Eleições 2022
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12 de outubro de 2022
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07:14

Mandato Coletivo na Câmara terá o desafio de aperfeiçoar a representação democrática

Por
Luciano Velleda
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Os integrantes do primeiro mandato coletivo na história da Câmara. Foto: Divulgação
Os integrantes do primeiro mandato coletivo na história da Câmara. Foto: Divulgação

Cerca de três anos após ser articulado, o mandato coletivo do PCdoB composto pelo cientista social Giovani Culau e os co-vereadores Airton Silva, Vivian Aires, Tássia Amorim e Fabíola Loguercio assumirá assento na Câmara de Porto Alegre em 2023. Será o primeiro mandato coletivo no Legislativo da Capital. O grupo está hoje na suplência e a vaga se abre devido à eleição de Daiana Santos (PCdoB) para a Câmara dos Deputados e de Bruna Rodrigues (PCdoB) para a Assembleia Legislativa.

Os membros do mandato coletivo, formado no final de 2019, têm origem na União da Juventude Socialista (UJS), na União de Negros e Negras pela Igualdade (Unegro) e na União Brasileira de Mulheres (UBM).

Culau explica que o grupo primeiro lançou o movimento com o objetivo de construir uma candidatura coletiva, antes de definir quem seriam os representantes. O trabalho foi sendo realizado até a eleição municipal de 2020, período no qual os integrantes foram então se conhecendo. Mesmo ficando na suplência em 2020, o grupo se manteve unido, realizou ações durante os períodos mais dramáticos da pandemia do novo coronavírus e agora se preparar para assumir a cadeira na Câmara.

O cientista social conta que o primeiro contato que tiveram com um mandato coletivo foi em 2016, em Goiás, mas o grande exemplo surgiu em 2018, com a eleição da Bancada Ativista do PSOL para a Assembleia Legislativa em São Paulo. Culau lembra que quando foi candidato a deputado federal no mesmo ano já discutia a construção de uma candidatura coletiva. A ideia, entretanto, não foi adiante naquele momento. “Eu diria que, em alguma medida, faltou uma dose de coragem”, reconhece. A vitória da Bancada Ativista foi então importante para dar essa coragem.

“Quando nós discutimos o desafio de uma cidade democrática, a característica da nossa candidatura coletiva foi ter diferentes lideranças, de diferentes locais da cidade, com diferentes pautas de atuação, para cada um ser porta-voz do nosso debate, das nossas lutas e bandeiras. É assim que a gente pretende atuar na Câmara”, explica. “Para definir quem seriam nossos representantes e nossas propostas, fizemos encontros permanentes e queremos manter esses encontros na construção do mandato e, em todas nossas decisões, cada um ser porta-voz nas diferentes bandeiras que a gente vai tocar nos próximos dois anos.”

Ele diz que a experiência da Bancada Ativista em São Paulo estimula a vontade de estudar o regimento da Câmara para pensar possíveis alterações que possam ser propostas. O grupo que assumirá o mandato coletivo trabalha com duas metas iniciais: a atuação perante as comissões e serem, cada um, porta-voz de diferentes pautas.

“Uma das questões que queremos levar adiante é garantir que nossos co-vereadores sejam respeitados e legitimados no acompanhamento das diferentes Comissões da Câmara, enquanto vereadores que constroem um mandato coletivo”, explica Culao.

Apesar dos mandatos coletivos estarem em evidência atualmente, esse tipo de experimentação democrática existe desde 1994. Uma série de tentativas de representatividade política têm sido feita nas últimas décadas e com outros formatos, incluindo mandatos digitais e os mandatos compartilhados, experimentados nas esferas municipais e estadual, principalmente, em diversos estados do Brasil.

Professor no Departamento de Administração Pública da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), Leonardo Secchi explica que o surgimento e crescimento dos mandatos coletivos tem a ver com a crise de representatividade. Há a ideia de que o eleitor tem deixado de acreditar nos seus representantes e exige cada vez mais influência durante o período do mandato, não apenas no momento de eleição. Há também o anseio de maior responsabilização e transparência.

O outro motivo tem relação com a percepção de que os mandatos tradicionais têm a tendência de reproduzir lógicas elitistas dentro dos partidos políticos. Com isso, os mandatos coletivos passaram a ser vistos como uma estratégia de unificação de esforços e de pessoas que estão entrando na política pela primeira vez. Um caminho para obter maior chance de sucesso na eleição. Assim, os mandatos coletivos têm sido cada vez mais experimentados como estratégia eleitoral e, em caso de vitória, se tenta colocar em prática um mandato mais participativo.

“Os mandatos coletivos respondem a essa dupla queixa que a população tem e também a percepção dos candidatos e futuros mandatários de que há um diferencial argumentativo de apresentação de proposta e de diferenciação de candidatura frentes aos mandatos tradicionais. Ao invés de fazer aquelas campanhas tradicionais centradas no candidato individual, se faz uma candidatura pautada no processo de construção coletiva de propostas, com a promessa política de depois exercer o mandato de maneira mais horizontal”, explica Secchi.

Como comparação, o mandato tradicional é aquele em que o eleitor influencia apenas no momento da votação e, quatro anos depois, premia o parlamentar com sua reeleição ou o pune, votando em outra pessoa. Já o mandato coletivo tem a característica de buscar que mais pessoas controlem esse mandato durante os quatro anos de legislatura.

“É uma forma de tentar mesclar aquilo que a gente chama de democracia representativa com a democracia direta. E quanto maior o número de pessoas que participam desses mandados coletivos, mais chances existem também de um controle social desse mandato coletivo. Claro que nem todos os mandatos coletivos são realmente grandes coletivos ou uma grande quantidade de pessoas participando. Às vezes, são grupos reduzidos a três ou cinco pessoas, que acaba fazendo com que haja um pouco mais de controle social, mas não tanto quanto a potencialidade”, pondera o professor da Udesc.

Eleição da Bancada Ativista, em São Paulo, deu “coragem” ao grupo do PCdoB para tentar a mesma experiência em Porto Alegre. Foto: Reprodução/Facebook

O caso da Bancada Ativista do PSOL em São Paulo, tido como referência para os integrantes do PCdoB que assumirão na Câmara, além da projeção nacional na ocasião da vitória, depois ficou marcado por fortes divergências entre os integrantes no exercício do mandato.

Pesquisador sobre o tema dos mandatos coletivos no Brasil, Secchi analisa que a Bancada Ativista tornou-se um caso exemplar dos conflitos que podem haver, principalmente entre as orientações partidárias e as pessoas que compõem o mandato coletivo.

“Nesse caso houve a expulsão de uma das co-deputadas num processo bastante abrupto, com argumentos a favor e contra a pertinência do processo. Mas a verdade é que, do ponto de vista social, ficou a imagem de que o mandato coletivo tem que fazer aprimoramentos nas expectativas geradas na população”, avalia o professor. Para ele, os nove co-deputados da Bancada Ativista deveriam ter tido o mesmo peso, independente de quem está com o nome na urna para receber o mandato formalmente. Ao mesmo tempo, o partido político também tem a expectativa de que o seu mandatário tenha obediência política.

“Pense numa situação em que o partido orienta o legislador a fazer tal votação em plenário e os co-deputados orientam a fazer de outra maneira. Então ali existe uma grande chance de incoerência, inconsistência e conflito entre aqueles que dominam o mandato e a orientação partidária. Nesse caso (da Bancada Ativista), o que acabou prevalecendo foi a orientação partidária”, explica.

Nas eleições do último dia 2, uma das lideranças da Bancada Ativista do PSOL em São Paulo conseguiu se reeleger, novamente num mandato coletivo, mas agora composto somente por mulheres negras.

“São elementos que têm que ser trabalhados, do ponto de vista anterior à própria eleição. Ou seja, escrever algum acordo prévio entre essas pessoas e também que haja ciência do partido de que está aceitando uma situação de semi-independência daquele grupo de pessoas, que eles vão ter autonomia de votação. E que o grupo tem autonomia e regras de responsabilidades e benefícios derivados do exercício mandato coletivo”, avalia Secchi.

Para o professor da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), os riscos do mandato coletivo se inserem numa experimentação democrática. Há variações com relação ao número de pessoas que integram o mandato, a forma de participar, o nível de poder de cada um, se podem ou não elaborar projeto de lei, se podem ou não se posicionar em comissões, se podem ou não ter exposição na mídia.

“A formatação dos limites e das responsabilidades desses mandados coletivos fazem com que diminua a chance de ter essas crises pós-eleição”, acredita.

Diante da experiência que se aproxima, Giovani Culau (PCdoB) confia que o conhecimento mútuo entre os integrantes do grupo que assumirá na Câmara evitará a risco de racha.

Segundo ele, a construção coletiva iniciada há quase três anos fez com que o grupo já tenha enfrentado divergências internas, mas sem comprometer o movimento coletivo, mantendo-o vivo.

“A partir da atuação conjunta que já tínhamos no movimento social, surgiu o movimento coletivo. Com ele, outras pessoas se somaram, algumas novas e que nos conhecemos há menos tempo, mas os pressupostos da nossa construção permitiram, até aqui e sou otimista que vai continuar sendo daqui para frente, respeitar divergências internas que são inevitáveis e que são saudáveis, mas que não comprometam o todo da construção do nosso movimento”, afirma Culau.

Da teoria à prática, o modelo não convencional de representatividade parlamentar começará sua trajetória em janeiro de 2023 em Porto Alegre.


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