Economia
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10 de julho de 2021
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08:52

Sobre futebol e economia: por que e quando deixamos de “manufaturar” nossos craques? (por Hélio Afonso de Aguilar Filho)

Foto: Lucas Figueiredo/CBF
Foto: Lucas Figueiredo/CBF

Hélio Afonso de Aguilar Filho (*)

A alegação de queda da qualidade técnica do futebol brasileiro (jogadores e, principalmente, times e competições) é repetida à exaustão por setores da crônica esportiva com ampla difusão na opinião pública. Fazer uma avaliação operacionalmente objetiva que ofereça uma “medida” para a técnica é, contudo, algo difícil. Dado o caráter “prático” do futebol, o caminho seria contrastar o desempenho de jogadores, de times e o nível das competições, o que apresenta vieses insuperáveis. Como a percepção de queda é bastante generalizada, mesmo não se traduzindo em uma concepção precisa, é de se supor que ao menos existe um problema que deve ser investigado.

Apresento a seguir as principais razões veiculadas para a queda da qualidade do futebol brasileiro, para depois me contrapor a elas e sugerir as minhas razões. A primeira, apontada por parcela significativa da crônica esportiva, responsabiliza os treinadores ávidos por resultados imediatos, cooptados pelo estilo defensivo de jogo baseado no vigor físico e disposição tática, oposto ao talento “natural” do jogador brasileiro. A segunda aponta para a “formação”, ou seja, para as chamadas categorias de base, vitimadas pela tal filosofia “burocrática” da obediência tática. Nessa mesma linha, há os que veem essa perda de qualidade como associada aos próprios movimentos urbanos; com o crescimento das cidades e a especulação imobiliária, o terreno baldio, espaço da famosa “pelada”, foi desaparecendo: a formação do jogador foi transferida então para as escolinhas, modelo de padronização e “burocratização” em série de jogadores de baixa qualidade.

Não nego que os fatores elencados anteriormente influenciem no nível do futebol praticado no Brasil, mas os coloco em posição explicativa secundária. O avanço da ciência esportiva no futebol tem de fato “descaracterizado” a atividade, que vem se assemelhando mais a algo como basquete ou handebol, e isso não acontece somente no Brasil, ainda que possa ter obtido um peso específico aqui dado à nossa tradição “fantasia”. Quanto aos dois últimos argumentos, acredito que eles se anulam mutuamente. Caso se acredite que a categoria de base tolhe a criatividade, não se pode creditar o problema da perda de nível técnico do jogador a algo que vem ocorrendo nesse espaço. Caso se insista na ideia do tolhimento da criatividade, ressalto que o jogador brasileiro sempre cultivou a crença no dom natural, algo do tipo “quem sabe, nasce sabendo”, e uma aversão pelo treino técnico. Dada essa aversão, acredito que o treinamento pouco contribuiu ao longo do tempo para aprimorar a técnica desses jogadores, principalmente nas categorias de base. Vale lembrar também que treinamento no Brasil sempre foi sinônimo de “rachão”, isso até recentemente.

O que desejo afirmar aqui é que, se há de fato queda da qualidade técnica do futebol brasileiro (principalmente de times e competições), a justificativa para isso se situa no que chamo de queda da “capacidade de transformação da indústria futebolística” brasileira, fenômeno associado mais com razões externas do que internas, ligadas ao impacto conjunto da globalização econômica e financeira e da “globalização do futebol”. Ao usar a metáfora ornamental acima, não pretendo desvelar algo como a essência do futebol brasileiro, apenas oferecer uma descrição de um evento histórico em comparação com o que ocorre na indústria. Assim como a indústria, o futebol tem seus insumos, os jogadores das categorias subprofissionais que, quando manufaturados, transformam-se em atletas de alto rendimento técnico, um produto acabado. O argumento principal gira em torno da perda do controle desse processo de “manufaturar” esses aspirantes a jogadores.

Comecemos a nossa panorâmica histórica pelas décadas de 60 e 70. Nelas o Brasil vivenciou o auge técnico do futebol profissional. Na década de 70 foi criado o campeonato brasileiro, reunindo os maiores clubes do país. A seleção brasileira acabara de acumular, em pouco mais de uma década, três títulos mundiais, e em nossos gramados desfilavam praticamente os maiores craques do planeta, com raras exceções. Exageros à parte, era possível angariar jogadores dos clubes brasileiros para formar no mínimo três seleções igualmente competitivas. O diferencial nessa época era a forma como os jogadores eram “manufaturados”. Esse é o ponto central: quando um jogador das categorias de base integrava o elenco profissional de um grande clube, ele se juntava a uma plêiade de craques. E era aí que ele aprendia, ou dava o salto de qualidade na carreira, na melhor versão learning by doing; isto ocorria porque ele passava a jogar ao lado ou, quando não, contra os grandes craques. Essa era a verdadeira escola, e não as categorias de base.

No fim dos anos 70 e mais intensamente nos anos 80, as coisas começaram a mudar. O mercado europeu passou a ser cada vez mais atrativo para os jogadores brasileiros. Mas mesmo durante esse período, as competições brasileiras ainda permaneceram em alta, pois os grandes jogadores só eram vendidos depois de terem se destacado nos clubes e na seleção brasileira. Dito de outro modo, o mecanismo de “manufaturar” ainda estava em operação no Brasil porque os craques saíam daqui em média com 27 anos de idade (vide os casos de jogadores como Falcão, Zico, Sócrates e Cerezo). Essa idade vai cair para a geração dos anos 90, contudo, mais importante do que isso é o aumento no “volume” de jogadores transferidos para o exterior. A necessidade de reposição tornou-se maior entre os clubes; além do melhor jogador do time, os coadjuvantes começaram a ir para a Europa e para o mercado recém-aberto do Japão. 

Além dos processos típicos da economia mundial dos anos 90, expressos na globalização financeira e na criação de novos mercados e transformação de setores tradicionais em setores capitalistas, um movimento passou a operar paralelamente no futebol, e que será dramático para o Brasil nas décadas subsequentes. Para esse movimento uso o termo já adiantado de “globalização do futebol”; sua origem é a chamada Lei Bosman, que permitiu que jogadores deixassem seus times após o final de seus contratos para assinar com outras equipes, além de derrubar as restrições relacionadas ao número de atletas (europeus) nas escalações dos times. Voltando à metáfora da “manufatura”, a vantagem para os clubes europeus deste movimento conjunto de “globalização do futebol” e globalização econômico-financeira foi a de lhes ter permitido ocupar a posição central numa espécie de “divisão internacional do futebol”. Suas competições esportivas foram capitalizadas, transformando-se em “espetáculo”, ou seja, objetos de atenção do mundo inteiro, ao tempo que o resto do mundo virou uma espécie de periferia fornecedora de insumos (jogadores) e demandante do “espetáculo” do centro. Este processo, contudo, é assimétrico inclusive dentro das regiões e países: na Europa, predomina uma pequena elite de clubes transnacionais; já na periferia, os clubes maiores viraram “predadores” dos menores, que se converteram em fornecedores de jogadores. 

Para o Brasil, a mudança determinante veio com a Lei Pelé de 1998 (Lei do Passe Livre), ao abrir a possiblidade de que jogadores talentosos e cada vez mais jovens (muitos ainda nas categorias de base) passassem a ser assediados por clubes, agentes e representantes estrangeiros. A geração de jogadores como David Luiz, Hulk e Roberto Firmino, por exemplo, mal chegou a jogar no Brasil, indo brilhar direto no futebol europeu. Os que permaneceram foram aqueles de nível abaixo da “fronteira” técnica mundial. Isto teve impacto na profissionalização dos mais novos, que deixaram de jogar com os melhores, ou seja, passaram a ser “manufaturados” por uma “indústria” tecnicamente defasada. Para manter a competitividade, os clubes brasileiros elevaram a folha salarial, tentando atrair jogadores de segundo nível de mercados secundários, como Argentina, Uruguai e Colômbia, ou mesmo veteranos regressados da Europa. O saldo foi o agravamento das dificuldades financeiras dos clubes, com o jogador se transformando num ativo a ser valorizado e vendido antes do término do contrato, movimento fundamental para se pagar o investimento inicial, os custos de intermediação e garantir a liquidez para novas contratações, numa espiral especulativa sem fim. Do ponto de vista técnico o que se observa é a pouca solidez dos elencos, sempre desmontados antes de atingirem o pleno potencial competitivo. O resultado, portanto, são campeonatos cada vez mais caros, com baixa atratividade e sem gerar a contrapartida do rendimento dos clubes europeus.

Mas por que o país não se transformou num polo para “manufaturar” os melhores jogadores, formando uma verdadeira indústria de “transformação”? Do lado da demanda, o futebol é parte da indústria do “espetáculo”, todos pagam para ver o melhor jogar. Do lado da oferta, os custos em oferecer uma unidade a mais de produto são próximos de zero, dadas as características da tecnologia (televisão e internet). Então, por que o Brasil não tirou proveito das suas condições iniciais? Se temos o alegado “talento natural”, por que eles não ficam e todos pagam para vê-los jogar aqui? Em um mundo de intenso fluxo de capital, há quem responsabilize a longa tradição “institucional” patrimonialista e clientelista instalada na administração dos clubes brasileiros. Tal modelo de gestão pouco transparente não atrai investidores internacionais. Outra explicação, a que prefiro, destaca a própria condição econômica do mercado europeu, sua capacidade de criar o “espetáculo” a partir de sua proeminência econômica, a força de suas indústrias de materiais esportivos, os tradicionais canais de influência da sua cultura sobre os mercados globais, principalmente na Ásia, a renda per capita mais elevada, seu poder financeiro. 

Procurei descrever o que vem ocorrendo com o futebol brasileiro usando a metáfora da indústria. A força de uma metáfora reside no fato de que sem ela, a ênfase que o falante deseja colocar não acontece. Além disso, uma metáfora aumenta consideravelmente sua força quando é capaz de ser revertida. Se digo algo como “o homem é um lobo”, tanto aspectos da natureza humana quanto as do lobo são revelados. Então, de que modo essa metáfora do futebol e da indústria nos ajuda a falar sobre e a entender o futebol brasileiro? E o que ela nos diz sobre a indústria brasileira? Como se sabe, o Brasil chegou à década de 1980 como uma das principais nações industrializadas do globo. Hoje, o total da contribuição industrial para o produto caiu de cerca de 30% para algo em torno de 12%, num processo contínuo que já dura três décadas. A semelhança entre ambas as atividades é que, nos dois casos, a posição do Brasil tem regredido à condição de exportador de insumos para a indústria dos outros. Nos dois casos, essa regressão foi precedida por uma abertura comercial abrupta. Nos dois casos, o argumento principal que justifica essa queda é de cunho “institucional” e o foco se dá nas deficiências do modelo de gestão, na corrupção principalmente, e na consequente incapacidade de atrair investimentos externos. Os dois desconsideram que os “mercados” globais são uma expressão da capacidade nacional de impor interesses, mercados muitas vezes dominados por posições oligopolistas difíceis de serem deslocadas, mesmo na área de entretenimento. 

Para concluir, imaginei uma ou duas frases que sintetizassem os argumentos sobre a associação entre futebol e indústria no Brasil. A sugestão que me ocorreu foi o slogan da campanha presidencial de Bill Clinton em 1992, que buscava seduzir o eleitor americano pelo seu pragmatismo. A mensagem foi: “é a economia, estúpido”. Apesar de alusivo, cheguei à conclusão de que o que vem ocorrendo é algo mais específico, já que estamos falando de globalização, de financeirização, de homogeneização das técnicas (para os retardatários), de algo que iguala a geografia do futebol à geopolítica mundial da desigualdade. Então, “é o capitalismo, estúpido”. Só pode ser.

(*) Professor Associado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS. ([email protected])

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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