Opinião
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24 de agosto de 2021
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07:30

O Diário de Hélène Berr (Coluna da APPOA)

O DIário de Hélène foi publicado em 2002 e doado ao Memorial da Shoah na França. (Reprodução)
O DIário de Hélène foi publicado em 2002 e doado ao Memorial da Shoah na França. (Reprodução)

Lucia Serrano Pereira (*)

Recebo o livro O Diário de Hélène Berr em casa, como um encontro por fim realizado, já ano e meio de espera. Não que tenha levado esse tempo em seu percurso, mas porque fez parte daqueles tantos chamados durante a pandemia que registramos como ah isso vou buscar, quero ler ou quero ver, passa para a lista dos favoritos, encontra nesse mesmo lugar mil companheiros e ali restam no limbo. 

Mas, chega o tempo de sacudir esse recanto, por em movimento o que vale em primeira mão, deixar cair o que não encontra força de gesto, pelo menos por ora. E foi nesse espírito que o Diário entrou no raio de ação.

Diário  que teve, também, um longo adormecimento; por cinquenta anos ficou cuidadosamente guardado na casa da empregada da família até por fim circular. Foi publicado e doado em 2002 ao Memorial da Shoah na França. 

Escritos dessa jovem de 21 anos que vai nos entregando a força de seu movimento e de suas descobertas ao mesmo tempo em que a normalidade da sua vida como estudante de literatura na Sorbonne, na Paris dos anos quarenta, encontra a barbárie e vai ser absolutamente desorientada.

Hélène dá o testemunho do encontro comovente de formas de não sucumbir, realizando intensamente a experiência de sua vida, até quando isso foi possível. Enquanto pode fazer essa escrita. Mesmo quando é deportada, ao final, para o campo de concentração, sustenta apesar de tudo sua palavra, sua existência,  o anseio de futuro, até o último relato publicado no livro, a carta que escreve à sua irmã, no dia de sua prisão. Não consegue sobreviver por mais de um ano, morre de tifo em Bergen-Belsen pouco tempo antes do final da guerra.

No inicio da pandemia e do confinamento em 2020 foi precioso o encontro com o texto do historiador Felipe Charbel, “Modos de existir pelas palavras”, publicado no Suplemento Literário Pernambuco em março, que, na época, comentei aqui. Foi onde conheci Hélène Berr. Ali, Charbel tratava de como a escrita do diário íntimo tem relação, em momentos de impacto na cena do mundo, com a busca de tecer rede de sustentação para, de alguma forma, atravessar, não se deixar cair no precipício. E recolhe, entre outros, trechos do Diário de Kafka, na entrada da Guerra de 14; do médico sobrevivente a Hiroshima, que inicia seu relato dizendo do dia da explosão da bomba; e nos apresenta, neste conjunto, o diário de Hélène Berr.

Podemos pensar no leitor protegido em tempo posterior, e quem escreve o diário mergulhado em seu tempo sem ainda poder discernir a sequência, envolto na nuvem. O leitor protegido? Sim e não, talvez as leituras desses diários que dizem do enfrentamentos de tempos limítrofes justamente ressoem para nos ajudar a fazer frente aos nossos tempos ( porque são íntimos mas moebianamente tramados com o mundo, com o contexto onde eles surgem e são lidos), com seus outros traços, mas com questões que dizem respeito a como se toma a vida e a morte ( essa não só física, mas tudo o que envolve os desamparos de toda ordem).

O ar do tempo em Paris para uma jovem que caminha pela cidade, que respira e frui de muita beleza, as ruas, os amigos, o gosto pela leitura e as descobertas literárias, os diálogos imaginários com seus autores e personagens estão ali. O encontro amoroso que vem intenso. A vida com sua família, a paixão pela música. E a sombra que vai se instalar, no relato de Hélène, trazendo o paradoxo brutal que acompanhamos na mudança, inicialmente pelos detalhes das primeiras restrições.  

No convívio na Sorbonne a vida dos alunos parece seguir seu curso, dentro da “normalidade” possível de uma ocupação, ou seja, ainda com seu cotidiano, suas vidas de estudantes. Mas ela já vive na pele o estranhamento das modificações e da violência em exercício, no tempo em que o impacto ainda não deixa pensar ou se situar. E esse estranhamento se materializa mais com a surpresa de que seus colegas não judeus não parecem se dar conta das mudanças sutis e ao mesmo tempo radicais em sua vida. E ainda mais: mudança que ao mesmo tempo ela tem vergonha de referir. Como quando no trajeto para a faculdade de repente não pode mais entrar livremente no metro, só no último vagão, que agora é o destinado aos judeus (restrição que se amplia até por fim, sabemos, não poder frequentar a faculdade). Impressiona no relato a expressão tão forte de como a sujeição se alinha com a vergonha dessa condição, o que nos dá a dimensão da expansão do domínio totalitário, o isolamento que isso vai produzindo. A cisão que se instala entre as pessoas, as cegueiras  sobre a condição de ver/registrar  o que está acontecendo na cidade, no bairro, na casa ao lado. Ver e não poder intervir no horror, paralisar, ou erguer a defesa que se encontra à disposição. 

E Hélène vai adentrando esse outro tempo.

 “[…] há dois dias o céu tem uma luminosidade tão suave que enche a gente de nostalgia. Eu sentia vontade de pegar algo que não pode ser pego. É tudo tão irreal, e falamos tão pouco das coisas reais que, por alguns momentos, acho que nada está acontecendo.”

Há momentos em que desiste, não pode mais sequer tocar música, que adora, por pressentir a desgraça que pode vir à sua casa a qualquer momento. Estudar não faz mais sentido, mas o literário é ao mesmo tempo, sustento.

O temor da deportação vai se apresentando mais e mais perto – o que vai acontecer, de fato. Ela vai abrir a porta, pensando que é o correio, e é a polícia alemã, a prisão e a deportação. Final do diário que nos desconcerta, pois é o que antecede sua morte. Nos desamparamos nós.

 São muitas as idas e vindas, o desespero e depois a reação.

Há um trecho em especial, dos meses iniciais do diário, que ficou emblemático para os seus leitores:

 “É o primeiro dia em que me sinto realmente de férias. Faz um tempo radiante, bastante fresco depois do temporal de ontem. Os pássaros piam, uma manhã como aquela de Paul Valéry. São os dois lados da vida neste momento: o frescor, a beleza, a juventude da vida, encarnada nessa manhã tão límpida; a barbárie e o mal, representados por esta estrela amarela.” Era o primeiro dia em que o uso da marca era obrigatório.

Acompanhamos o passo a passo dos dias de Hélène através de seu testemunho entre a  luta por preservar a vida com toda uma luminosidade e intensidade, e a destruição que vem na instrumentalização do gozo completo sobre o outro. Um relato que certamente nos encontra para o diálogo com nosso tempo.

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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