Opinião
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21 de setembro de 2022
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18:43

O desgoverno do mito e o mito do desenvolvimento (por Daniel Jeziorny e Lucas Rech)

"A fome voltou": Lambe lambe em muro na Avenida Paulista, em São Paulo. Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas

Daniel Jeziorny e Lucas Rech (*)

A análise do processo de desenvolvimento pode nos conduzir a pelo menos duas naturezas de reflexões. Por um lado, podemos analisar o processo de complexificação do capitalismo ao longo do tempo e, com isso, identificar mudanças na essência que confere especificidade e lógica ao sistema que trama globalmente a vida em função da reprodução material da humanidade. Quiçá sem redobrados esforços interpretativos, tal mirada permita nitidez suficiente à percepção de que a quadra histórica que atravessamos é marcada pelos imperativos do capital financeiro e que, portanto, é especialmente em função de seus objetivos que os fluxos de matéria, energia e poder tramam-se mundialmente. Por outo lado, isso não exclui outro enfoque possível, no qual, a partir de uma espécie de zoom analítico, o foco recaia sobre uma forma concreta pela qual o capital conflua em determinada formação socioeconômica. E é justamente a partir desse tipo de enquadramento que um projeto de desenvolvimento nacional [ou não] ganha certo protagonismo em cena e cobra lugar na análise.

O Estado tem sempre papel decisivo nesse desenrolar, especialmente por se tratar do aparato mediante o qual se busca concertar territorialmente as escalas do fluxo de poder. O geógrafo David Harvey (2005) – por exemplo – comenta que o desenvolvimento capitalista conserva relação com duas lógicas: a da própria essência do capital, ou seja, o movimento perpétuo de acumulação em escala global; mas também com o poder político geograficamente construído, onde aquele movimento se articula com a lógica de determinado território, consequentemente, do Estado, aparato que condensa e centraliza a força social ao organizar boa parte da vida em comum, visto que carrega uma dimensão produtora de sentido de comunidade. Dá-se, portanto, que quando uma força social ascende ao governo, é justamente através dos aparelhos de Estado que pode ter facilitadas as vias de construção de hegemonia em torno de projetos seus, particulares, mas que mediante uma aura de interesse comum adquiram um verniz de projeto de nação.

Atualmente no Brasil, conflui um conjunto de forças cada vez mais carcomidas em torno de um governo moribundo e completamente sem sentido de comunidade. Também pudera, em si o suposto projeto pátrio que defende é antagônico a ideia de comunidade, logo, vazio enquanto projeto de nação. No desgoverno Bolsonaro, forças bolorentas insistem na continuidade de um projeto marcadamente contrário à trama da vida e fundamentalmente calcado não apenas numa política de exaltação da violência e da morte, mas também numa necroeconomia desestruturante do aparelho produtivo nacional e constituinte de um presente de devastação ambiental e humana, que destrói a história de muitas comunidades tradicionais e hipoteca o futuro de milhões de pessoas, que dependem do fruto de seu próprio trabalho para viver, dignamente, em paz. Muito distante de um projeto de nação, o desgoverno Bolsonaro faz deste não mais do que um mito tacanho e sufocantemente torpe.

Enquanto fazia negociatas retardando a compra das vacinas que poderiam ter salvado a vida de milhares de pessoas, o desgoverno bolsonarista insistiu insensivelmente contra o pagamento de um auxílio emergencial à população mais carente, o que fez com que pessoas pobres, negras ou pardas (absoluta maioria da população brasileira) carregasse diariamente uma mochila com o peso de 1,5 vezes mais chances de morte por Covid-19 do que as demais (de acordo com um estudo da Fiocruz). Aliás, nesse quesito, o desgoverno do mito do fanatismo negacionista tem o privilégio de ser considerado a pior administração da pandemia no mundo e o Brasil ostenta, triste e vergonhosamente, a façanha de ter quatro vezes mais mortos por Covid-19 do que a média mundial. E como se não bastassem as tantas mortes que poderiam ter sido evitadas, 33 milhões de brasileiras e brasileiros famintos reviram lixos em busca de comida ou definham em escorchantes filas para distribuição de ossos.

Portanto, não é à toa que o descrédito bolsonarista cresce, mesmo em meio à enxurrada de dinheiro público que flui num imoral e ultrajante orçamento secreto e de um dos maiores esquemas de compra de votos da história brasileira, disfarçado de auxílio (que não veio quando deveria ter vindo). Além disso, os índices de rejeição e descredibilidade do desgoverno apontados pelas recentes pesquisas eleitorais, indicam que a maioria da população se cansou das mentiras de seu demagogo (des)mandatário, está esgotada de seus devaneios conspiratórios e de suas fantasias que procuram criar um realismo fantasioso para mascarar a violência que cria ao mesmo tempo em que mantém seus asseclas com a faca entre os dentes. Na realidade, os milhões que sofrem diariamente com a alta no preço dos alimentos, há muito deixaram de depositar fé no messias que diante da fome crescente não titubeou em isentar de impostos os jet skis, tampouco em organizar motociatas com dinheiro público. Se a desidratação do desgoverno é cada vez maior, razões concretas para tanto não faltam, a despeito da ira dos mais raivosos ou das crendices dos que ainda se iludem com as estapafúrdias mentiras da máquina de fake news

Dentre as forças necroenômicas por detrás da necropolítica encontra-se o pop, tech, tudo agro, que comemora supersafras e lucros recordes a partir da exportação de commodities. Recorrentemente, a turma do berrante berra orgulhosa de que é a responsável por sustentar herculeamente a nação. Acontece que a coisa não é tão simples assim. E na verdade parece justamente o contrário, ou seja, é a nação que tem carregado o negócio do ogro, ou agro, nas costas. De 2010 a 2022, o total dos subsídios recebidos pelo setor crescera cerca de 400%. Em 2010, estes subsídios caminhavam na casa dos R$ 2.7 bilhões, mas passaram para R$ 13.35 bilhões logo após o golpe contra Dilma Rousseff e a projeção da receita federal é de que cheguem à aberrantes R$ 24.37 bilhões em 2022, sob a batuta desesperada do mito em estado de decomposição. Somente no primeiro ano do desgoverno Bolsonaro (2019), as isenções ao agro somaram R$ 18,7 bilhões, volume superior, por exemplo, aos R$14,6 bilhões despendidos com o Programa de Educação Básica do Governo Federal, que engloba todos os gastos federais com educação básica no biênio 2020-2021.

Se por um lado o agronegócio exportador de matéria prima lucra às custas da sociedade, por outro, a insegurança alimentar dispara no Brasil de Bolsonaro, ao ponto de dobrar o número de domicílios com crianças menores de 10 anos de idade sem ter o que comer. Quanto a isso, vale lembrar que o desgoverno bolsonarista vetou recentemente um aumento à merenda escolar e encerrou o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado pelo governo Lula no âmbito do Fome Zero e que ademais de ter se tornado referência internacional no combate à fome, privilegiava a compra de alimentos – da agricultura familiar – livres de venenos. Aliás, veneno parece ser uma das obsessões de Bolsonaro, visto que mais de 1500 novos agrotóxicos receberam licença durante o seu desgoverno, muitos desses banidos de países da União Europeia, bem como dos Estados Unidos da América, justamente por serem altamente perniciosos aos seres humanos e ao meio ambiente. Infelizmente, esse desastre disfarçado de governo (sem sentido de comunidade) serve para confirmar aquilo que já era bastante claro antes mesmo de 2018: fascinado e financiado pela morte, Bolsonaro tampouco tem sentido de humanidade.

Ele guarda um fetiche que parece inarredável e que exala sua pulsão de morte também na necropolítica em relação aos povos tidos como guardiães da Amazônia. Se a floresta se mantém de pé a oferecer serviços de provisão de alimentos, água, fibras, recursos genéticos, mas também serviços de regulação climática e de regulação de doenças, é muito em função da presença daqueles povos originários que, a partir de uma ótica diferente da que interpreta o mundo apenas com a métrica do cifrão, trabalham para a sua conservação. Não existe floresta, sem os povos da floresta. No entanto, irresoluto na necropolítica como forma de alavancar sua necroeconomia do desmatamento, do veneno, do boi, da bala, da grilagem de terras e do garimpo ilegal que se vale de mais de mil pistas de voo clandestina na Amazônia, o desgoverno bolsonarista insiste em transformar os que guardam a floresta, que serve à todas as pessoas, como inimigos de um projeto de nação que não existe. Disso resulta que, dentre os biomas brasileiros que mais sofrem com o desmatamento, a Amazônia lidera com 59% da área desmatada no país em 2021. Isso equivale à 977 mil hectares, ou, algo em torno de 977 mil campos de futebol com medidas padrão FIFA. Conforme aponta um levantamento feito via satélite pelo MapBiomas, trata-se de um crescimento de 15% em relação ao ano de 2020, porém, que é 27% superior em relação ao total desmatado na região amazônica no primeiro ano do desgoverno Bolsonaro.

Nessa linha, talvez seja útil relembrar que de acordo com as Nações Unidas, o surgimento de doenças zoonóticas com potencial pandêmico é frequentemente associado a distúrbios ecológicos provenientes da intensificação de monoculturas agrícolas, que resultam em invasões e derrubamentos de florestas e outros habitats naturais. Mas também que no Brasil a especulação com a terra se tornou mais rentável que a própria produção agrícola. Então, apoiado por agentes financeiros internacionais que investem grandes quantias de capital especulativo no negócio de terras, passaram a proliferar empresas dedicadas exclusivamente à aquisição, venda, arrendamento e administração de terras. Conforme aponta um estudo da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR), que trata da expansão da fronteira agrícola, somente no território brasileiro do MATOPIBA, o número de estabelecimentos fundiários decresceu 17%, ao mesmo tempo em que a área desmatada para monoculturas aumentou através da grilagem, que legaliza 58% do desmatamento e onde cerca de 10 milhões de hectares de terras de imóveis rurais se sobrepõem a territórios indígenas, reservas ambientais e terras embargadas.

Já são quase quatro anos em que sócio majoritário do esquema das rachadinhas se encastelou na cadeira da presidência da República. Desgastante interlúdio em que se requentaram estéticas carcomidas, como a de ministros nazistas; ideias ridículas, como as da Terra plana; delírios absolutamente risíveis não fossem trágicos, como os de Jesus na goiabeira, mas também discursos de ódio, unicamente para justificar abjetas necropolíticas, voltadas covarde e preconceituosamente contra qualquer forma de inteligência que destoe do platônico modelo de ser humano castrado, truculento e tosco, que irresponsavelmente recriaram e que insistem em lustrar com o verniz da intolerância deselegante e chucra. Tragicamente, esse conjunto de aberrações involucrou uma economia da fome e da morte, que em nada tem a ver comum projeto de nação e nem, tampouco, de humanidade.

(*) Daniel Jeziorny é Professor na Faculdade Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Lucas Rech é Professor na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal da Bahia

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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