Opinião
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1 de outubro de 2021
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11:27

Necropolítica: números indicam relação entre a política e as mortes na pandemia (por Sandro Ari Andrade de Miranda)

Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

Sandro Ari Andrade de Miranda (*)

O conceito de “necropolítica” foi desenvolvido pelo filósofo camaronês Achille Mbembe e considera a prática dos governos que conduzem suas nações por meio da cultura da morte. De acordo com este autor, desde a colonização moderna dos europeus sobre continentes africano e americano, governantes passaram a exercer contra os seus próprios cidadãos e cidadãs o “direito de matar” e o “de expô-los à morte”. Esta violência se expressa por meio de ações como apartheid, escravidão, racismo, tortura, chacinas, terrorismo, dentre outras, o que inclui também a negação de acesso a serviços públicos básicos para a preservação da vida, além de discursos produzidos por atores que ocupam posições privilegiadas de poder para influenciar comportamentos por meio de propaganda. 

Nesta breve discussão serão apresentados alguns números que demonstram um alinhamento entre a ideologia política do governo brasileiro e o número de mortes provocados pela COVID-19. Desde já é necessário alertar que muitas das informações utilizadas estão prejudicadas pela má gestão de indicadores realizada em todos os níveis, com baixo número de testagem de pacientes e elevado índice de subnotificação. No entanto, alguns dados, em especial o relativo aos números de morbidade, possui um valor significativo como instrumento de avaliação.

Como fonte de referência foram utilizados os dados fornecidos pelo Painel COVID-19 do Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde – CONASS. A escolha foi intencional, exatamente por ser uma base de dados produzida pelas próprias administrações estaduais e que apresenta simetria com outras semelhantes. Conforme será observado adiante, existe uma forte relação entre a ideologia política dos governos e os resultados, em número de mortes, decorrentes do vírus SARS-Cov-2.

Com 21.399.546 casos notificados e 596.463 óbitos (dados de 29/09/2021), o Brasil é hoje o país com terceiro maior número de casos de COVID-19 em todo o globo e o segundo com o maior número de mortes. No entanto, entre os 10 países com o maior número de casos notificados é o que menos realizou testes, razão pela qual não há dúvidas de que a situação é mais problemática do se apresenta, pelo menos em termos de números globais. Como os óbitos são priorizados pelos protocolos de testagem dos governos, este é o indicador com informações mais sólidas e a melhor fonte de avaliação.

De acordo com o CONASS, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro são, por ordem, os estados com o maior número de casos notificados de COVID-19 no país. No entanto, o Rio Janeiro, com 66.015 óbitos, é o segundo o maior número de mortos, demonstrando que o referido Estado é o com maior índice de subnotificação, o que é muito preocupante por ser uma das portas de entrada do país e o local onde os governos parecem mais preocupados em acelerar a redução das medidas de controle da pandemia.

Para a realização desta análise não foi considerado o número absoluto de casos e de óbitos, mas outro indicador que é a média de mortes por 100 mil habitantes. O motivo desta escolha é o fato óbvio de os Estados com maior número de habitantes apresentarem, em regra, maior número de casos, especialmente considerando que o Brasil é uma república federativa com elevada concentração do poder decisório no Governo Central. Em termos de média, a taxa de mortalidade do Brasil é de 283,7 óbitos por 100 mil habitantes, a maior entre 20 países com mais casos de COVID-19 no mundo e a segunda das Américas, perdendo apenas para o Peru (594,4).

Com relação à taxa de mortalidade, os Estados com o maior e menor percentual de óbitos, segundo o CONASS, são os seguintes:

Como se observa no quadro acima, dos cinco estados com maior índice de óbitos, 3 (incluindo o DF), são unidades de federação situadas na região Centro-Oeste. Já com relação ao menor índice, 4 estão situados na região Nordeste. Estes números são ainda mais expressivos quando se observa que todos os Estados do Nordeste, onde a média mais alta é a do Ceará (265,1), apresentam um índice de fatalidades menor do que a média nacional (283,7). Em sentido contrário, todos os estados do Centro-Oeste, incluindo Goiás (334,2), apresentam um índice de mortalidade muito maior do que a média nacional, em média 20% acima.

Mas o número de óbitos acima da média nacional não é um privilégio apenas do Centro-Oeste. No Sul e do Sudeste, apenas um Estado em cada uma destas regiões, Santa Catarina e Minas Gerais, respectivamente, apresentam índices de mortalidade inferiores à média nacional. 

Como se observa, na região Norte, onde ocorreu o escândalo da falta de oxigênio para atendimento de pacientes no Amazonas, existe uma divisão. Amazonas, Roraima e Rondônia apresentam um elevado índice de mortalidade. Já Pará, Tocantins, Amapá e Acre apresentam índices de proteção melhores em relação ao restante do país.

Alguns fatores podem ser perfilhados para avaliar estes resultados, o que inclui desde decisões políticas, até a postura dos governantes. Quanto ao Nordeste é evidente que a atuação articulada nos governadores, por meio de consórcio regional, com consultor científico e planejamento conjunto, inclusive para a compra de vacinas, foi um dos fatores que impulsionou o bom desempenho. Se o país apresentasse uma resposta para o controle da pandemia semelhante à do governo baiano, seriam salvas cerca de 217 mil vidas. Infelizmente não foi isto o que aconteceu. 

Neste sentido, também considerei pertinente cruzar os indicadores de mortalidade com alguns critérios políticos, para avaliar se existe alguma relação entre a ideologia governamental e a influência no governo e as fatalidades. O resultado salta aos olhos.

Como se observa na tabela acima, em nenhum dos estados em que o candidato do PT, Fernando Haddad venceu no segundo turno a média de óbitos por COVID-19 está acima da nacional. Mais do que isto, em todos os estados com melhor desempenho no combate à COVID-19 ocorreu a vitória do petista. Com relação aos Estados vencidos pelo atual presidente, apenas 04, Santa Catarina, Minas Gerais, Amapá e Acre, apresentaram uma taxa de mortalidade abaixo da média nacional. E em sentido contrário ao observado quanto ao voto em Haddad, todos os cinco estados com pior desempenho foram vencidos no segundo turno por Bolsonaro.

Logo, é possível aferir uma relação entre o padrão ideológico existente nestes locais e o alto índice de mortalidade. Como as eleições presidencial e de governadores ocorrem na mesma data, é possível considerar que o peso das ideologias conservadoras também influi na escolha dos governos subnacionais, o que refletiu adiante no enfrentamento da pandemia. Pois mesmo estados governados por partidos que hoje se apresentam como da terceira via, o índice de fatalidade é elevado, como no Rio Grande do Sul, São Paulo e Mato Grosso do Sul, todos com índices de morbidade por COVID-19 acima de 300 por 100 mil habitantes e hoje administrados pelo PSDB. Em sentido contrário, em todas as unidades federativas administradas pelo PT (Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte e Piauí) o índice de mortalidade é menor do que a média nacional.

É evidente que uma leitura realizada exclusivamente em termos de partido é restritiva, na medida em que Espírito Santo (PSB) e Santa Catarina (PSL) apresentam resultados distintos dos seus campos políticos, com índice acima e abaixo da média nacional respectivamente. Talvez o melhor fosse aferir o programa econômico governamental, pois aqueles estados nos quais os governos defendem uma linha programática mais assentada na predominância do interesse privado (o que inclui o Espírito Santo), apresentam resultados muito piores do que os estados onde os governadores propõem uma maior atuação do estado e o fortalecimento de políticas sociais. A velocidade em atender os interesses do mercado e levantar restrições também é algo que parece ter pesado bastante. Caso houvesse uma maior atuação no estado, a dor e o sofrimento da perda de amigos e parentes seria bem menor.

(*) Advogado, doutorando em sociologia

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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