Opinião
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29 de junho de 2021
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08:42

PL 260/2020 e o princípio do não retrocesso ambiental (por Demilson Fortes)

Ato contra o PL 260/2020, em frente ao Palácio Piratini. Foto: Anahi Fros
Ato contra o PL 260/2020, em frente ao Palácio Piratini. Foto: Anahi Fros

Demilson Fortes (*)

“É a degradação da lei levando à degradação ambiental”. (Antonio Herman Benjamin, ministro do Superior Tribunal de Justiça)

O PL 260/2020, de autoria do Poder Executivo do Rio Grande do Sul, altera o §2 do Art. 1°, da Lei Estadual nº 7.747/82 que “dispõe sobre o controle de agrotóxicos e outros biocidas a nível estadual”. O texto tramita na Assembleia Legislativa em regime de urgência em período de pandemia sem passar por amplo debate com a sociedade. A Lei nº 7.747/82 criou um marco legal protetivo que não existia antes no país. Desta forma, além de criar regras de registro e uso dos agrotóxicos buscou equiparar o RS a países europeus que estavam proibindo princípios ativos causadores de câncer, mutações genéticas, problemas no sistema nervoso e hormonal, entre tantos outros graves problemas de saúde pública. 

O §2 do Art. 1°, na Lei nº 7.747/82, estabelece que “Só serão admitidos, em território estadual, a distribuição e comercialização de produtos agrotóxicos e biocidas já registrados no órgão federal competente e que, se resultantes de importação, tenham uso autorizado no país de origem”.

O pressuposto estabelecido foi de que se o produto não é permitido no país onde está registrada a patente, onde foi gerada a tecnologia ou onde é fabricado, também não poderia ser fabricado ou comercializado no território estadual. Contudo, a lei admitia o uso para produtos que estavam em uso nos países de origem.

O Decreto nº 32.854/1988 regulamentou a Lei nº 7.747/82, exigindo a comprovação de que o produto a ser cadastrado pelo órgão estadual tinha de ter seu uso autorizado no país de origem com apresentação de certidão emitida pelo órgão competente da respectiva nação. E no parágrafo único do Art.3° definia: “Considera-se país de origem, aquele em que se originou a síntese correspondente ao princípio ativo da substância; o país em que é gerada ou manufaturada a tecnologia e aquele de onde o produto é importado”. 

Em 2018, no Governo José Ivo Sartori, ocorreu o primeiro golpe por meio do Decreto nº 53.888/2018, onde deu-se nova redação, alterando a interpretação, descaracterizando o objetivo original. No § 1º do Art. 3º ficou estabelecida nova redação para país de origem: “Considera-se país de origem aquele em que o agrotóxico, componente ou afim for produzido”.

Agora, o governo estadual faz tramitar em regime de urgência o PL 260/2020 que revoga essa exigência. Na prática é como revogar toda a lei, porque o sentido dessa norma é justamente essa diferença em relação à lei federal.  Para aprovar o PL 260, o Governo do Estado justifica que os agrotóxicos estão regrados pela Lei Federal n° 7.082/89, que normatiza a matéria. Argumenta que não existe na legislação federal a exigência de ser usado no país de origem. Mas, a verdade é que a motivação do governo é econômica e política, buscando atender o setor produtivo do agronegócio, que tensiona para ter acesso a essas tecnologias, mesmo que já estejam banidas de muitos países e sejam comprovadamente danosas.

Todavia, a contradição está no fato do Rio Grande do Sul ser um grande produtor agrícola, principalmente, de grãos, mesmo com a existência da lei estadual mais rigorosa. Portanto, a questão central colocada no debate é que tal decisão é política e tem motivação meramente econômica, minimizando os riscos para a saúde humana e os impactos ao meio ambiente. 

“Eduardo Leite se associa ao presidente Bolsonaro para liberar agrotóxicos, desconsiderando a ciência médica.”
Em nome de satisfazer a base aliada ruralista, o governo Eduardo Leite (PSDB) opta por liberar produtos que podem causar contaminação dos recursos hídricos e dos alimentos, levando à degradação ecológica. O chefe do Executivo se associa ao presidente Bolsonaro para liberar agrotóxicos, desconsiderando a ciência médica, que tem inúmeras provas dos impactos dos agrotóxicos.

Além da traição histórica, este é um equívoco brutal do Governo do Estado e das entidades de classe que buscam a mudança, alegando que alterar a lei estadual ajudaria os produtores do RS. Contrariamente, é a sustentabilidade que pode fazer do Estado um produtor agrícola diferenciado, aspecto que poderia ser melhor explorar no mercado. 

Considerando a importância da Lei nº 7.747/82 para a saúde pública, para a integridade e funcionamento dos ecossistemas, qualidade das águas e alimentação  saudável, observa-se que  a aprovação do PL 260/2020 constitui um grave retrocesso ambiental, pois retira a exigência legal de somente admitir o uso no Estado de agrotóxico que seja autorizado no país de origem, regra que constitui uma barreira a produtos que não foram admitidos, deixaram de ser usados ou foram expressamente proibidos em países onde se fabrica o produto químico. 

Revogar esse dispositivo estabelecido em lei, que tem como objetivo central proteger a saúde da população, a integridade dos ecossistemas, a fauna e flora e a qualidade dos recursos hídricos, caracteriza-se como um retrocesso ambiental, portanto, fere a Constituição Federal e todo o sistema legal de proteção ambiental, considerando que há um consenso científico mundial que reconhece os agrotóxicos como substâncias perigosas com potencial de fazer mal à saúde humana e ao meio ambiente, inclusive, causando danos irreversíveis e irreparáveis, comprovado por denso material científico. 

Aprovar o PL 260 é se posicionar na contramão do disposto no Art. 225. Constituição Federal, que indica: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Segundo definição do jurista Celso Antônio Bandeira de Mello “Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”. 

No direito ambiental, portanto, os princípios indicam a essência da lei, a lógica do sistema e critério para julgamento na aplicação, no sentido da norma cumprir com os seus objetivos. Ganha assim força e se consolida em vários países e tratados globais o princípio do não retrocesso ambiental ou princípio da não regressão. Este coloca-se, juntamente com o princípio da prevenção e da precaução, como base jurídica que busca evitar retrocessos legais que levariam a danos e degradação. Estes são a base jurídica do Direito Ambiental para enfrentar casos como do PL 260, que busca, por meio de maiorias legislativas momentâneas, impor retrocessos na proteção do meio ambiente e da saúde pública.

O meio ambiente sadio e equilibrado é um direito fundamental do indivíduo e da coletividade. Esse direito é estendido às futuras gerações. Há uma ética entre elas que precisa ser observada e respeitada. Essa lógica tem sido tema de debates em todo o mundo. Alguns juristas ambientais equiparam aos direitos adquiridos em outras esferas de conquistas ou a ideia de irreversibilidade associada à conquista dos direitos humanos. Alguns entendem que o direito ambiental é a expressão política de uma ética. 

O princípio do não retrocesso ambiental ou princípio da não regressão coloca então que não pode um governo passageiro atendendo interesses setoriais e momentâneas colocar em risco o futuro suprimindo ou flexibilizando regras de proteção ambiental, que, em última análise, representam a qualidade de vida das pessoas, pois pode significar mais poluição e degradação. 

No texto Princípio da Proibição de Retrocesso Ambiental (Senado Federal), ao defender o princípio da proibição de retrocesso ambiental, o ministro do Superior Tribunal de Justiça e Professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Brasília, Antonio Herman Benjamin, coloca que reduzir patamares de proteção ambiental em certos casos “nada mais significa que retroceder na roda do tempo”. Assim escreve o ministro:

“Ora, se o crescimento econômico contínuo parece ser a única, ou dominante, via de satisfação das expectativas estritamente materiais das pessoas e da própria rotina das políticas públicas, nada mais justo que, na mesma toada, os controles legislativos e mecanismos de salvaguarda dos direitos humanos e do patrimônio natural das gerações futuras observem idêntica índole, o “caminhar somente para a frente”.”

“E mesmo que custos, até elevados, estivessem associados ao princípio da proibição de retrocesso ambiental (o que não é o caso, repita-se), como se trata de resguardar as bases da vida, e, amiúde, salvar, literalmente, vidas humanas, em nada se justificaria economizar aqui para gastar acolá, ou, pior, gastar muito mais adiante com medidas de recuperação do meio ambiente degradado, de mitigação e de adaptação.”

“Fica a lição com jeito de alerta: no universo da proteção jurídica do ambiente, o antiprogresso e, pior, o retrocesso legislativo, este sim, tem custos para as presentes e futuras gerações, provavelmente irreversíveis. 

É a degradação da lei levando à degradação ambiental.”

O Brasil utiliza mais de 550.000 toneladas de agrotóxicos por ano. O país ocupa a posição de maior consumidor de agrotóxicos do mundo em volume. E ainda tem o uso de produto ilegal, que faz aumentar ainda mais a conta. Há metodologias que indicam que o Brasil utiliza, anualmente, mais de 800.000 toneladas de agrotóxicos. Além de usar muito produto, o Brasil utiliza agrotóxicos já banidos em outros países. O que está em debate na alteração da Lei Estadual nº 7.747/82 é a saúde da população e a proteção do meio ambiente – da biodiversidade, ar, solo da qualidade das águas. O que está em discussão é a qualidade do alimento que vai à mesa da população.

Estamos diante de um grave retrocesso ambiental que tem o governador Eduardo Leite (PSDB) como principal responsável. Os parlamentares que votarem a favor da alteração estarão colocando mais veneno no prato das famílias gaúchas e contribuindo para a degradação ecológica. Se a Assembleia Legislativa não impedir esse retrocesso proposto pelo Executivo caberá a sociedade civil buscar na Justiça estancar a marcha da degradação de Eduardo Leite. 

(*) Demilson Fortes, engenheiro agrônomo, ecologista. 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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