Opinião
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6 de setembro de 2022
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06:00

Violência íntima e seu destino coletivo (Coluna da APPOA)

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Alfredo Gil (*)

Se a fala que se desdobra no encontro psicanalítico é fundamentalmente íntima, ela ecoa muitas vezes, intimamente, as tensões socias que vivemos e, revelam-se através  dela, de modo quase imediato, conflitos agudos de nossa sociedade.  

Tendo a pretensão de dar voz a esta articulação, ou seja, da passagem de uma apreensão microscópica do sofrimento de um sujeito e seu prolongamento desde uma perspectiva macroscópica no âmbito social, me dei o trabalho de uma composição híbrida, soma de diferentes casos que conduzo para demonstrar esta aproximação entre o íntimo e o coletivo. Tratar-se-á da construção quase ficcional de um caso para fazer minha demonstração, visto que não estamos aqui num espaço de produção científica de pesquisa devendo-se respeitar o sigilo profissional, além, e principalmente, a confiança a todos que me confiam seus sofrimentos.   

Nesta construção tratarei de alguém que me consulta por ansiedade e medo generalizado. O confinamento de 2020 a isolou definitivamente em sua casa ocasionando a interrupção de sua atividade profissional. As tentativas de retomar seu trabalho fracassaram, e, assim, ela decidiu pedir sua aposentadoria antecipada. 

Foram trinta anos de experiência e de grande dedicação em sua função de ensino. No entanto, ela se diz decepcionada com a queda do nível dos alunos, no decorrer dos anos, e, sobretudo, chocada pela falta de respeito e animosidade entre as pessoas; não somente dentro do quadro profissional, mas na cidade, nas ruas e no transporte. No trajeto de dez minutos que faz a pé para chegar onde a recebo, o sentimento de insegurança é permanente. Ela admite acelerar o passo tão logo perceba alguém nas suas costas. Intranquilidade constante desde que se encontre fora das quatro paredes do lar, que ela justifica pelo aumento da violência no espaço público.

A descrição da violência que sente vinda dos outros, seja intencionalmente ou indiretamente, ocupa todas as sessões. São descrições detalhadas que corroboram o fato de que o mundo em que vive é ameaçador e perigoso, impedindo-a de habitá-lo serenamente. “O mundo é violento e eu não tenho como mudá-lo”. 

Tais afirmações, tão contundentes, me levaram a pensar que talvez não tivesse como ajudá-la. Porém, lhe convidei a dar alguns passos atrás na sua história sugerindo que provavelmente os encontros com a hostilidade alheia fossem anteriores a sua entrada na vida ativa do trabalho. Após um certo esforço, de fato, ela recordou diferentes episódios quando, ainda adolescente, indo para o liceu, sofreu assédios verbais e de conotação sexual, além das “tocadinhas” no ônibus. 

Mas, a evocação dessas lembranças de quando era jovem mantinha e confirmava a estrutura binária de um mundo hostil, de um lado, e sua pessoa, de outro. Sempre o mesmo mundo que, como afirma, “não pode mudá-lo”. 

Assim, ousei dar um passo suplementar sugerindo que o encontro com a violência é uma experiência que talvez tivesse feito ainda criança e com pessoas e familiares importantes para ela, que a amavam; que a animosidade do mundo, contra a qual ela se defende constantemente hoje, talvez tenha sido encontrada também na intimidade familiar. Em outros termos, em algumas circunstâncias, por vezes, nos defendemos de quem amamos. Ela silencia e cogita um tempo antes de trazer duas lembranças. Na primeira, ela tinha quatro anos : por alguma razão, minha paciente dizia frequentemente para sua mãe levar sua irmãzinha de um ano para o hospital. Aguardo intrigado. Ela pensa e menciona uma segunda lembrança, em que, já um pouco maior, gostava muito de consolar em seus braços essa irmã quando estava triste e chorando. Ela silencia, se embaraça, sorri e recorda ter sido capaz de esconder os brinquedos da irmã para provocar sua tristeza, sabendo que ela buscaria conforto junto a ela.  

Deslocar a representação da violência em outras formas de expressão e em tempos diferentes da vida – onipresente nas relações sociais dessa pessoa como radicalmente e unicamente externa a ela – poderia possibilitar uma mudança na sua posição subjetiva: conceber suas manobras para obter satisfação pessoal ao preço do desamparo de sua irmã, por exemplo, é admitir sua parte de violência, reconhecer em si algo que nos últimos anos ela localiza constantemente no outro. 

Ora, sabemos que este deslocamento nem sempre se efetua e, neste caso, meu semelhante permanece em um lugar que cataliza e justifica meus impasses. Esta operação, que aqui abordo desde um percurso singular, tem por propriedade principal a redução da alteridade em um sentimento permanente de animosidade face ao mundo externo. 

Porém, um percurso singular em si não existe. Todo sujeito é tomado numa rede discursiva de que participa e que modula, determina e orienta suas intenções, posicionamentos e atitudes. Nesse sentido, se minhas relações com o outro estão absorvidas pelo temor, podemos postular que buscarei conforto e abrigo junto àqueles que compartilham as mesmas inquietudes constituindo agrupamentos que prometem segurança. Na política, a tradução ideológica de um certo desamparo individual tem sido o fascínio por discursos que promovem o medo suscitando o apetite social pelas ideias de extrema direita. Em outros termos, o mal-estar individual se apoia num sistema que designa um outro – o imigrante, as chamadas minorias, etc – como causa do dito mal. Esta operação que designa coletiva e partidariamente o outro como culpado dá repouso de consciência ao que não se assume subjetivamente. As políticas de extrema direita têm o dom de promover um remédio contra uma doença de que elas são o sintoma principal.

Infelizmente, esta tem sido uma das soluções sociais para nossos conflitos íntimos e que têm se proliferado. Na França, nas eleições de junho passado, 89 deputados de um partido da extrema direita foram eleitos para a Assembléia Nacional. O que se diz é que este partido vem sendo, progressivamente, “desdiabolizado”. Na realidade, seduzindo uma parte da população, bastante heterogênea, ele se estabelece em torno de um princípio binário que delimita, sem ambiguidades, um “eu ameaçado” e um “outro” ameaçador.      

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]  

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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