Opinião
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14 de março de 2022
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13:12

Nilce Cardoso, vida e morte de uma lutadora (por Carlos Frederico Barcellos Guazzelli)

Nilce Azevedo Cardoso, militante histórica da Ação Popular (AP) (Reprodução/Facebook)
Nilce Azevedo Cardoso, militante histórica da Ação Popular (AP) (Reprodução/Facebook)

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

Há exatos nove anos, a Comissão Estadual da Verdade do Rio Grande do Sul (CEV/RS), ao ensejo do transcurso do Dia Internacional da Mulher, realizou sua primeira audiência pública – intitulada “Mulheres na Resistência à Ditadura”. Cabe recordar que aquele colegiado fora criado para auxiliar os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída por lei para apurar as graves violações a direitos humanos perpetradas, durante a ditadura militar instalada em 1964, pelos agentes do sistema por ela montado para reprimir seus adversários – reais, potenciais ou imaginários.

O evento visava precipuamente evidenciar as modalidades específicas de repressão a que foram submetidas as mulheres que, no território riograndense, ousaram se opor ao governo ditatorial e seus desmandos. E o fez colhendo publicamente os depoimentos de três bravas militantes que, em relatos comoventes, não se furtaram a expor o tratamento brutal e repugnante a que foram submetidas pelos beleguins do regime, bem como a forma pela qual conseguiram não apenas resistir a estas violências inomináveis, como sobretudo superar os traumas sofridos e reconstruir suas vidas.

Reprodução

  Uma das três depoentes – Nilce Azevedo Cardoso – faleceu no último dia 22 de fevereiro, e a renovação da efeméride universalmente dedicada à reflexão sobre a situação ainda vivida pela maioria das mulheres, parece ser a ocasião mais adequada para homenagear esta digna mulher, que escolheu nosso estado para viver quando era ainda bem jovem, no final dos anos 1960. Já militava em São Paulo, e continuou a fazê-lo aqui, na Ação Popular (AP), organização clandestina, oriunda dos movimentos sociais surgidos na Igreja Católica, e que se dedicava à organização da resistência à ditadura e à conscientização política da população, especialmente na periferia das cidades. A AP era uma dentre várias associações então formadas, reunindo jovens, estudantes e trabalhadores, que atuavam politicamente na clandestinidade, mas não tinha feito opção pela luta armada – ao contrário do que fizeram algumas delas.

Em 1972, foi sequestrada e mantida presa por agentes do DOPS, os quais, embora formalmente integrassem um organismo policial do estado, trabalhavam sob as ordens e supervisão diretas do Centro de Informações do Exército (CIE), um dos órgãos da chamada “comunidade de segurança e informações”, encarregada de vigiar e punir os refratários da ordem ditatorial então imposta.  Em virtude da intensidade e brutalidade das sevícias sofridas na sede daquela repartição, teve de ser internada no Hospital da Brigada Militar, onde permaneceu em coma durante oito dias. 

  E, nem bem recuperada totalmente, foi levada dali para São Paulo e entregue aos torturadores da então chamada Operação Bandeirantes – a sinistra OBAN, força-tarefa repressiva que originou a criação, nos anos seguintes, do CODI-DOI do II Exército – os quais, sob a direção de seu repulsivo chefe, Carlos Alberto Brilhante Ustra, o “Doutor Tibiriçá”, a submeteram a toda sorte de violências.

Nilce narrou, no depoimento que prestou à CEV/RS, na referida audiência pública, que depois de dias de tortura na OBAN, um agente, ali chamado por ser especializado no conhecimento das ações e membros da AP, depois de consultar seus arquivos e um nutrido álbum fotográfico, informou que simplesmente não havia qualquer registro da participação dela naquele grupo clandestino. 

  Em virtude disso, foi trazida a Porto Alegre, onde precisou novamente ser hospitalizada. Felizmente, apesar da gravidade das sevícias infligidas, conseguiu recuperar-se e superar sequelas sérias, como a amnésia, mercê de tratamento psicológico especial que seguiu depois de ter sido solta. E, apesar da previsão perversa de seus sádicos torturadores, os castigos sofridos não a impediram de, alguns anos depois, tornar-se mãe de um casal de filhos.

Em liberdade, ela tratou de completar sua formação como psicopedagoga e integrou-se, de corpo e alma, desde o período final da ditadura, à luta pela anistia, participando ativamente do Movimento e Associação de ex-Presos e Perseguidos Políticos do Rio Grande do Sul.   Ao longo das décadas seguintes, depois da redemocratização do País, esta lutadora incansável continuou prestando relevantes serviços à causa dos direitos humanos e, de modo muito especial, aos esforços pela efetivação da justiça de transição.

Neste particular, participante ativa dos movimentos da sociedade civil empenhados na tarefa de recuperar a memória do período ditatorial, Nilce tornou-se importante referência para os trabalhos das Comissões oficiais de verdade criadas no início da década passada – não apenas como depoente, mas igualmente como consultora, sugerindo temas e indicando pessoas para depor. 

  Ademais, sua atuação no projeto “Clínicas do Testemunho”, destinado a estimular a reconstrução das subjetividades afetadas, a partir da recuperação da memória das violações sofridas – uma das tantas iniciativas desmontadas pela atual gestão do Ministério da Justiça, como contribuição à tarefa de destruição institucional engendrada e empreendida pelo atual (des)governo da nação – permanecerá como o fecho simbólico de uma trajetória de vida exemplar, como mulher e cidadã.

Nilce Azevedo Cardoso – presente!

EM TEMPO: 

No momento em que este artigo era concluído, sobreveio a notícia da morte de conhecido policial – justamente quem chefiava, no DOPS, a equipe que submeteu Nilce às indizíveis torturas que ela ali sofreu em 1972, e de resto, naqueles anos, centenas de outras cidadãs e cidadãos que se opunham ao regime odioso imposto ao país pelos militares.

Se é verdade que a morte nos iguala – pela comum contingência da finitude humana – o que nos diferencia, definitivamente, são as vidas vividas. E há uma enorme e gritante diferença entre as vidas dos algozes e as das vítimas; dos facínoras e dos inocentes; dos indiferentes e dos engajados; dos sobreviventes e dos coniventes; dos sabujos vis e das heroínas eternas.

Mais do que nunca é necessário relembrar estas diferenças, nos sombrios tempos que vivemos: para que nunca se esqueça, para que não mais aconteça!

(*) Defensor Público aposentado, coordenador da Comissão Estadual da Verdade-RS (2012-2014)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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