Opinião
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20 de julho de 2021
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12:26

A Marcha da Insensatez (por André Moreira Cunha e Andrés Ferrari)

Cartazes sobre alta dos alimentos na Avenida Paulista, em São Paulo. (Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas)
Cartazes sobre alta dos alimentos na Avenida Paulista, em São Paulo. (Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas)

André Moreira Cunha e Andrés Ferrari (*)

“O Brasil tem um enorme passado pela frente.” (Millôr Fernandes)

No aclamado livro “A Marcha da Insensatez” (1984), Barbara W. Tuchman questiona o porquê de governantes, em distintos contextos históricos, tomarem decisões que frequentemente contrariam seus próprios interesses ou prejudicam as suas populações. Sua pergunta, especialmente se ampliada para o conjunto das sociedades, poderá ser útil aos futuros historiadores e cientistas sociais quando analisarem o último quartel do século XX e as primeiras décadas do século XXI. A era neoliberal poderá ser contabilizada como mais uma marcha para a insensatez, onde parcelas importantes das sociedades acreditaram na promessa de que a retomada do laissez-faire produziria progresso material para todos. 

Para o conjunto da economia mundial, o desempenho econômico da era neoliberal foi claramente inferior em comparação ao período do “capitalismo regulado”: a renda per capita apresentou uma variação média anual de 3,1% a.a. entre 1950 e 1980, e de 2,1% entre 1981 e 2019. A perda de um ponto percentual por ano em termos de crescimento da renda por habitante não é exatamente um sinal de sucesso. Ainda assim, alguns países e segmentos das sociedades melhoram suas posições relativas. Nas principais economias avançadas e emergentes a distribuição da renda e da riqueza voltou ao padrão de normalidade, com os 1% ou 10% mais ricos se apropriando de quase todo o incremento de renda do período. No “Global Wealth Report 2021”, o banco de investimentos Credit Suisse traz evidências de que, dentre as maiores economias do mundo em 2020, o piso de participação dos 1% mais ricos na riqueza nacional foi observado na França (22,1%), com a maior participação verificada no Brasil (49,6%) e na Rússia (58,2%). 

 Tal resultado seria facilmente reconhecido pelos principais intérpretes da crise liberal. Polanyi, em seu magistral “A Grande Transformação” (1944), demostrou que a mercantilização da força de trabalho, dos recursos da natureza e do dinheiro foram construções políticas da era liberal e que se prestaram à consolidação de uma ordem economicamente dinâmica, socialmente instável e politicamente autoritária. A transformação de pessoas em “coisas” não foi determinada pela natureza ou por leis econômicas imutáveis. Da mesma forma, a criação de mercados livres para transacionar terras, recursos naturais e financeiros foi obra da ação de governantes autoritários ou de parlamentos dominados pelas elites proprietárias. O liberalismo clássico foi o mundo dos impérios ocidentais em expansão sobre o restante do globo, do protecionismo nas economias centrais, da liberdade plena ao capital e da subjugação das massas aos padrões de vida insalubres dos centros urbanos e industriais.

A ordem liberal entrou em crise na primeira metade do século XX. Sua nova faceta passou a ser desenhada pelas elites descontentes com a democracia e a maior coesão social herdada da idade dourada do capitalismo. O neoliberalismo cristalizou a sua reação, especialmente depois da queda do socialismo soviético. As políticas públicas passaram a responder aos anseios dos donos do dinheiro: “menos impostos”, “menos controles e regulações”, “mais liberdade”. 

A tabela 1 deixa claro que nenhuma das principais economias avançadas e emergentes logrou acelerar seu ritmo de crescimento nos anos neoliberais. A notável exceção está na experiência dos países asiáticos. Seus governos são pragmáticos e obcecados com o progresso material e tecnológico. Por isso mesmo não abdicaram do controle estratégico de suas trajetórias de expansão e de seus recursos mais preciosos. Investiram em pessoas, tecnologias, infraestrutura e na constituição de empresas nacionais competitivas nos mercados globais. Mantiveram e aperfeiçoaram suas capacidades estatais. Usaram a mão visível do Estado para apoiar empresas e melhorar a vida das pessoas. Sem exceção, buscaram integrar suas economias à dinâmica da globalização. Não rejeitaram os mercados, a propriedade privada e a concorrência. Procuraram apenas manter sob algum controle as forças do “moinho satânico” polanyiano.

Por outro lado, todas as grandes economias latino-americanas sucumbiram na era neoliberal. Mas nenhuma queda foi mais dramática do que a brasileira. No começo dos anos 1980, o país era o oitavo maior produto de bens industriais do mundo e suas exportações tinham uma participação no mercado global equivalente àquela de outros países emergentes, tais como China, Coreia e México (ao redor de 1,2% a 1,5% das vendas mundiais de mercadorias). Desde então, o Brasil perdeu participação relativa em quase todas as dimensões econômicas. Seu setor produtivo gera hoje (1,5%) metade do valor adicionado industrial global em comparação aos resultados de 35 anos atrás (3,0%). 

A despeito das evidências contundentes que as ordens liberais são incapazes de gerar crescimento sustentável com estabilidade social e ambiental, muitas sociedades e seguem seduzidas pela ilusão da prosperidade para todos. Como nos lembra Francis Fukuyama, um dos ideólogos do neoliberalismo e da renovação conservadora estadunidense, as ideias têm força na ação política e social. Nos anos 1980, sob a influência dos economistas como Hayek, Friedman e Buchanan, políticos, empresários e mesmo trabalhadores ficaram fascinados e convictos de que o “Estado era o problema” e os “mercados a solução”. Ao refletir sobre os efeitos da pandemia da Covid 19, Fukuyama reconheceu que o predomínio desta visão se tornou um obstáculo para a superação de desafios coletivos de grande dimensão, como pandemias e a mudança climática. Da mesma forma, em seus trabalhos recentes admite que o sucesso do neoliberalismo em libertar e reconcentrar a riqueza nas mãos de poucos tornou-se uma ameaça à democracia liberal. Ademais, e diante sucesso chinês e das propostas de maior ativismo estatal da administração Biden, reconheceu a importância da política industrial. 

O neoliberalismo seduz as elites políticas e econômicas ao redor do mundo, porque ele não se funda no compromisso com a democracia e com a preservação da coesão social. Sem compromissos morais com a manutenção de padrões mínimos de coesão social, as elites navegam tranquilamente nos mares da apropriação da riqueza socialmente construída.  Na América Latina não é diferente. A exclusão das massas não proprietárias e a forte concentração do poder econômico e político em parcelas restritas da população são partes constitutivas da nossa formação histórica. Os esforços em reduzir tais desequilíbrios e em ampliar espaços de preservação da soberania nacional, do progresso material e social dificilmente se incorporaram como parte definitiva da paisagem local.

No caso do Brasil, tal ilusão retomou sua força depois de 2015. Multiplicam-se portarias ministeriais, decretos presidenciais, medidas provisórias, leis e emendas constitucionais que buscam reduzir a atuação estatal direta na área social e na promoção da ciência, cultura e infraestrutura econômica. A estratégia em curso se orienta pelo o avanço da privatização em setores estratégicos, particularmente na energia, saneamento e abastecimento de água, e pela redução na proteção do trabalho, dos sindicatos, das populações indígenas, das reservas ambientais etc. Como em outros lugares, tal objetivo se realiza pelo enfraquecimento do serviço público profissional e a desestruturação de instituições provedoras de conhecimento técnico altamente especializado. 

Ao mesmo tempo, são preservados os privilégios em determinadas áreas do Estado, que estão claramente desalinhados da realidade do país e da experiência internacional, conforme se observa em estudos como “OECD Government at Glance, 2021” e o “Atlas do Estado Brasileiro”, do IPEA. As elites econômicas seguem protegidas da tributação progressiva sobre a riqueza e da concorrência internacional. Os resultados desta nova aventura são cada vez mais claros: não se garantiu a retomada do dinamismo econômico e foram perdidos muitos dos avanços sociais herdados do ciclo anterior. Depois da intensa redução da pobreza monetária e de melhorias sociais diversas, migramos rapidamente para o patamar observado de deterioração social do início dos anos 1980 quando, por exemplo, a pobreza atingia 1/3 da população e o acesso à saúde, educação, abastecimento de luz e água, e acesso a moradia e saneamento básico eram fortemente restritos nas populações de baixa renda. 

A Constituição Federal de 1988 (CF 88) foi um marco para o resgate da democracia e para o redirecionamento da ação estatal no sentido da inclusão social e econômica das massas e da universalização de direitos. O seu desmonte representa mais um capítulo da opção nacional pelo atraso. Em nossa marcha acelerada e insensata, desmonta-se a base para a competitividade no século XXI, que é a educação e a ciência; destrói-se o patrimônio ambiental no exato momento em que os problemas associados às mudanças climáticas se agravam; abdica-se do controle estratégico sobre a capacidade de o país manter segurança energética, hídrica e alguma autonomia tecnológica por meio de um processo de privatização de empresas públicas eficientes e de desmonte de capacidades estatais nas mais diversas áreas. Famílias se desestruturam com o desemprego em alta, a queda dos salários reais, a pandemia e a perda adicional de vitalidade da rede de proteção social. 

Não à toa, a confiança da sociedade nos governos e em sua capacidade de realizar boas políticas está em queda no país. O relatório “Government at Glance 2021” mostra que, em 2020, somente, 36% dos brasileiros confiavam no governo federal, com uma queda em 2 pontos percentuais ante o resultado de 2007. Na média dos países da OCDE a confiança cresceu 6 p.p. neste mesmo período, atingindo 51% da população. A despeito da pandemia, em muitos países de alta renda e desenvolvimento humano, tal índice oscila entre 70% e 85%, com destaque para Finlândia e Noruega.

Ademais, no caso do Brasil, a população confia mais nos servidores públicos de carreira (50%) do que no parlamento, governos em geral e judiciário. É importante observar que houve uma forte deterioração na percepção da qualidade dos serviços públicos quando se comparam os dados de 2010 e de 2020. Houve perda de 7 p.p. na satisfação da população com o sistema de saúde, de 17 p.p. na educação e de 10 p.p. nos serviços jurisdicionais. Se, em 2010, a percepção dos usuários sobre a qualidade dos serviços públicos no Brasil estava mais próxima à média da OCDE; em 2020 tais resultados se distanciaram.

O liberalismo clássico e a sua reinvenção contemporânea jamais se comprometeram com o progresso para toda a população, ou com a democracia das massas. Tais resultados ocorreram em momentos de crise da ordem liberal ou pelo esforço consciente de sociedades que optaram pelo avanço socioeconômico e não pelo atraso. Neste momento, em que o futuro se tornou ainda mais incerto, talvez a única certeza possível é a de que o Brasil tem um enorme passado pela frente. Se ele não for exorcizado, seguiremos perdendo relevância como sociedade e nação.

(*) Professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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