Opinião
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24 de março de 2022
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09:18

Rússia e Ucrânia e a derrocada do breve mundo unipolar (por Ricardo Dathein)

Veículos militares russos na região da Crimeia. Foto: Sergei Malgavko/TASS
Veículos militares russos na região da Crimeia. Foto: Sergei Malgavko/TASS

Ricardo Dathein (*)

Os Estados Unidos perderam uma oportunidade histórica. Tiveram a chance de exercer uma dominação unipolar que poderia durar muito tempo. No entanto, em apenas 30 anos esse seu sonho foi destruído. Foram incompetentes, mas não tinham como não ser, pela lógica de sua estrutura política, social e econômica. Assim, temos um sistema liberal que gera a guerra permanente, ao contrário da visão ufanista sobre as virtudes pacifistas do liberalismo. Os EUA passaram 30 anos destruindo essa possibilidade de hegemonia unipolar e fazendo a guerra contra povos muito mais fracos.

O povo russo, em geral, gostaria de ter sido integrado ao mundo dito ocidental depois do fim da União Soviética. É fácil compreender que a Rússia queria a paz com a Europa, com interesses econômicos complementares, além de vontade de adesão ao padrão de vida ocidental. Mas, aparentemente, os EUA acreditaram que a China seria sua grande aliada, talvez transitando para um regime político liberal, e precisavam de um inimigo, que seria a Rússia. De fato, a aproximação com a China já tinha rendido bons frutos geopolíticos, com a queda da URSS. Agora, no entanto, possuem dois “inimigos” poderosos que estão tentando se aliar para se protegerem das agressões dos EUA.

As chamadas “revoluções coloridas”, estimuladas pelos EUA, devastaram os sistemas econômicos e políticos de muitos países, inclusive na Ucrânia, destruindo as bases das democracias liberais. O neoliberalismo, a desestruturação política e as redes sociais confluíram para a produção de caquistocracias, ou o governo dos piores. Nesse sentido, a guerra da Rússia contra a Ucrânia talvez seja a primeira forte reação contra essas tendências.

Os EUA e a Grã-Bretanha passaram meses em 2021 provocando militarmente a Rússia no Mar Negro, e conseguiram o que queriam, que era levar a Rússia à guerra. O objetivo era de, com baixos custos para os EUA (em um cálculo provavelmente errado), mas ao custo da destruição da Ucrânia, levar a Rússia à exaustão. A ideia da direita estadunidense é destruir para, a partir daí, emergir a “liberdade” e a “democracia” na Rússia. Da mesma forma, o objetivo dos EUA, no limite, é levar a China à guerra com Taiwan, com provocações seguidas.

Na atual guerra, disputa-se muito mais que a Ucrânia. Esse país virou, de certa forma, um joguete, com seu regime caquistocrático tão admirado no Ocidente. No curto prazo, há dificuldades para se encerrar a guerra, pois os EUA, o governo ucraniano, a Rússia, a Europa ocidental, aparentemente todos querem a continuidade da guerra. O problema é que nenhum lado pode perder, mas também ninguém pode ganhar. Nesse caso, a China talvez possa ter a capacidade de gerar uma solução diplomática na qual todos saiam aparentemente ganhando. No entanto, os EUA tendem a vetar essa solução. O problema é que se disputa o mundo do século XXI. Uma derrota da Rússia consolidaria a hegemonia dos EUA, mas as raízes dos problemas continuariam, de forma que a “solução” seria provisória. Em caso de vitória da Rússia, com seu isolamento pelo Ocidente, deve-se assistir ao início de um novo mundo multipolar.

Para se entender as dificuldades que os EUA enfrentam em sua dominação, pode-se listar uma série de problemas para o mundo:

– De forma contraditória com o discurso, o fato é que os EUA detestam concorrência econômica e política, sempre buscando a dominação monopólica ou oligopólica.

– Sua política de “long-arm jurisdiction” (jurisdição de “braços longos”, o que significa que uma decisão de um tribunal ou do governo dos EUA pretensamente vale automaticamente para todo o mundo) causa enormes custos para empresas de outros países, além de humilhação.

– Sua economia possui hoje relativamente baixo dinamismo, com uma taxa de lucro em queda tendencial, sendo fraca para dinamizar o mercado mundial, além de produzir conflitos sociais crescentes com a tendência de concentração de renda. A China, ao contrário, oferece ao mundo mais investimentos produtivos.

– O complexo industrial militar dos EUA exige guerras permanentes. Além disso, os EUA precisam canalizar para fora do país a energia rebelde de suas classes subalternas. Por isso, precisam sempre de inimigos externos.

– O arraigado pensamento da elite estadunidense de que a violência tudo pode resolver. Assim, vários países foram destruídos, com a ideia de que, após, o “mercado” construiria uma nova ordem. O resultado, como sabemos, foi desastroso.

– A demanda dos EUA por adesão incondicional, por submissão. O problema são países com história e tradições milenares, como China, Irã, Vietnã, Índia e Rússia, onde mesmo as elites conservadoras não aceitam o papel de submissos. As elites dos EUA consideram que seu país é o único que pode ser nacionalista, mas esse é um acordo impossível.

– Sua dominação das tecnologias de comunicações e das finanças internacionais, de forma que os EUA podem facilmente confiscar reservas cambiais e dominar os mercados com o poder do dólar.

– O domínio político das redes sociais e da internet, com baixa segurança cibernética para outros países ou pessoas. Mesmo aliados dos EUA são “invadidos” e espionados, tendo isso se transformado em uma arma de concorrência desleal e de guerra.

– A submissão aparentemente total da imprensa corporativa dos EUA aos seus interesses geopolíticos, sem contraditório, em um impressionante “consenso” gerado por manipulação. Assim, a imprensa corporativa deixou amplamente de fazer jornalismo, mas sim propaganda. Desse modo, tornou-se muito difícil uma avalição objetiva dos fatos.

– Sua economia e, portanto, a do mundo, é determinada pelos interesses geopolíticos dos EUA. O dito “mercado livre” mostra-se dominado e submisso. O governo dos EUA toma decisões que afetam toda a economia e as empresas. Nenhum questionamento é feito e todo o mercado imediatamente se submete aos desígnios da elite política. Assim, o “mercado” é comandado pela política.

– O desprezo dos EUA pelas instituições internacionais, como a ONU.

– A profundamente disfuncional estrutura política dos EUA. Essa é uma fraqueza que pode ser explorada por “inimigos” construídos.

– Sua falta de coerência e seu oportunismo, como agora com os casos de Venezuela e Irã, o que o torna um parceiro não confiável.

– Sua arrogância no trato das relações internacionais, mesmo com aliados importantes, como no caso presente com a Alemanha, que foi humilhada.

Tudo isso gera uma percepção de que o mundo unipolar comandado pelos EUA não é adequado. Por isso, a busca por alternativas econômicas e políticas deve crescer muito a partir da guerra Rússia-Ucrânia.

O grande derrotado talvez seja, surpreendentemente, a Europa ocidental. Os países da Europa oriental (Polônia e Hungria, principalmente), que queriam aderir ao mundo ocidental, agora querem exportar seus sistemas políticos autoritários aos ocidentais, e talvez consigam, com a decadência das democracias liberais, fruto da adoção do neoliberalismo e com a resultante desestruturação social, no contexto de desorganização política e das redes sociais. É talvez surpreendente que esses países da Europa ocidental tenham tão pouca capacidade de enfrentar a lógica destrutiva dos EUA e não tenham capacidade de administrar autonomamente seus interesses. Provavelmente isso se explique pela sua história imperialista relativamente recente. Assim, com as consequências econômicas negativas da guerra, podem passar politicamente para as mãos da extrema direita.

O interesse econômico da China e da Rússia não é o isolamento. Como a Rússia optou pela guerra, com todas as consequências de seu isolamento e de perda de influência no leste europeu (que, de todo modo, já era dada), provavelmente seu governo considerou isso inevitável. No caso da Rússia, para os EUA (em contraste com a Europa ocidental) é fácil exigir seu isolamento, mas forçando, consequentemente, seu alinhamento com a China. Esse país parece exercer o papel mais ponderado, com fortes interesses econômicos tanto com a Rússia quanto com a Ucrânia, inclusive com seu projeto de investimentos “Nova rota da seda”. Assim, não tem interesse na guerra, ao contrário dos EUA. Por isso, tende a ser o negociador que pode se fazer respeitar.

No curto prazo, as consequências econômicas e sociais para a Rússia, e ainda muito mais para a Ucrânia, serão enormes. A Rússia poderia fazer uma guerra de destruição massiva, como os EUA fizeram no Iraque, com centenas de milhares de mortos. Mas os ucranianos não são vistos pela Rússia como os iraquianos pelos EUA. Os ucranianos são respeitados pelos russos, mas o contrário não acontece para a maioria dos ucranianos, ainda mais depois dessa guerra. Talvez a China, ao longo do tempo, possa promover alguma reconciliação.

Para o longo prazo, as consequências serão enormes, impendentemente do resultado imediato. A China não se curvará, sendo uma opção econômica para a Rússia. A Índia tende a assumir uma posição autônoma, sem alinhamentos automáticos. A Europa tenderá, aparentemente, a se enfraquecer. E um novo mundo multipolar parece estar nascendo. Não com dois polos, mas com três, e com forte capacidade de agregação do lado oriental, pois esse oferece investimentos e respeito. Esse novo mundo multipolar vai precisar encontrar um ponto de equilíbrio. Apesar da desglobalização, muito da integração vai permanecer e se reconstruir. Por exemplo, as grandes empresas dos EUA, da Europa e do Japão não vão querer abrir mãos de seus grandes lucros no mercado chinês.

E para o Brasil? O ideal para um país como o nosso seria o não alinhamento automático, com negociações amplas, tendo em vista as novas oportunidades que podem surgir. No entanto, os militares e a imprensa corporativa, pelo menos nesse momento, exigem alinhamento automático com os EUA. Felizmente, para a paz interna e externa, o Brasil é um país geopoliticamente irrelevante.

(*) Professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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