, mas que requer reestruturação do corpo técnico e de estrutura física e de recursos; uma política de coleções, já estabelecida, mas que vai se perdendo pelo desaparecimento da memória e da estrutura antes existente na FZB; um documento de Regras de Uso; documentos de divulgação que saíram do ar (ausência de sítio-eletrônico de divulgação e  setor de divulgação, antes existentes na FZB e ainda inexistente na SEMA);  muro caído há mais de meia década, já cobrado seu reerguimento pela justiça estadual, o que permite invasões, roubos, etc. 

Sem dúvida, um dos principais itens de preocupação e incerteza trata-se da garantia da manutenção da Categoria A, obtida pelo JBPA, com base na Resolução Conama n. 339 / 2003, ainda na gestão da Fundação Zoobotânica, agora extinta. Lembramos que os objetivos de um jardim botânico são científicos, educacionais, culturais, de conservação, de divulgação, com destaque à manutenção de acervos, propagação de plantas, pouco usuais, para doação ou venda ao público. A resolução do Conama e o Plano Diretor do JBPA destacam a necessidade fundamental da manutenção dos espaços temáticos já planejados há décadas, com plantas de interesse cultural, fitogeográfico, taxonômico, com amostras de várias regiões do Brasil, do RS (Mata Atlântica e Pampa), além de plantas ornamentais e de maior potencial paisagístico, de outras partes do mundo. Um viveiro de mudas diversas deve ser mantido, associado às pesquisas e à diversidade daquilo que não se encontra em viveiros comerciais. Mas, para isso, deve-se resguardar a estrutura humana de excelência, o conhecimento técnico de funcionários dedicados há décadas a coletar material, incluindo registros e cuidados com seu cultivo, propagação e disponibilização de plantas e conhecimentos ao público.

Como a Sema vai dar continuidade a tudo isso se não há mais, a partir da extinção da FZB, um diretor do Jardim Botânico e uma estrutura interna de chefias, necessárias ao funcionamento de um Jardim Botânico? A partir da extinção no governo Sartori, pela Lei n. 14.982/2017, de 2017, não houve nenhum avanço e, ao contrário, o JBPA e o MCN foram perdendo técnicos e receberam gestores externos ao quadro, os chamados cargos de confiança, que são muito mais executores políticos de governos nos órgãos (interventores?), do que gestores de Estado. Além do afastamento deliberado, por parte do governo, dos quadros técnicos especializados na gestão, houve perda de caráter de instituições de pesquisa e, por consequência, de fomentos à investigação científica e de bolsas de iniciação científica, além de prejuízos na obtenção de recursos para projetos de pesquisa, destacando-se a ausência de programas especiais como o RS Biodiversidade e Mata Atlântica KFW.

Outro aspecto a levantar é que sem uma avaliação independente de parte da área técnica da SEMA, sem pressões governamentais ou econômicas, o processo apresenta alto risco pela ausência de limites claros ao concessionário, indefinição quanto a uma fiscalização rigorosa por parte do Estado, entre outros aspectos, sem falar no preço do ingresso que será majorado a fim de contemplar os interesses comerciais da empresa que ganhar o leilão. Quem controla a possível elitização de quem conta com mais recursos para visitar o parque? Permanece a incógnita quanto à continuidade da conservação, da pesquisa, da propagação de plantas, da educação ambiental e outras funções a serem mantidas pelo Estado, e que teoricamente receberiam algum apoio, como o ínfimo 1% do valor dos ingressos ao JBPA. 

Finalmente, concluímos que o presente conteúdo do processo de concessão exposto no Edital do dia 4 de outubro de 2022 não teve transparência, não atende às finalidades de um Jardim Botânico, tornando-se uma peça meramente comercial e de geração de negócios, o que se contradiz à educação ambiental e aos objetivos deste imenso patrimônio, já reconhecido em Lei. Assim, portanto, as entidades da sociedade, e o InGá particularmente está entre elas, virão apelar ao governo do Estado pela nulidade deste processo, e que as concessões, se oportunas, devem ser limitadas a determinadas atividades, em que o arcabouço de Leis, Resoluções e Plano Diretor sejam submetidos à avaliação do corpo técnico da SEMA para uma outra rodada de debate com a sociedade. 

Notas

[1] Visualização da página eletrônica no dia 06 de outubro de 2022, não constam as atas a partir de agosto de 2020. https://parcerias.rs.gov.br/atas-de-reunioes

[2] Soares, J. F. (2018) A flora do Rio Grande do Sul ameaçada de extinção representada nas coleções ex situ do Jardim Botânico de Porto Alegre. TCC. Biologia. UFRGS. https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/230439

(*) Professor Titular do Departamento de Botânica da UFRGS e membro voluntário da coordenação do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – InGá

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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