Opinião
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2 de setembro de 2022
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16:04

O dito, o não dito e o que contam que foi dito (por Sandra Bitencourt)

Novo levantamento indica cenário de estabilidade nas intenções de voto de Lula e Bolsonaro. Fotos: Ricardo Stuckert e Agência Brasil
Novo levantamento indica cenário de estabilidade nas intenções de voto de Lula e Bolsonaro. Fotos: Ricardo Stuckert e Agência Brasil

Sandra Bitencourt (*)

No livro “A era do enfrentamento”, o autor Christian Salmon (Barcelona, 2019) descreve o espiral de descrédito que caracteriza a crise de soberania dos Estados, acompanhada nas últimas três décadas por uma superexposição midiática, amplificada pela internet. Os dispositivos de representação do poder do Estado estão desconectados de fontes de soberania. Há poderes sem rosto (bancos, mercados financeiros, agências de risco) e rostos impotentes. A ação política se percebe como ilegítima e a palavra política perdeu sua credibilidade.  Com isso, o próprio Estado perde seus poderes e atributos.  

A cena política se deslocou progressivamente de seus espaços de deliberação e decisão (fóruns, reuniões, assembleias, parlamentos) em direção a novos espaços de legitimação: redes de comunicação e redes sociais. A função jornalística, por seu turno, de acordo com o autor, se desviou de sua missão original de análise, investigação e reportagem para uma função que pretende desmascarar a vida política ou os segredos de uma mensagem narrativa. 

Essa nova função, me parece, é confusa e permite interpretações segundo interesses diversos, com influências não confessas e incoerências perdoadas em um universo de tamanha desordem que pouco importa o dito, o não dito e o que contam que foi dito. 

As últimas semanas foram pródigas em exemplos de análises e manchetes sobre a participação dos candidatos à presidência da República na série de entrevistas do Jornal Nacional e no primeiro Debate da TV Bandeirantes, com resultados para todo o gosto e interesse.

Vou me deter em dois episódios discursivos do debate e suas repercussões intrigantes. 

Antes cumpre anotar que um debate político, em seus distintos formatos, pode ser definido (de modo ligeiro aqui, confesso) como um tipo de dispositivo que estrutura uma situação de interação e de significação para os enunciados. Ou seja, obedece a um certo número de regras e restrições formais e dá tratamento a uma alteridade, a do público em geral e a dos adversários políticos em particular.  

O que se espera é que as trocas ocorram do modo mais revelador possível, com as legitimidades, ambivalências e ambiguidades expostas e julgadas dentro dos significados atribuídos aos gestos, argumentos, condutas. Talvez o número excessivo de candidatos e as dinâmicas incapazes de dar conta do tempo curto versus a necessidade de aprofundamento para obter real compreensão dos projetos em concorrência, ponham em dúvida esse modo de contrapor argumentos. Mas os embates passam a ter um papel de reverberação valioso para explorar nos ambientes digitais. E pela mídia. 

Algumas palavras, gestos e atitudes são tão simbólicas que dominam a síntese dos debates. Contudo, é preciso atenção para ouvi-las, compreendê-las e reproduzi-las em toda sua extensão, se o que se propõe fazer é jornalismo. 

No debate da Bandeirantes, a jornalista Vera Magalhães fez a pergunta capaz de revelar o perfil autoritário e misógino do atual Presidente. Vale reproduzir a pergunta na íntegra e a resposta indiscutivelmente reveladora. 

Vera Magalhães: Boa noite a todos. Eu vou fazer uma pergunta ao candidato Ciro Gomes, com comentário do candidato Jair Bolsonaro. Candidato Ciro, a cobertura vacinal no Brasil vem despencando nos últimos anos. A cobertura para a vacinar tríplice viral, que protege contra sarampo e outras doenças, foi de 71%, em 2021, e ainda não chegou a 50% neste ano. A da poliomielite, que já chegou a ser de 96%, em 2012, caiu a índices um pouco superiores a 67%. Queria saber do senhor em que medida o senhor acha que a desinformação sobre vacinas, difundida inclusive pelo Presidente da República, pode ter contribuído, além de agravar a pandemia de Covid-19 e causar mortes que poderiam ter sido evitadas, também para desacreditar a população quanto à eficácia das vacinas em geral? E qual é a sua proposta para recuperar o Plano Nacional de Imunização, que já foi um orgulho nacional e uma referência

Jair Bolsonaro: Vera, não podia esperar outra coisa de você. Acho que você dorme pensando em mim. Você tem alguma paixão por mim. Você não pode tomar partido em um debate como esse, fazer acusações mentirosas a meu respeito. Você é uma vergonha para o jornalismo brasileiro

A truculência misógina é tão recorrente que a TV Bandeirantes nada fez de imediato diante do assombroso ataque machista, de caráter sexual e de cunho autoritário contra o livre exercício do jornalismo. Tampouco os candidatos na sequência demarcaram o abuso. O público percebeu o absurdo. Houve um enorme crescimento das buscas pelo significado da palavra misoginia no Google, além de pesquisa pelo nome de Vera e por Soraya Thronicke (UB), candidata à Presidência que estava no debate e prestou apoio à jornalista. Jornais do centro do país reproduziram em seus espaços de opinião o que significou o ataque: Bolsonaro dá show de ódio a mulheres em debate (UOL);  O machismo de Bolsonaro com jornalista em debate – (VEJA); A misoginia de Bolsonaro o faz perder o debate  (OGLOBO).

Na análise da coluna de política do maior jornal do Rio Grande do Sul o caso foi tratado como uma saia-justa de Bolsonaro no debate. Eis o trecho.

Inexperiente em debates nacionais, Soraya Thronicke (União Brasil) será lembrada pela defesa repetida do imposto único e por ter dito que Bolsonaro é “tchutchuca com os homens e tigrão com as mulheres”. Era uma referência aos ataques do presidente à jornalista Vera Magalhães, porque não gostou da pergunta que ela fez a Ciro Gomes, sobre vacinas, e citou seu nome por ser um “antivacina”, e Simone Tabet, atacada de forma gratuita por sua participação da CPI da Covid.

A misoginia de Bolsonaro foi apontada pelos demais candidatos e revelou-se a principal saia-justa enfrentada pelo candidato (Coluna Rosane de Oliveira, 29/08/2022).

As redes sociais utilizaram à exaustão o inconcebível ataque, sobretudo porque ele acontece na esteira de uma conduta reiterada. Aliás, o Presidente foi condenado a indenizar a jornalista Patrícia Campos Mello pelos insultos de caráter sexual na sua função jornalística. Mas o propósito desta reflexão não é o de analisar o que fazem as redes, mas sim, como reage a função jornalística de interpretação. 

Na série de entrevistas do Jornal Nacional, houve um fenômeno até mesmo curioso como comparativo entre o desempenho dos candidatos. Bolsonaro dominou a audiência, com a marca de 33 pontos de audiência e 48% em São Paulo, o que equivale a quase 7 milhões de espectadores no estado paulista. Mas, como mostrou o Estadão, o candidato contou uma mentira a cada 3 minutos durante a entrevista. Alguém já mentiu tanto ao ser entrevistado? O presidente repetiu informações enganosas sobre a pandemia de covid-19 e a integridade do processo eleitoral, errou ao citar dados de desemprego da época da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e distorceu informações sobre a situação e preservação do meio ambiente sob seu governo. Alguns protestaram que os apresentadores William Bonner e Renata Vasconcelos teriam sido mais incisivos com Bolsonaro do que com os demais candidatos. Objetivamente falaram 15 minutos, enquanto nas outras sabatinas, falaram 10 minutos. Mas qual deve ser a conduta de um entrevistador diante de uma autoridade que mente? 

A coluna do maior jornal do Rio Grande do Sul classificou a entrevista como dura e as mentiras contadas como respostas dúbias:

Esperada com ansiedade por aliados e adversários, a entrevista do presidente Jair Bolsonaro ao Jornal Nacional foi marcada por perguntas duras e respostas dúbias de um candidato visivelmente tenso. (Coluna Rosane de Oliveira, 22/08/22)

Outro tema acabou por ser recortado do debate e utilizado para o desgaste do presidente Lula, o juízo que este faria sobre toda a cadeia do agronegócio no Brasil. A organização Aos Fatos que integra o Programa de Verificação de Fatos Independente da Meta desde maio de 2018 e reúne dezenas de iniciativas independentes de checagem no mundo associadas à IFCN (International Fact-Checking Network) para combater a disseminação de desinformação na plataforma e também no Instagram, mostrou que os posts nas redes sociais distorcem falas de Lula ao Jornal Nacional sobre o setor fascista do agronegócio. Segundo a apuração, embora muitas postagens insistam nesse argumento, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não chamou todo o agronegócio de “direitista” e “fascista” durante entrevista ao Jornal Nacional na quinta-feira (25), como tem sido dito nas redes sociais As publicações, segundo Aos Fatos, omitem que o petista se referia a apenas parte do agronegócio, segundo ele, empresários que não protegem o meio ambiente. O trecho compartilhado exclui a parte em que o candidato comenta que há pessoas “sérias” no setor que querem a preservação dos recursos naturais. A declaração distorcida conta com ao menos 21 mil curtidas no Instagram, 170 mil interações no TikTok, 21 mil retuítes no Twitter e 10 mil compartilhamentos no Facebook na última sexta-feira de agosto (26). No Telegram, a desinformação foi compartilhada no canal do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), no qual contabiliza 12 mil visualizações. Vale reproduzir o trecho real:

Renata: “Agora, antes da gente abordar um pouquinho mais sobre os sem-terra, é preciso fazer esse esclarecimento, porque, como o senhor colocou, parece que o setor do agronegócio, é, não tem a ver, é contrário, faz oposição ao meio ambiente, ao meio ambiente sustentável, que não é verdade.”

Lula: “Não faz não. Faz não. Você acabou de ver”

Renata: “Não deve fazer”

Lula: “Você…é…veja. O agronegócio fascista, sabe, que é fascista e direitista, porque os empresários sérios que trabalham no agronegócio, que têm comércio com o exterior, que exportam para a Europa, para a China, esses não querem desmatar, esses querem preservar os nossos rios, querem preservar as nossas águas, querem preservar as nossas faunas. Esses não. Mas você tem um monte que quer”

E o jornalismo daqui dos pagos como tratou o tema? Reproduzindo o argumento parcial e impreciso das redes bolsonaristas. Na rádio foi esse o comentário, contemplando a indignação do setor anunciante e, portanto, protegido de críticas. Na coluna de política de hoje, a ideia reiterada:

Na Expointer Bolsonaro é pop (…) Neste ano, o presidente deverá ser ainda mais paparicado pelos produtores rurais, pela afinidade ideológica, pela aprovação do setor ao trabalho da ex-ministra Teresa Cristina e pelo repúdio à declaração do ex-presidente Lula de que “o agronegócio é fascista e direitista”. (Coluna Rosane de Oliveira, 02/09/2022)

Entre Bolsonaro e Lula ocorre um estranho fenômeno de tratamento do dito e do não dito. Bolsonaro pratica uma violência discursiva simbólica sem precedentes, de tal modo que o esforço é para não crer ou suavizar o que ele diz literalmente e sem lugar a dúvidas. Não há cotejamento crítico suficiente entre o que diz e o que efetivamente promove, bem como das consequências subjacentes à sua reiterada autorização para a violência e o preconceito. Com Lula, no entanto, se buscam quaisquer incoerências, as entrelinhas e posicionamentos que reforcem supostas acusações de ordem distante do debate real sobre o país, como por exemplo, buscar definir sua posição de democrata ou não avaliando governos de outras nações. Evidentemente, os discursos de Lula se revestem também de equívocos, de ambiguidades, podem e devem ser questionados, mas não é aceitável a falsa simetria e a colocação de ambos em dois polos (a polarização é um termo de uma preguiça monumental) sendo que um está na lógica democrática e o outro não. 

Como sugere Salmon a guerra midiático-financeira, especulativa e digital adotou uma série de batalhas retóricas, tanto no terreno das imagens, como das cifras e dados, das palavras utilizadas e dos relatos. Uma guerra alimentada por muitas crises, meias verdades e papeis obscuros. Seria bom o jornalismo jogar o jogo do esclarecimento, da acuidade com as palavras, da reprodução exata de argumentos e gestos, pois o momento, afinal, é de beira do abismo. 

(*) Sandra Bitencourt é jornalista, doutora em Comunicação e Informação pela UFRGS, membro do Conselho do Observatório da Comunicação Pública e Diretora de Comunicação do Instituo Novos Paradigmas (INP). 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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