Opinião
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18 de janeiro de 2022
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07:00

Até logo (por Marcia H. de M. Ribeiro)

Imagem: PIxabay
Imagem: PIxabay

Marcia H. de M. Ribeiro – Coluna da APPOA (*)

Um até logo carrega um voto de esperança – quero estar contigo outra vez, amanhã ou depois – e sinaliza um intervalo provisório entre eu e ele enquanto a vida pulsa para ambos. Não é assim com o adeus, este que dizemos quando chega o tempo de ir a Deus. Aliás, é o sentido do qual deriva a palavra adeus nas línguas latinas modernas. 

Nos intervalos esquecemos de nossa finitude e criamos o que a imaginação inspira. Também a ilusão de que o ente querido perdido “virou uma estrela e está lá no céu”. Não serve só para poupar as crianças do sofrimento da perda, mas para afirmar a presença simbólica e circunscrever o território da esperança com a promessa de um encontro futuro. Um até logo que introduz o adeus ou um adeus-até logo. Ficções para circunscrever nossos enigmas.

Durante os anos em que acompanhei crianças e adolescentes em instituições de acolhimento ou em regime de privação de liberdade, encontrei um elemento que lhes era comum. A sensação de estar num acontecimento penoso perpétuo. Percepção com peso extra durante a infância porque a criança, além de não raro supor que o abrigamento seria por culpa sua, não tem uma história a qual revisitar para saber que grande parte dos permanentes são temporários. Os bons e os ruins. 

Na época de festas de final de ano, era comum o aumento da presença de bons samaritanos no abrigo para “levar uma criança” para sua casa para “fazer o bem”, “para alegrar a festa de Natal que fica triste sem criança”, e outras justificativas do gênero. Do lado das instituições, a autorização da visita prolongada aparecia sob o argumento de que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê que elas têm direito ao convívio familiar e comunitário. É bem verdade, têm, mas nem sempre o legal é justo. A bem da verdade, legalidade e justiça convergem raras vezes. Pontualmente. A depender muito do contexto sociopolítico que inspirou a redação da norma e da consciência que a interpreta a partir de um caso singular. 

Então, nas autorizações concedidas para a saída da criança a partir daquele enunciado legal universal encobridor do particular, o até logo de despedida dos adultos ao devolvê-la ao abrigo – que  com “sorte” retornavam no Natal do ano seguinte para farta distribuição de bondades represadas – reatualizava para a criança um adeus anterior irresolvido, fraturava a fantasia de adoção e fortificava a sensação de não ser amável. O suposto bem alcançado com a aplicação do direito previsto na norma, desconsiderando as condições da criança para participar da experiência, não tinha, e nunca terá, por exemplo, o efeito protetivo que o até logo-adeus criado pela ficção do morto amado agora estrela no céu permite. Uma e outra experiência tampouco sendo comparáveis no campo simbólico.

Em situações de grande desamparo por exílio da família, passeios decididos exclusivamente pela regra universal criam novas fraturas, – nunca intervalos – que contribuem para um adeus a si mesmo, para uma desistência que instala um tempo de sofrimentos graves e duradouros. Um até logo pode criar um intervalo bem-vindo se não é transformado por atos em um adeus desprovido de ilusão.

(*) Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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