Opinião
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8 de março de 2022
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07:10

Aos que alucinam (Coluna da APPOA)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Alfredo Gil (*)

Na metade dos anos 50, o psicanalista Jacques Lacan dedicou um ano de seu ensino exclusivamente ao estudo da clínica das psicoses. Dentre as diferentes manifestações desta clínica, na qual inclui frequentemente a necessidade de um acompanhamento psiquiátrico, existe a alucinação.  

Trata-se de um sintoma bastante heterogêneo e complexo em que o sujeito padece de uma perda, parcial, da faculdade de pensar e da capacidade de agir. O quadro clínico pode ser acompanhado de fenômenos cinestésicos particularmente constrangedores, sobretudo quando as partes genitais são afetadas.

A existência torna-se insuportável quando gestos cotidianos ou a simples intenção de realizar algo são comentados por uma voz (alucinatória), antecipando a ação do sujeito ou seu próprio pensamento. Isso significa que estas pessoas podem viver o cotidiano mais trivial em playback contínuo de tudo o que fazem ou pensam, encontrando-se, assim, numa posição de transparência diante da dita voz. Em outros termos, e evocando formas radicais, o conjunto de elementos que constituem a capacidade de entendimento de um ser, que são o pensamento, a fala e a ação, retorna ao sujeito por intermédio de um automatismo sob a forma de um eco. 

Trata-se de um fenômeno difícil de conceber não sendo um profissional da área ou sem ter a experiência, por exemplo, de viver com um familiar  que sofre deste distúrbio. 

Exercício: pense naquele “diálogo” matinal, que não sai da cabeça quando acordamos lembrando de uma reunião de trabalho do dia anterior, ou de uma disputa conjugal. Pensamos que naquela ocasião, teria sido melhor dizer isso ou aquilo, e podemos desta forma imaginar uma outra reação da parte de nosso interlocutor, com um outro desfecho para o evento. Ora, até aí sabemos que somos mestre de nossas elucubrações, mesmo se não conseguimos nos desfazer delas. A pessoa que sofre de alucinações, por sua vez, padece de uma impossibilidade de “refazer a história”, de contar a si mesmo lembrando o que aconteceu, e de elaborar aquilo que gostaria que fosse, ou seja, de cogitar, de modo ficcional, sobre o passado ou sobre o futuro. O alucinado seria, permanentemente, o palco de tais “conversações” internas, alucinatórias, sem pausa, e estaria na impossibilidade de estabelecer um corte com esta realidade alucinante que se impõe. É por isso que a psiquiatria é o único ramo da medicina em que a prescrição de uma internação pode se dar sem o consentimento do paciente. Ela priva, como se diz, o paciente de sua liberdade. Mas, nas condições aqui descritas, será que já não a tinha perdido ?

Por isto Lacan retoma, a um dado momento de seu seminário, as pesquisas de um psiquiatra francês do final do século 19, Jules Séglas, que descreveu minuciosamente tais fenômenos. Contrariamente à doxa popular que reduz a alucinação a uma voz externa, como nas alucinações auditivas, Séglas repertoria o que nomeia “linguagem interior”, que são as diferentes formas de expressão deste sintoma. Ele observou, escutando o relato dos pacientes, uma decomposição entre o campo perceptivo – o que se vê, se sente e se ouve – e os orgãos sensoriais que recepcionam tais estímulos.       

Um paciente de Séglas afirma não ouvir a voz pelo ouvido, “há no meu peito, na região do estômago, como uma língua que articula tudo interiormente. São movimentos que se fazem em mim e dizem tudo, na cabeça ou no peito”. 

Nota-se que a alucinação não se reduz a uma percepção sem estímulo externo, que conceberíamos sem objeto. Ela é sobretudo um transtorno profundo do campo da linguagem devido à alteração radical da relação do sujeito com o mundo exterior e consigo mesmo, inclusive com seu próprio corpo, provocando a perda de concatenação entre a aparelhagem linguageira, com a qual subjetivamos o mundo, e os estímulos visuais, auditivos e olfativos. Essa alteração radical se observa na resposta da paciente ao ser questionada por seu psiquiatra sobre as vozes de que ela se queixa: “Pergunte a elas.”

Aqui, o “Eu é um outro” deixa de ser poético. Ele se realiza por assujeitamento. O eu testemunha, pasmo e subjugado, as exigências deste outro onipresente. 

Ora, a identidade linguística afirmando, como Arthur Rimbaud, que “Eu é um outro” perde na fala alucinada a dissimetria existente entre sujeito e objeto. Ela expressa, no mínimo, uma dependência intrínseca na relação entre os dois termos que são consubstanciais aos lugares nos quais estão assentados, donde uma questão fundamental e radical que Lacan coloca, não somente a respeito da alucinação: quem fala ? Quem fala em mim quando cometo um lapso revelando meu desejo ? O dispositivo do divã na cura psicanalítica – que não é condição sine qua non para que haja um tratamento psicanalítico – coloca em evidência este ponto de incerteza e/ou desconhecimento inconsciente onde minha fala se assenta, na medida em que induz a uma abertura quanto ao seu endereçamento, sem se esgotar naquele que escuta, no psicanalista.  Ou seja, se desconheço o terreno que anima meu desejo, que busca expressão pela fala, posso desconhecer também o objeto a quem ele se dirige e que demanda satisfação.   

Nos consultórios, em se tratando de crianças, este referido lugar de onde se origina a palavra salta aos olhos em razão da dependência ao que supõem ser o desejo dos pais, na busca de uma adequação, frequentemente inatingível. A criança “normal”, diferentemente do alucinado, desconhece sua parte de alienação e subjugação diante das vozes e vias desejantes de seus pais, podendo pagar sintomaticamente, sacrificialmente, muito caro para realizar este impossível. 

Os alucinados nos desilusionam tirando o espelho que nos garante unidade e consistência e nos lembram que somos constituídos e atravessados por diferentes coordenadas que, por vezes, apontam em sentidos contrários; alertam, assim, que é necessário não deixarmos nos enganar pelas ilusões egóicas quando fazemos escolhas, quando elegemos, quando afirmamos, pois a imagem que sustentamos pode causar nossa perdição.   

Segundo e último exercício, caro leitor: coloque-se a si mesmo a pergunta “quem fala?” quando afirma algo, quando elege, etc. Ela ajuda a manter-nos acordados de nossos “diálogos” matinais (ou noturnos), nos quais, em geral, só encontramos respostas confortáveis.   

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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