Opinião
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7 de agosto de 2021
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09:13

O golpe de Estado está a caminho. Quem poderá conter essa fera selvagem? (por Glauber Gularte Lima)

Ato contra o governo de Jair Bolsonaro, dia 3 de julho, em Porto Alegre. (Foto: Luiza Castro/Sul21)
Ato contra o governo de Jair Bolsonaro, dia 3 de julho, em Porto Alegre. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Glauber Gularte Lima (*)

A pior arma do homem é verter lágrimas
quando as espadas estão atiçando o fogo da guerra.
Cádi Abu Saad al-Harawi (Bagdá, 1099 – início das Cruzadas)

O sujeito que hoje atende pela denominação de Presidente da República é a funesta expressão de uma cultura atrasada e autoritária, herdada do colonialismo e da escravidão. Bolsonaro pode ser chamado pejorativamente de quase tudo, e certamente cada uma das qualificações fará algum sentido em se tratando de uma figura doentia e diabólica. Mas talvez a qualificação de mentiroso contumaz seja uma das que melhor expressam o seu caráter e a sua personalidade criminosa.

Contudo, jamais poderemos acusá-lo de que não está sendo absolutamente verdadeiro com seus ideais e concepções de poder ao bradar cotidianamente com ameaças à democracia e às instituições. Ele sempre defendeu a ditadura e isso não é nenhuma novidade. Exerceu por quase três décadas um mandato parlamentar medíocre, através do qual sempre manifestou seu desprezo pela democracia e exaltou figuras como o coronel Brilhante Ustra, um torturador e assassino.

E se elevou à condição de Chefe de Estado no Brasil a partir de um golpe judicial efetivado pela turma da Lava Jato, que tirou Lula das eleições em 2018 através da farsa da sua condenação e posterior prisão. Sobre isso hoje não existem mais convicções, mas provas contundentes, e Moro, Dallagnol e seus lacaios um dia terão que pagar pelos crimes que cometeram. Mas tudo isso já é atualmente tema para os historiadores. 

O grande problema do presente é o que fazer para conter essa fera selvagem que vocifera dia e noite ameaçando a tudo e a todos, assentada sobre os cadáveres de meio milhão de vítimas da sua irresponsabilidade com a prevenção e combate ao Covid-19. As instituições que poderiam erguer um muro de contenção à essa avalanche autoritária ou estão covardemente ajoelhadas ou por ampla maioria já integram as forças da sua coalizão. 

É o caso do Supremo Tribunal Federal, cujo presidente proferiu no retorno do recesso um discurso covarde sem citá-lo uma única vez, mesmo com a instituição sendo cotidianamente atacada pela maior autoridade do país. Seria risível se não fosse trágico. A instituição à qual a república atribuiu o papel de guardiã da Constituição não consegue sequer assegurar a guarda de seu território, invadido por criminosos que ameaçam permanentemente a ordem democrática. É terrível reconhecer, mas talvez estejamos próximos de ver se tornar realidade a fala desprezível de um de seus filhos, que para fechar o STF basta um soldado e um cabo.

E também é o caso do Congresso Nacional – com maiorias constituídas através da destinação de R$ 3 bilhões do chamado orçamento secreto – e das Forças Armadas e Polícias Militares dos estados, integradas por amplas maiorias bolsonaristas. Considerando as clássicas análises de correlação de forças, resta às de oposição seus partidos, sindicatos, organizações e a disputa de opinião e engajamento dos que Baudrillard caracterizou de maiorias silenciosas.

Até o momento, conforme inúmeras pesquisas de opinião realizadas, uma parcela majoritária da sociedade desaprova o governo Bolsonaro e parte significativa expressa uma simpatia pelo retorno de Lula. Mas falta ainda a adesão de parcelas desses descontentes não engajados para dar o volume que os atos de “Fora Bolsonaro” precisam para desbloquear o caminho do impeachment. A chamada voz das ruas, quando ecoa retumbante expressando uma dimensão gigantesca, é capaz de operar verdadeiros milagres na correlação de forças do Congresso Nacional.

No entanto, é importante ressaltar que desde as mobilizações de 2014 que culminaram no golpe contra a presidente Dilma, o país vive um ambiente de curto circuito através de uma crise política e institucional que parece não ter fim. Para as amplas maiorias que não possuem nenhum envolvimento direto com a luta política, isso tende a causar um cansaço com ares de decepção e revolta contra o saco de gato que chamam genericamente de políticos e seu meio de representação, que são as eleições. Ainda mais com a crise econômica que produziu desemprego e aumento do custo de vida. Isso tende a criar um clima cada vez mais dramático e de desdobramentos imprevisíveis daqui pra frente. Diversas pesquisas têm demonstrado nos últimos anos o aumento do número de eleitores que apoiam o fechamento do Congresso e do STF.  

Da classe dominante, não esperemos nada. Na esfera econômica, Bolsonaro é o presidente dos seus sonhos. Governa para os banqueiros, latifundiários e grandes da indústria e do comércio. Mesmo os que se dizem incomodados com a sua verborragia alucinada e tirânica, estão absolutamente satisfeitos com os lucros fabulosos que estão acumulando sob o neoliberalismo selvagem de Guedes.

Para esses, o melhor seria manter esse arremedo de democracia sob o liberalismo à brasileira. Mas se tiverem de optar entre um regime fechado com Bolsonaro e uma arriscada eleição que até o momento sinaliza com a provável volta de Lula, não tenhamos dúvidas. Basta olhar pelo espelho retrovisor e relembrar os episódios envolvendo Getúlio Vargas, Juscelino kubitschek, João Goulart e Dilma Rousseff. 

Nossa elite não tem apreço nenhum pela democracia, apenas a instrumentaliza para assegurar seus interesses econômicos. Quando perde o controle do jogo, rasga a Constituição em nome da liberdade, da democracia, do cínico combate à corrupção e atualmente até mesmo da cruzada contra o comunismo, ressuscitada pelos discípulos de Olavo de Carvalho em pleno século XXI.  

Isso sem falar no ambiente da geopolítica, onde apesar de Donald Trump ter sido derrotado, é líquido e certo que em se tratando de política externa para os países periféricos, republicanos e democratas são duas faces da mesma moeda. Já é visível a movimentação da cúpula do governo Biden junto ao governo Bolsonaro buscando aproximar relações diplomáticas”. 

Nunca esqueçamos que até hoje, em nome da democracia e da liberdade, os EUA apoiaram alguns dos maiores ditadores e assassinos do planeta. E nada indica que deixarão de fazê-lo, desde que seus interesses econômicos continuem preservados. Entrou para a História Universal da Infâmia a famosa frase do presidente Franklin Roosevelt sobre o ditador da Nicarágua Anastásio Somoza, que mandava a Guarda Nacional perfurar com baionetas os ventres das mulheres grávidas, para que não nascessem mais filhos de sandinistas: “Somoza é um filho da puta, mas é o nosso filho da puta”.

Portanto, as forças democráticas e populares possuem desafios gigantescos pela frente. Em um cenário de exceção, é preciso considerar a hipótese de não haver eleições em 2022. Ou elas poderão ocorrer e, no caso de uma provável derrota de Bolsonaro, seus resultados sofrerem contestação com apoio das milícias que estão sendo treinadas nos clubes de tiros espalhados pelo país, ainda antes de entrar em cena o braço armado do estado. Outras duas hipóteses são a da direita conseguir viabilizar a terceira via para neutralizar Bolsonaro e derrotar Lula, ou este vencer, tomar posse e tentar governar dentro dos limites de um ambiente contaminado pelo ódio de seus opositores. 

Tudo isso é possível em um cenário complexo e instável em que se transformou a disputa política brasileira a partir da ascensão do bolsonarismo. Nicolau Maquiavel, fundador da ciência política, já observava através da obra O Príncipe (1513), que depender mais da fortuna que da virtude impõe muito mais dificuldades para assentar raízes e ramificar com vigor. Nessa perspectiva, a possibilidade das forças de resistência se tornarem virtuosas depende de uma única carta nessa mesa de jogo: povo na rua. Sem esse fator estratégico de desequilíbrio de forças, a vida tende a ficar duríssima. 

Mas não podemos abrir mão dos sonhos, sob o risco de perecer em vida. São essas contradições do presente que delinearão o futuro próximo do povo brasileiro. É preciso honrar a história dos que lutaram heroicamente em condições muito mais adversas. Felizmente, os desdobramentos dessa luta de classes contemporânea ainda estão por ser escritos.  

(*) Glauber Gularte Lima é professor

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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