Opinião
|
16 de dezembro de 2021
|
07:30

Um capitão de verdade (por Carlos Frederico Barcellos Guazzelli)

Vida militar, Campanha da Legalidade, exílio e Anistia: Capitão José Wilson virou testemunha através das próprias lutas | Foto: Joana Berwanger/Sul21
Vida militar, Campanha da Legalidade, exílio e Anistia: Capitão José Wilson virou testemunha através das próprias lutas | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

Fora do Brasil, recebi chocado, no último dia 10, a notícia da trágica morte do capitão José Wilson da Silva, baleado no tórax, em sua residência, em circunstâncias ainda não esclarecidas. Eu o conheci e o admirava, por sua personalidade e trajetória, bem conhecida. Ainda jovem, destacou-se como uma das lideranças do chamado “movimento dos sargentos”, no início dos anos 1960 – em razão do que se elegeu vereador de Porto Alegre, após polêmica eleição, em que se questionou a possibilidade de praças das Forças Armadas concorrerem a cargos eletivos. E, nem bem assumira a vereança, sobreveio o golpe militar de abril de 1964, em virtude do que foi preso e logo teve cassados seus direitos pelos novos governantes, sendo forçado a seguir para o exílio, no Uruguai. Ali permaneceu por alguns anos, vivendo de perto as vicissitudes da vida imposta a Jango, Brizola e centenas de outros companheiros exilados. Sobrevindo, enfim, em 1979, a anistia, mesmo parcial, ele pôde então retornar ao Brasil e integrar-se à luta pela redemocratização.

  Desde então, o capitão Wilson se entregou, de corpo e alma, à organização dos movimentos sociais visando à plena reparação dos danos causados a milhares de cidadãos e cidadãs presos, sequestrados, torturados, cassados, demitidos, expulsos, exilados e até mesmo mortos pelo sistema repressivo montado pelos ditadores. Ele se tornou líder e referência nacional na luta pela efetivação e ampliação da anistia em todos os seus campos – civil, administrativo e penal – defendendo os interesses não apenas dos militares legalistas reprimidos pelos golpistas, mas também dos servidores e servidoras civis. 

  Isto tudo é bem conhecido pelas pessoas que sofreram, ou que conhecem os abusos praticados, desde as primeiras horas, pelos agentes da ditadura civil-militar instaurada a 1º de abril de 1964, contra seus oponentes – reais, potenciais ou imaginários. O que muitos talvez não saibam – e por isso me senti no dever de reportá-lo publicamente – é que ele também prestou relevante contribuição aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada em 2011 e instalada no ano seguinte, com a finalidade precípua de apurar os crimes contra os diretos humanos praticados durante o regime ditatorial, pelos beleguins a seu serviço. 

 Como integrante da Comissão Estadual da Verdade (CEV/RS), instituída a pedido da CNV para auxiliá-la a cumprir sua imensa tarefa, no exíguo prazo a tanto previsto, fui testemunha privilegiada da importante colaboração prestada pelo capitão Wilson em três momentos distintos; primeiro, como membro de um dos dois comitês de memória e verdade então atuantes na capital do estado, sugerindo-nos temas, depoentes e eventos; depois, ele mesmo depondo sobre as violações de que foi vítima, ao ser preso, espancado, cassado e obrigado a exilar-se, tudo em virtude de sua atuação política antes do golpe de ’64; e, last but not least, sua imprescindível ajuda na organização e preparação da audiência pública realizada por ambas as Comissões de Verdade, no Palácio Piratini, para colher os testemunhos de militares – das três forças federais e da Brigada Militar – reprimidos pela chamada “comunidade de segurança e informação”, devido à sua posição legalista em defesa do governo deposto e/ou sua militância em favor do programa de reformas de base por este proposto, e dos direitos dos trabalhadores em geral.

O resultado destas contribuições está consubstanciado nos Relatórios Finais das duas Comissões, depositados e devidamente organizados no Arquivo Nacional, do Ministério da Justiça, e no Arquivo Público do Estado, à disposição de estudantes, estudiosos e do público interessado. 

Antes de encerrar esse relato, como preito de justiça a um homem que dedicou sua vida à defesa da democracia – e que, por ironia cruel, foi vitimado às vésperas de completar 90 anos, no dia consagrado internacionalmente à celebração dos direitos humanos – gostaria de referir que José Wilson da Silva foi um capitão, na acepção plena e digna do termo, mais do que pela patente a que fez jus. Isto porque capitães e tenentes, diferentemente de seus superiores, são oficiais preparados para atuar no terreno das operações bélicas, junto aos praças, liderando-os e correndo os mesmos riscos. Pois o capitão Wilson – antes chamado de “tenente vermelho” – foi precisamente isso, durante toda sua trajetória, desde a juventude: um autêntico líder, dedicado plenamente à luta pelo progresso social e por justiça e verdade, no próprio terreno duro da realidade, enfrentando os obstáculos impostos pelo autoritarismo e a bárbarie.

José Wilson da Silva – presente!!!

(*) Defensor Público aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2021-2014)

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora