Opinião
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14 de novembro de 2021
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10:12

A farsa: Moro, Dallagnol e a Teoria do Medalhão (por Luiz Marques)

Sergio Moro e Deltan Dallagnol | Foto: Divulgação/ALEP
Sergio Moro e Deltan Dallagnol | Foto: Divulgação/ALEP

Luiz Marques (*)

“Teoria do Medalhão, sátira ainda atual sobre os ‘valores’ das nossas elites.”
Flávio Moreira da Costa

Na campanha eleitoral de 2018, a violência racista, machista, lgbtfóbica e misógena do candidato do obscurantismo foi apresentada como “pitoresca”. Apesar das evidências, às vésperas do pleito, O Estadão considerou “uma decisão difícil para os eleitores” a opção do professor com brilhante passagem pelo Ministério da Educação contraposto a um fascista.

Para tirar o PT do Palácio do Planalto, atenuou-se as ignomínias antirrepublicanas e a covarde saudação às torturas na época da ditadura militar, pelo vencedor. Foram esquecidas as ligações com milícias e a carreira na Câmara dos Deputados, com atuação que há muito deveria ter lhe custado o mandato. O Chicago Old e o juiz incompetente e parcial deram o aval à aventura autoritária cujo desfecho era bem previsível. Não tardou para que o raivoso pitbull colocasse coleiras apertadas na Economia e na Justiça. Para o sociólogo José de Souza Martins, “o cenário de avessos em que estamos situa-se nessa ordem esquecida”.

A pantomima no teatro das comunicações prosseguiu, da desculpa ao tratamento do erário como cofre particular dos gabinetes da famiglia (“as ‘rachadinhas’ não prejudicam ninguém, exceto os CCs a serviço do clã”), passou pela complacência com a lavagem de dinheiro e a compra de votos para aprovar projetos antissociais (“o negacionista extrapola no uso de emendas parlamentares, não corrompe, exagera”), – e chegou às escandalosas mentiras reiteradas com desfaçatez pelo primeiro mandatário nas reuniões da ONU. Resultado: a nação tropical virou uma desprezível pária. Feito minimizado pelo destaque à gafe de quem chamou a Torre de Pisa de “Torre de Pizza”. O diversionismo ameniza a sórdida presença de canalhas na sala de jantar dos lares brasileiros. O nazismo começou assim, como uma piada.

É tão comovente o esforço dos porta-vozes dos proprietários dos veículos midiáticos, em normalizar os atos anormais daqueles que servem aos interesses do capital financeiro e do rentismo. Agem, com ardor, qual força auxiliar da temível incubação do ovo da serpente.

De novo, a história se repete como farsa

Agora, o pano se estende a Moro e Dallagnol (“a operação Lava Jato teve falhas, mas não cometeu crimes que sujem a ficha dos protagonistas, é direito dos cidadãos candidatarem-se a cargos eletivos”). Descompromissada com a democracia, a mídia hegemônica não sente escrúpulos em tapar o sol com o compadrio e a cumplicidade. O que une redes televisivas & satélites regionais ao jogral dos falsários é a satírica Teoria do Medalhão, de Machado de Assis (1839-1908). “Deves pôr – diz o pai ao jovem Janjão – todo o cuidado nas ideias que houveres de nutrir para uso alheio ou próprio. O melhor será não as ter absolutamente… Tu pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício”. O ofício de ser a eminência de platitudes midiatizadas para entorpecer e idiotizar as consciências.

Eis o retrato das elites autóctones, sem criatividade e sem capacidade “antropofágica” para metabolizar as ideias vindas de fora, de que falava o Manifesto de Oswald de Andrade. A estupidez, que soa “com gravidade” nos preceitos do neoliberalismo, reproduz a atávica miséria intelectual aliada à vetusta soberba colonial-escravista, pela importação de fórmulas prontas que suspendem o pensamento. Tarefa depois alardeada, acrescenta o Bruxo do Cosme Velho, pela “publicidade… que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, cousas miúdas que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição”. A corrupção, que não ousa jamais pronunciar o seu nome, se completa com premiações e afagos à vaidade dos “jornalistas mais admirados” (sic). A que ponto vexatório vão serviçais da financeirização da economia. Que perversão. Que bobos.

No intuito de que os repórteres de plantão divulguem informes de encomenda, sem mal-entendidos, “podes ajudá-los redigindo tu mesmo a notícia”. Como fazem os think thanks, patrocinados por mega-empresários, na guerra de posição para difundir os “valores” que formatam a sociedade da precarização dos corpos e das almas. Os neoliberais retiram do baú do Consenso de Washington (1989) os narcóticos que a imprensa financeira leva à cidadania intencionalmente. O receituário de dez pontos segue com validade para consumo no país.

A crise de 2007-8, que os Estados Unidos espalharam aos quatro ventos, quebrou um grande banco de investimentos, o Lehman Brothers, e 380 bancos comerciais menores, conforme o Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC). Na origem do caos, que lembrou a debacle de 1929, estavam as desregulamentações e o elogio manchesteriano ao livre mercado. O Fundo Monetário Internacional (FMI) já reconhece a imperiosidade de uma regulação da economia, na contramão do mítico tripé de ferro do laissez-faire: Hayek, Mises e Friedman.

Muitas convicções, nenhuma imaginação

O importante é que “não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade… Nenhuma imaginação? Nenhuma”, escuta atento Janjão. À sua maneira, Moro e Dallagnol ouvem o conselho do fundador da Academia Brasileira de Letras. Com cinismo lesa-pátria, puseram lenha no fogo destruidor da Terra brasilis. Empresas nacionais estratégicas de engenharia, que competiam por mercados além-fronteiras, foram conduzidas à criminosa falência com um saldo de centenas de milhares de desempregados. Delações forçadas sob suplício foram urdidas para caluniar e difamar ícones do campo democrático-popular. O lawfare tornou-se arma de combate para aplainar o caminho à ascensão do “capitão zero”.

Como tamanhas nulidades puderam vir à tona e boiar na onda de multidões, em meio à confusão? Para responder é preciso, de um lado, sublinhar o descrédito da representação política (“não me representa”) e dos partidos políticos (“disputam o poder, deveriam disputar o contrapoder”). Instituições, que prometeram o desenvolvimento socioeconômico, descumpriram as promessas. Políticas públicas praticadas por governantes progressistas foram insuficientes para atender as expectativas despertadas pelo reformismo institucional. Esbarraram em antigas e sólidas “estruturas”. Se o pão foi à mesa, a manteiga não foi. As manifestações de 2013 não foram uma “tempestade no paraíso”, como acreditou o filósofo Slavoj Zizek. Foram a irrupção vulcânica que trouxe às ruas a lava reprimida da história.

Em 1970, a renda dos filhos era superior a dos pais em 90%. Decaiu de modo vertiginoso para 50% nos dois hemisférios, sendo otimista. Se o “medo do futuro” aditivou os protestos do Maio de 1968, – ora joga água no moinho dos retrocessos civilizacionais. Pesquisas em quinze países na Europa sobre, se as causas dos conflitos sociais decorriam da desigualdade de renda, do desemprego, das diferenças étnicas ou de gênero destacavam fatores ideológicos no passado. Na atualidade, põem o conjunto das variáveis em um único saco, donde se depreende que eclodiu uma rejeição em bloco ao establishment. “É necessário aceitar que a democracia representativa falhou em distribuir renda”, resume o cientista político Adam Przeworski em entrevista ao Valor Econômico. A fila não andou. Desandou.

Entre nós, à ausência de confiança sistêmica soma-se uma desconfiança provocada pela conduta do ministro da Economia, flagrado com offshores (leia-se: enriquecimento ilícito) que afrontam o estatuto do alto funcionalismo público. O contexto pertubador revigora o sentimento antigoverno, qualquer governo constitucional, seja de direita, de centro ou de esquerda. O neofascismo, à droite, e as articulações verdes, à gauche, encontram a avenida aberta com o declínio das ideologias nascidas no século XIX. A exemplo do liberalismo, impulsionado pela Revolução Industrial e pelo incremento à urbanização. As pautas “identitárias” obedecem à tendência de maximização do espectro da representação política, fruto das lutas por reconhecimento. E, amiúde, obedecem à desideologização oportunista das polarizações de fundo, por dores no fígado. Por um crasso erro político, o PSTU e uma ala do PSOL endossaram ilegalidades da Lava Jato para incriminar seu alter ego: o PT.

A importância do ecossocialismo, agora

Naomi Klein, em Não Basta Dizer Não (Ed. Bertrand), lamenta que as revelações factuais da ciência climática, em linguagem demasiado técnica, não assumam funções catalisadoras das ações para desconstruir a distopia em marcha. “Não poderia haver uma indicação mais clara de que o atual sistema (o capitalismo) está fracassando. Extensões maiores do planeta vão deixar de ser adequadas à existência humana”. Urge “um prazo firme e irrevogável baseado na ciência”. Numa palavra: “As mudanças climáticas requerem que se abandone o manual econômico pró-corporações, uma das principais razões por que ideólogos de direita estão determinados a negar a realidade. Se quisermos evitar um aquecimento catastrófico, precisamos dar início a uma grande transição política e econômica imediatamente”.

A preocupação com o planeta e a humanidade é prioridade para os jovens. Cabe aos socialistas e aos democratas estabelecerem um diálogo solidário com a juventude. Juntar a bandeira do socialismo democrático às urgências do equilíbrio ecológico e da preservação da biodiversidade é o que permitirá, aos enfants terribles das gerações vindouras, a incorporação de novos e incontornáveis conteúdos à agenda da luta de classes. O rápido desdobramento neoliberal do sistema suscitou enredos de complexidade ampliada, ao presentificar demandas até então distantes da percepção física. O ecossocialismo não é um capricho de classe média, é uma questão dramática para a permanência da vida em Gaia.

A escolha, pois, não é entre o universalismo e o identitarismo, mas entre a barbárie e a civilização socioambiental emancipada dos grilhões do irracionalismo predatório e do processo de acumulação capitalista, no interior das engrenagens do lucro imediatista. As reivindicações dos sindicatos, sobre a diminuição da jornada de labuta, se converteram na exigência de sensatez frente ao grau desmedido de poluição. Os impasses possuem uma dimensão que ultrapassa a clássica dialética do capital e do trabalho. São inadiáveis as transformações radicais no ritmo de produção para a sobrevivência de todas as espécies.

Para o analista do insuspeito Financial Times, Simon Kuper: “Em vez de fabricar mais, os governos precisam oferecer mais tempo às pessoas. Nos países desenvolvidos, onde as pessoas têm o suficiente para viver, deveríamos cortar horas de trabalho para salvar o planeta. Uma semana de quatro dias seria um bom começo. Primeiro, porque a maioria não gosta de seus empregos e se sente sem tempo. Segundo, porque as sociedades ricas não são necessariamente mais felizes. Sociedades igualitárias tendem a ficar, mas as desiguais, não”.

Encerro com uma citação machadiana. “Rumina o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale O Príncipe, de Machiavelli”. Nem Moro, nem Dallagnol entenderam a sátira. O povo, sim. Há que organizar-se e mobilizar para vencer.

(*) Professor de Ciência Política na UFRGS, e ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul no Governo Olívio Dutra.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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