Opinião
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3 de outubro de 2022
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09:27

A crise da direita: do Brasil a Montenegro (por Joana Mortágua)

Foto: Joana Berwanger/Su21
Foto: Joana Berwanger/Su21

Joana Mortágua (*)

As eleições italianas voltaram a chamar a atenção para a estreita correlação entre a vitória de candidatos da extrema direita e o eclipse eleitoral da chamada direita “democrática” ou “moderada”. Com diferenças tão grandes como a distância que as separa, as vitórias de Trump, nos EUA, e de Bolsonaro, no Brasil, já tinham anunciado este fenómeno. Em vésperas de eleições no Brasil, vale a pena lembrar o que aconteceu.

Durante anos, pelo menos entre 1994 (Collor de Mello) e 2013 (Dilma Rousseff), o Brasil foi governado por uma alternância entre o PSDB e o PT à frente de uma super maioria no Congresso Nacional, ambos dependentes de um PMDB especializado em venda de apoio parlamentar.

Este modelo, a que Marcos Nobre chamou pemedebismo, criou, segundo o autor, um engarrafamento no centro político em torno da gestão do neoliberalismo. Esse modelo aprofundou-se com crise económica e, em 2014, foi personificado pela reeleição Dilma Rousseff numa candidatura conjunta com Michel Temer (PMDB), que foi eleito seu vice-presidente.

Até que, na famosa escuta “com Supremo, com tudo”, o Senador do PMDB Romero Jucá e um grande empresário brasileiro estabelecem as bases de um acordo nacional para substituir Dilma por Michel Temer e dessa forma delimitar a LavaJato “como está”.

A ideia da direita tradicional, representante da burguesia brasileira, era aproveitar a grande onda de protestos populares que ocupava as ruas desde 2013, motivada pelas políticas de austeridade e pela indignação nacional causada pela Lava Jato, derrubar o PT e regressar ao poder, como normalmente, por via da alternância nas eleições de 2018. Mas isso não foi possível.

Nem o movimento popular anti-sistema e anticorrupção, nem a pequena burguesia radicalizada, que continuaram mobilizados por plataformas reacionárias, nem a concentração das forças autoritárias do país, incluindo as saudosistas da ditadura militar, se sentiam representados nas candidaturas dos partidos tradicionais.

A própria crise moral do regime e a trituradora da Lavajato fizeram esse trabalho, deixando como possibilidade inédita um antigo militar sem méritos conhecidos mas que correspondia aos valores da época e (até então) não tinha sido manchado pelo sistema.

Em última instância, Bolsonaro acabaria por troçar dos golpistas que lhe abriram espaço, humilhando-os nas eleições de 2018. Gerardo Alkmin (PSDB) teve 4,76% e o candidato do (P)MDB 1,20%. Bolsonaro arrasou a direita golpista e provocou uma crise brutal nestes partidos, que perderam votos e base de apoio, a ponto de ter dividido o PSDB, entre bolsonaristas novos, João Dória ou Rodrigo Maia, e atuais apoiantes de Lula, como Alkmin ou FHC.

Pouco a pouco, Bolsonaro engoliu todos aqueles que, dentro ou fora do Governo, lhe podiam fazer frente e Sérgio Moro é o melhor exemplo. De herói da redenção nacional, putativo candidato presidencial e ministro da justiça até à situação de possivel perdedor na disputa para o Senado foi um pulinho. Bastou um empurrão.

Claro que o Bolsonarismo tinha apoio no congresso mais conservador de sempre. A bancada BBB “bala, boi e bíblia” nunca fora tão grande, e essa foi a sua principal base de apoio – uma aliança entre fundamentalismo religioso, ultraliberalismo e reacionarismo social. À qual a direita tradicional cedeu.

Durante o seu governo, Bolsonaro manteve uma base hipermobilizada, radicalizada, e esforçou-se por manter posições esteticamente anti sistema, apesar de ser Presidente. Trouxe militares, criou conflitos com o Supremo Tribunal Federal, e até com o Congresso. Manteve maiorias por distribuição de um orçamento secreto, conseguiu acordos ao centro por via de reformas económicas.

No entanto, as eleições estão aí e Lula vai à frente em todas as sondagens. Há muitas razões que explicam este avanço, desde logo a memória de um tempo de melhoria geral da qualidade de vida e a possibilidade de afastar uma personagem tenebrosa e perigosa para a democracia brasileira.

Mas, olhando para o embate eleitoral, há outra coisa que salta à vista: a burguesia não conseguiu uma terceira via. A candidatura de Lula absorveu todos os que na direita “tradicional” e “moderada” temeram um golpe antidemocrático ou perceberam que já não tinham espaço no bolsonarismo. Todos os restantes foram engolidos por ele.

Se a direita dita tradicional não quer olhar para Itália (ou França), ponha os olhos no Brasil. Não sobrou nem um Montenegro para amostra.

Artigo publicado no jornal “I” em 29 de setembro de 2022 e no site Esquerda.Net (Portugal)

(*) Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda (Portugal), licenciada em relações internacionais

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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