Opinião
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9 de agosto de 2021
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08:57

Questão de vida e de morte (por Baltasar Garzón)

 Até o dia 4 de agosto deste ano, 30 mulheres foram assassinadas na Espanha. (Foto: Pixabay)
Até o dia 4 de agosto deste ano, 30 mulheres foram assassinadas na Espanha. (Foto: Pixabay)

Baltasar Garzón (*)

“Não é uma questão para risos, é uma questão de vida e de morte”. Recordo estas palavras da Procuradora Geral do Estado no dia 2 de março deste ano, ao comparecer ao Congresso para apresentar os dados da Procuradoria Geral do Estado relativos aos assassinatos de mulheres nos anos de 2019 e 2020. Dolores Delgado reprovava assim os cochichos e risinhos dos deputados de Vox (partido de extrema-direita na Espanha) que negam a violência de gênero como um dos mais nauseabundos pilares de sua oferta programática.

Segundo cifras oficiais do Ministério da Igualdade, até o dia 4 de agosto, 30 mulheres foram assassinadas na Espanha em 2021. Destas, apenas sete tinham apresentado denúncia prévia. Os suspeitos de cometerem os assassinatos são seus parceiros, ex-parceiros ou parceiros em fase de ruptura.

São cifras que andam a galope e que ameaçam inclusive superar o horrível balanço de 2020 quando em pleno auge da pandemia foram assassinadas 45 mulheres. O padrão se repete este ano. As estatísticas são sombrias e motivo de desesperança, como aponta o último informe sobre a evolução do número de mulheres vítimas mortais de violência de gênero na Espanha.

O quadro é dramático porque, desde 2003, ano em que começaram a se levantar esses dados, são 1.108 mulheres assassinadas pelas mãos de seus parceiros ou ex-parceiros. Por frios que sejam, os números permitem dimensionar o problema e medir sua evolução para adotar melhores medidas de prevenção e proteção. Por isso, é útil recordar que esses números refletem uma escassa disposição em denunciar por parte das vítimas. Esse aspecto me preocupa sobremaneira, porque isso quer dizer que estas mulheres, acossadas na intimidade de sua familiar ou pessoal, temerosas pela sorte de seus filhos, não se atrevem a dar os passos necessários para apontar seu agressor cotidiano e pedir ajuda. Diversos fatores intervêm para que isso ocorra, é verdade, desde a dificuldade para se reconhecer em situação de risco, passando pelo medo da reação do agressor, a insegurança ante o vazio econômico que por surgir após a denúncia ou inclusive um sentimento de culpa ao pensar que se merece essa situação por não ser a esposa ou a mãe que se espera de acordo com os padrões culturais vigentes que seguem outorgando um grande papel a patriarcado. Há múltiplos fatores, mas todos eles deixam em evidência que, como sociedade, não temos sido capazes de criar a rede de proteção de que necessitam as mulheres nesta situação de vulnerabilidade.

Mulheres que não vêem saída e que se calam sumidas em seu inferno diário, sem possibilidade de achar respostas em um entorno hostil ou mesmo indiferente, em uma sociedade insensível e com uma justiça que é relutante em oferecer a proteção urgente e necessária que precisam.

Como combater esta inibição que leva à morte em demasiadas ocasiões? Os juízes, os promotores, os advogados, todos nós, temos muito o que refletir neste sentido. É sabido que a Procuradoria trabalha com uma equipe de procuradores formados de maneira especializada e que coordena a ação de diferentes departamentos relacionados com esta matéria, para manter uma dinâmica contínua de conhecimento e sensibilização, com instruções claras de acompanhamento às vítimas durante todo o processo e inclusive após a execução da sentença.

Quanto aos juízes, creio que a formação inicial deveria ter muito mais conteúdo nesta matéria e não só no que se refere aos conhecimentos teóricos, mas especialmente quanto à aplicação do Direito, que deveria levar em conta de maneira transversal critérios de igualdade de gênero aplicados ao cotidiano, tanto nos casos com que lidam, como em seu entorno laboral e inclusive em seu próprio espaço pessoal. O machismo não deveria ter guarida no Poder Judiciário, nem no âmbito de qualquer outro operador jurídico e, de modo geral, de qualquer pessoa que trabalhe na administração da justiça.

A responsabilidade de implementar e elaborar programas de conscientização na magistratura e manter uma vigilância contínua e rigorosa contra aquelas atitudes que atentam contra os direitos das mulheres é do Conselho Geral do Poder Judiciário. Este órgão, tão questionado por sua falta de renovação, anunciava no dia 8 de março de 2019, Dia Internacional da Mulher, a implementação do primeiro curso obrigatório sobre perspectiva de gênero, a partir do Pacto de Estado contra a Violência Doméstica e de Gênero, o que é digno de celebração. No entanto, dois anos após o início desses cursos, associações de juízes e juristas manifestaram sua opinião de que, até o momento, não deram grandes frutos. O curso se dirigia a juízes, juízas e promotores que pretendam ingressar em qualquer tipo de especialização dentro da carreira judicial.

Este curso, como requisito, parece uma boa iniciativa, mas há aqui um obstáculo importante: a medida aponta para o futuro, mas os que já estavam envolvidos em processos relativos à violência de gênero não estão obrigados a cursá-los nem a incluir a matéria em sua formação. Isso poderia ser considerado como uma afetação grave do direito à igualdade na aplicação do direito, já que um caso poderia ser tratado de uma maneira ou de outra, dependendo do juíz ou juíza ter essa especialização. A formação deve ser inicial e também continuada. Não há desculpas porque existe uma grande oferta de classes e cursos específicos, inclusive na modalidade online (que está no auge com a pandemia, mas que chegou para ficar), e de formação de formadores.

A título de exemplo, recordo um caso no qual o Tribunal Constitucional, em agosto de 2020, concedeu amparo a uma mulher que, no curso de um procedimento de divórcio, denunciou maus tratos psicológicos por parte de seu parceiro. Na opinião do Tribunal, os fatos não tinham sido investigados suficientemente, razão pela qual ordenou ao Juizado da Violência contra a Mulher que anulasse sua decisão de arquivar o caso, reabrisse a investigação e realizasse novas diligências. Em resumo, tratava-se de uma chamada de atenção aos juízes para que garantissem uma investigação suficiente e eficaz e que respeitassem os critérios que nos vinculam aos ditames de tribunais como o Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

Posso imaginar o largo caminho desta mulher, em busca de justiça, o quão extenuante e oneroso deve ter sido e como isso é proibitivo para tantas outras mulheres que necessitam urgentemente de uma resposta rápida e certeira.

Ocorre que, em demasiadas ocasiões, os juízes chegam tarde. Disso se lamentam profissionais da magistratura que se enfrentam com esse problema diariamente. Recordo um interessante artigo publicado em El Confidencial que li ano passado, no qual três magistradas analisavam a realidade habitual, insistindo na necessidade de “trabalhar e centrar esforços para melhorar o que ocorre antes e depois de sua intervenção”, enfatizando a prevenção e o acompanhamento e como evitar que mesmo uma mínima parte de denunciantes recue. As juízas entrevistadas reclamavam informação, formação e conscientização social como elementos básicos para conseguir com que se rompesse a barreira arrepiante de 80% de mulheres que padecem em silêncio sem informar seu estado. Que cheguem as denúncias para poder oferecer proteção e quando essa intervenção chegue seja ainda a tempo de salvar-lhes a vida.

Vivemos um momento turbulento no qual a extrema-direita, que vem avançando com a ajuda da direita convencional, maneja a negação da violência machista como um mantra e trabalha essa rejeição com boatos e textos propagandísticos. Em março de 2020 a bancada de Vox apresentou uma proposição relativa ao Pacto de Estado contra a Violência de Gênero, propondo sua modificação e a elaboração de uma Lei de Violência Intrafamiliar. Pediam penas iguais para todos os casos de violência no âmbito da família, independentemente do sexo da vítima e do agressor, e medidas de proteção para todas as vítimas sem admitir que a maioria das agressões é dirigoda contra as mulheres. Em janeiro deste ano, demonstraram desprezo semelhante mediante emendas contra o Projeto de lei de medidas urgentes em matéria de proteção e assistência às vítimas de violência de gênero durante a pandemia, que entraram em vigor meses  antes por meio de um decreto.

O Vox voltou a fazer seu discurso negacionista em janeiro de 2021, quando minimizou as vítimas deste flagelo estrutural por meio das alterações registradas no projeto de lei de medidas urgentes em termos de proteção e assistência às vítimas de violência de gênero durante a pandemia, medidas que entraram em vigor no início de abril por meio de decreto real e que agora tramitam como projeto de lei.

A extrema-direita espanhola nega, diretamente, informes como a Pesquisa sobre Violência contra as Mulheres, do Ministério da Igualdade, que, em setembro de 2020, apontou como mais de 11,5 milhões de mulheres maiores de 16 anos, cerca de 57% do total, sofreram ao longo de sua vida algum tipo de violência machista só pelo fato de serem mulheres. 99,6% de seus agressores foram homens.

Essa atitude agressiva de Vox contra a evidência empírica da existência de violência de gênero abre caminho e é um incentivo para aqueles que se sentem ameaçados em seus privilégios como machos alfa. A delegada do Governo contra a Violência de Gênero, Victoria Rossell, disse em alto e bom som recentemente que não se poderia descartar que o aumento da violência que vivemos desde o fim do estado de alarme pode ter a ver “com homens encorajados e indignados com o feminismo”. Concordo com Rossell que há responsabilidade política nessa forma de apresentar as coisas, que mostra o homem como vítima e induz o silêncio da mulher por não acreditar nela.

Devemos, portanto, agir não apenas contra este flagelo feminicida, mas também contra aqueles que o consideram um fato normalizado e não repreensível. A violência de gênero existe. Omissão e negação levam à tortura e assassinato; que a vida de milhares de mulheres, que fazem parte de mais da metade da população, corre em um ciclo infinito e silencioso de dor e impotência. Os risos que Dolores Delgado censurou nos parlamentares do Vox naquela sessão, nada mais foram do que os pregos que procuram fechar o caixão da esperança, porque, como ela mesma disse, não se trata de riso, mas de vida ou morte.

(*) Jurista. Presidente da Fundação Internacional Baltasar Garzón (FIBGAR). Artigo publicado originalmente no site infoLibre

TraduçãoMarco Weissheimer

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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