Economia
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24 de junho de 2021
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07:39

Desenvolvimentismo, social-liberalismo, ultraliberalismo e a necessidade de sua superação (por Ricardo Dathein)

Paulo Guedes, ministro da Economia, e Jair Bolsonaro. (Foto: Marcos Corrêa/PR)
Paulo Guedes, ministro da Economia, e Jair Bolsonaro. (Foto: Marcos Corrêa/PR)

Ricardo Dathein (*)

A trajetória da economia brasileira, desde 1930, pode ser classificada em 3 etapas: fase Desenvolvimentista, fase Social-liberal e a atual fase Ultraliberal. O período entre 1930 e 1980 é normalmente considerado como a fase Desenvolvimentista. A década de 1980 pode ser interpretada como de crise e de transição entre dois modelos. A partir de 1990, após a transição democrática e a nova Constituição, iniciou-se o Social-liberalismo. O golpe de 2016 pode ter significado o fim dessa fase Social-liberal e o início da fase Ultraliberal.

O Social-liberalismo como consenso possível derivou da crise do estatismo econômico da ditadura militar e seus fracassos econômicos e sociais desde o final dos anos 1970 e nos anos 1980, e, também, é resultado do fim do socialismo real e do novo contexto internacional. Assim, consolidou-se como projeto hegemônico, como novo senso comum. No Brasil, o Ultraliberalismo de 2016 em diante, rompendo com o Social-liberalismo, é também derivado de mudanças importantes no contexto internacional, econômicas e geopolíticas, mas também e fundamentalmente resulta dos fracassos do Social-liberalismo.

Esse Social-liberalismo caracteriza-se, resumidamente, pela consolidação de uma visão de que o Estado deve se focar nas questões sociais e deixar que a economia seja gerida pelo mercado, a não ser por uma regulação mínima. De fato, no Brasil houve grandes avanços em termos de gastos na saúde pública, na educação, na assistência social e na previdência social. Ao mesmo tempo, houve redução dos patamares de investimentos públicos e amplas desestatizações. O orçamento público mudou seu foco, portanto.

Houve características específicas em cada momento, entre os governos de FHC e de Lula, por exemplo. O primeiro focou-se na abertura econômica, nas privatizações e em desregulação, enquanto o segundo focou-se no combate à pobreza e à desigualdade, e ampliou investimentos públicos, bloqueando o processo de privatizações. No entanto, a dinâmica do gasto público, em geral, permaneceu a mesma, além da lógica de gestão macroeconômica e a abertura comercial e financeira, que não foi alterada. Esse regime, de fato, foi fortemente institucionalizado, adquirindo amplo apoio entre a burguesia nacional, das burocracias e instituições estatais e, inclusive, da maior parte da esquerda.

O dinamismo econômico do período Social-liberal foi, em média, muito deficiente. Os dados sobre desindustrialização (ou, de forma mais ampla, sobre a piora da qualidade da estrutura econômica), assim como da evolução da taxa de lucro, dos investimentos e da taxa de acumulação (crescimento do estoque de capital produtivo) demonstram esse fato. Isso determinou um fraco desempenho do PIB e da produtividade do trabalho e, com isso, dos salários médios no longo prazo.

Por outro lado, recentemente as crises e as tendências disruptivas em termos políticos não foram realidade apenas no Brasil. O Social-liberalismo estava debilitado também internacionalmente. Ao recusar, a não ser excepcionalmente, a ação estatal dinamizadora na economia, essa concepção acabou por prejudicar também a performance social e política.

No Brasil, ao longo do período do Social-liberalismo, foi se gestando sua exaustão. A mudança estrutural redutora da complexidade econômica determinou forte ampliação do domínio de poder econômico e político do “agronegócio” e do capital financeiro privado, ambas frações de classe basicamente apartadas de interesse no desenvolvimento nacional. A primeira vive fortemente de exportações, a segunda da sucção de recursos públicos e de clientes.

A fração industrial nacional, nesse contexto, é cada vez mais débil, o que é demonstrado pelo fato de não conseguir apresentar um projeto, além de pouco apoiar projetos de Estado, ou mesmo políticas macroeconômicas e microeconômicas, que se contrapusessem à longa tendência de desindustrialização. Assim, ficou e fica em geral a reboque das duas outras frações da classe dominante ou simplesmente também é parte delas, em seu portfólio de investimentos. Além disso, a desindustrialização reduziu fortemente o peso da classe trabalhadora (a classe média assalariada), o que é uma das fontes da crise política. Por outro lado, verificou-se grande empoderamento no Estado de facções burocráticas sem compromisso com o desenvolvimento econômico e social do país, como nos meios jurídico e militar.

Tanto nos governos de FHC, quanto nos de Lula, mesmo sem sucesso, houve tentativas de incremento da inovação e da produtividade como elementos geradores de maior taxa de lucro e, com isso, maiores investimentos e crescimento econômico. Em FHC, entre outras políticas, com abertura econômica e atração de capital externo; em Lula, também com políticas industriais e investimentos públicos.

Com o Ultraliberalismo, o foco mudou completamente. Agora as maiores rentabilidades devem provir da maior exploração do trabalho, dos consumidores e do Estado (via reforma trabalhista, da previdência, de menores custos de regulação, com o teto de gastos e as privatizações, entre outros). O parcial Estado do bem-estar social, portanto, deve ser eliminado. Desse modo, para o Ultraliberalismo, o mercado deve gerir não somente a vida econômica, mas também a vida social.

No Desenvolvimentismo, a mudança estrutural estava em andamento, mas ficou incompleta, enquanto a mudança social tardava e falhava. Durante o Social-liberalismo tentou-se o oposto, promover mudanças sociais, na esperança de que o mercado fizesse mudanças estruturais ascendentes na economia, o que não ocorreu. No Ultraliberalismo pretende-se que o mercado faça ambas (mudança social e econômica), com a concentração de renda recuperando a rentabilidade do capital. O objetivo é rentabilizar inclusive negócios somente viáveis com grande piora social e transferências de renda e riqueza do Estado.

Trata-se de um projeto de subdesenvolvimento econômico e social. No entanto, o Ultraliberalismo está fadado a gerar muita instabilidade econômica e social, pois não promove mudança estrutural positiva e nem garante melhorias sociais. Ao contrário, tende a permanecer a tendência de piora estrutural, além de reverter as melhorias sociais do período Social-liberal.

Uma das causas do golpe de 2016 foi a negativa dos governos petistas de aceitar a concentração de renda como solução para as dificuldades de rentabilidade do capital. Com o avanço do chamado “empreendedorismo” como alternativa de sobrevivência para a classe média, tendo em vista o baixo dinamismo dos investimentos, esse problema se agravou fortemente. Assim, o Ultraliberalismo se apresentou como “solução”. Agora, a proposta é a concentração de renda, para o que, inclusive, a atual alta da inflação é muito funcional.

Com essas características, o Ultraliberalismo necessita do autoritarismo político. Para a democracia, é necessário construir o oposto. Ou seja, que a sociedade, via o Estado, promova a complexificação da estrutura produtiva e a mudança social positiva, concomitantemente. É isso que pode evitar a deterioração social, econômica e política. A saída, portanto, não é o Ultraliberalismo e nem a volta ao Social-liberalismo ou ao Desenvolvimentismo clássico, mas sua superação, como os exemplos da China e mesmo dos EUA de Biden mostram.

(*) Professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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