Opinião
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24 de setembro de 2021
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08:19

A anarquia da produção tenta se impor na China (por Ricardo Dathein)

China enfrenta conflitos e contradições envolvendo o avanço do mercado privado. (Foto: Pixabay)
China enfrenta conflitos e contradições envolvendo o avanço do mercado privado. (Foto: Pixabay)

Ricardo Dathein (*)

Recentemente o governo chinês atuou no sentido de controlar setores econômicos que estavam entrando em desacordo com objetivos públicos. Também há riscos de colapso de empresas superendividadas. Nota-se que o governo chinês vinha se arriscando perigosamente ao permitir o empoderamento de grupos econômicos privados. E, com isso, arriscando a estabilidade e o desenvolvimento econômico e social, além de seus projetos de longo prazo.

Em países capitalistas, grandes grupos ou setores econômicos privados buscam capturar o Estado e controlar a política. Isso atualmente ocorre no Brasil, por exemplo, com o agronegócio e o capital financeiro, fundamentalmente. Nos EUA e demais países desenvolvidos, em uns mais, em outros menos, os grandes grupos multinacionais possuem enorme poder político. Na China isso ainda não acontece, mas, sem controle, a tendência é essa. Além disso, economistas chineses com formação nos EUA e que atuam no banco central (Banco Popular da China) defendem que a lógica liberal para as finanças se imponha.

O capital, também chamado de “mercado”, busca liberdade para si. Essa liberdade não é um meio para alcançar lucros e desenvolvimento. Na realidade é um fim em si mesmo. Nesse sentido, não leva em conta a existência de contradições (trade-offs) entre essa sua liberdade e os interesses sociais, estratégicos e geopolíticos. Tampouco considera as contradições entre liberdade no curto e no longo prazo, assim como entre liberdade individual/atomizada e coletiva/estrutural. O governo chinês, sim, percebe essas contradições e atua segundo projetos estratégicos.

Nos EUA, ao contrário, os interesses dos grandes grupos econômicos, ou da sua burguesia, prepondera, em geral, nas definições econômicas e políticas. No entanto, o nacionalismo é uma força unificadora muito forte. Contraditoriamente, essa liberdade do capital nos Estados Unidos tem prejudicado os interesses geopolíticos dessa nação e, por isso, as reações políticas recentes. Dito de outra forma, nos EUA a taxa de lucro comanda a economia; na China, não.

Os defensores do mercado, as grandes empresas privadas chinesas e os economistas liberais defendem que a taxa de lucro comande a economia chinesa. De forma oposta, o governo chinês comanda o mercado e (ainda) atua no sentido de uma lógica de “valor de uso”. Por exemplo, se discute se a construção habitacional deve ter como objetivo suprir as necessidades da população por moradia ou se esse mercado deve funcionar de acordo com uma lógica de “valor”, de ativo financeiro.

Com o capital no comando, a lógica não é a de atender os consumidores, a população, as necessidades, criando valores de uso. Parte-se para a chamada anarquia da produção. Com isso, tem-se o dinamismo positivo próprio do capitalismo, mas também os ciclos econômicos, a instabilidade e as crises periódicas e a concentração de renda, intrínsecas às economias geridas pelo capital. Ou seja, é uma “racionalidade” fora do controle dos seres humanos, o que, sob um ponto de vista social, é uma irracionalidade.

Na China há um conflito, com vários desses fenômenos já ocorrendo, tendo em vista o avanço do mercado privado. Ao mesmo tempo, há projetos econômicos e sociais de longo prazo, contrapondo-se até agora com grande sucesso. Caso o governo chinês perca o controle sobre o capital, os grandes grupos privados tomarão o poder político, o que será uma grande vitória para os EUA.

Os Estados Unidos desperdiçaram uma grande oportunidade, com o fim da URSS. Foram potência hegemônica única por apenas 30 anos. Não souberam e não puderam manter esse poder. Os interesses privados de sua burguesia e suas divisões políticas internas geram dificuldades. Resta seu poder de destruição e sua ainda superioridade tecnológica. Mas também essa está em risco. Isso pode ser ilustrado na nova corrida espacial. Enquanto o capital privado dos EUA busca viabilizar o turismo espacial, os chineses fazem pesquisa científica e constroem uma estação orbital.

Com Biden, os EUA buscam, de certa forma, imitar os chineses. No entanto, não possuem a mesma capacidade e unidade de comando. Para isso, precisam da ideologia, que os une. Mas a atual divisão de sua burguesia parece muito grande, intransponível a curto e médio prazos, o que lhes demandará muito gasto de energia.

Os EUA também não têm muito a oferecer para seus aliados desenvolvidos e menos ainda para países não desenvolvidos. Vide o exemplo do Afeganistão. A China parece ter mais a oferecer, com projetos, como a chamada Nova Rota da Seda, que geram desenvolvimento econômico e melhorias sociais. No entanto, sua burguesia aparentemente busca se libertar de limites, mesmo com todas as oportunidades recebidas. Também assim se percebe que seu objetivo passa a ser sua liberdade, mesmo que isso prejudique a maioria da população e elimine as metas estratégicas de longo prazo do país.

Assim, teremos nos próximos anos e décadas o embate externo entre duas grandes potências, e os embates internos, com as respectivas burguesias buscando sua liberdade, mas contidos por projetos e pela geopolítica. Em um aspecto essencial muito diferente do conflito dos EUA com a URSS, que eram mundos econômicos separados, os EUA e a China são economicamente muito interconectados, de forma que ambos têm muito a perder se o conflito ultrapassar certo nível. Ao Brasil surge uma oportunidade de inserção soberana, o que poderia ser frutífero. O alinhamento automático aos EUA, opção do atual governo militar, parece ser a pior opção.

(*) Professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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