Eleições 2022
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29 de agosto de 2022
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18:52

No estado que nunca elegeu uma deputada negra, representatividade é desafio nas eleições

Por
Luciano Velleda
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Nunca uma mulher negra foi eleita deputada estadual e ocupou uma cadeira na Assembleia Legislativa do RS. Foto: Galileu Oldenburg
Nunca uma mulher negra foi eleita deputada estadual e ocupou uma cadeira na Assembleia Legislativa do RS. Foto: Galileu Oldenburg

Em tempos em que os direitos das mulheres e o debate racial ganham cada vez mais força na sociedade, transportar essas temáticas para a representação política ainda é um desafio no Rio Grande do Sul. Em 87 anos de história da Assembleia Legislativa, apenas quatro homens negros foram eleitos deputados. E nenhuma mulher negra alcançou uma cadeira no legislativo gaúcho, assim como, até hoje, nenhuma mulher negra foi eleita deputada federal pelo RS.

As eleições de 2022 podem mudar esse cenário. Aos poucos, o mundo político dominado por homens brancos dá passos em direção à tentativa de aumentar a representação política de mulheres e pessoas negras. Desde a eleição de 2018, os partidos políticos precisam cumprir a cota mínima de 30% de candidaturas femininas. Para este ano, cada mulher e parlamentar negro eleito terá peso 2 no próximo cálculo da distribuição do fundo partidário. 

Para as eleições de outubro, 33% das candidaturas no RS são femininas, um leve aumento em relação a 2018, que registrou 32%. Apesar do crescimento, o percentual de candidaturas femininas é muito inferior ao da população gaúcha. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2019 mostram que as mulheres são 51,33% da população no RS. 

No perfil raça/cor também houve avanço. Em 2018, foram 8,43% candidatos negros e 4,1% pardos, um total de 12,53%. Este ano, 11,06% das candidaturas são de pessoas autodeclaradas negras e 8,17% de pardas, totalizando 19,23%. O percentual em 2022 é bem próximo ao da população gaúcha. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNAD Contínua) de 2019, o RS possuía 11,35 milhões de habitantes, sendo 79% brancos, 14,3% pardos e 6,2% pretos. Somados, pretos e pardos representavam 20,5% – percentual próximo aos 19,23% de candidaturas negras e pardas.

Embora as novas regras eleitorais sejam elogiadas, da teoria à prática, o caminho é longo. Isso porque se a nova legislação eleitoral obriga os partidos a terem 30% de candidaturas femininas, a efetiva eleição delas ainda enfrenta uma série de obstáculos. A situação é similar com as candidaturas de pessoas negras e pardas, com o adicional de ainda mais preconceito e dificuldades econômicas para realizar a campanha 

A socióloga Suelen Aires Gonçalves acreditava que o financiamento público de campanha, instituído na eleição de 2018, poderia alterar este cenário. No entanto, diz que isso ainda não ocorreu e a representatividade feminina segue aquém do desejável. “O ponto é pensar estratégias para além do piso legal. Infelizmente o que acontece é um limite das candidaturas de mulheres no Rio Grande do Sul e no Brasil”, afirma.

Para o cientista político Paulo Peres, a baixa representatividade feminina é um indicador de uma série de obstáculos ao envolvimento mais intenso das mulheres na política, cujo resultado são as candidaturas reduzidas. Se a baixa quantidade de candidatas já é um problema, ele destaca que a situação é ainda pior ao final da votação e a constatação de quantas mulheres são efetivamente eleitas. 

“É um problema articulado porque, de fato, sem que as mulheres se candidatem, elas não vão ser eleitas. Apesar de toda legislação que tem sido feita para estimular a entrada das mulheres na política, isso não vem se revertendo numa melhoria substantiva da representação feminina quando a gente olha para quem assume o cargo”, analisa.

E quando são eleitas, Suelen comenta que as mulheres têm, em média, um mandato e meio. Uma amostra de que enfrentam mais dificuldades em se reeleger e formar uma carreira política. As razões, ela acredita, vão desde as dificuldades de aliar a construção da família com a carreira política até o espaço “não acolhedor” dos parlamentos às mulheres. Como exemplo, cita o fato de que a Assembleia gaúcha, até 2014, não tinha em seu regimento a previsão de licença maternidade para as deputadas.

Mulheres são 51% da população gaúcha e 33% das candidaturas em 2022. Gráfico: Tribunal Superior Eleitoral

O cientista político avalia que as estratégias dos partidos muitas vezes são obstáculos para o financiamento das candidaturas femininas. A exceção, quando ocorre, são as candidaturas de mulheres a cargos majoritários, como ao Governo do Estado ou o Senado, quando então os partidos são “obrigados” a colocar recursos. E mesmo nesse caso, diz Peres, muitas vezes essas mulheres são oriundas de famílias com tradição política e interlocução prévia com setores empresariais.

Com relação às candidaturas aos parlamentos, como é possível apresentar muitos nomes, há então mais mulheres candidatas. Todavia, Peres destaca que o investimento nessas campanhas é problemático, seja porque os partidos, independentemente de gênero, colocam mais dinheiro nas candidaturas majoritárias, ou porque os partidos investem em alguns poucos candidatos que são “puxadores” de voto. 

“As candidaturas femininas e também de negros, que vêm de uma trajetória social de menos recursos, são de origem mais pobre, não têm um capital político e uma rede de apoio até do próprio partido para conseguir financiamento”, afirma o professor de ciência política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 

Além da proporcionalidade da representação feminina, Peres ainda pondera o recorte de classe. Ou seja, entra as poucas mulheres que conseguem ser eleitas, a maioria são de condições socioeconômicas melhores ou tradição política. O cientista político ainda enfatiza o recorte racial como outro importante elemento a dificultar a representação feminina. Os obstáculos são em sequência: o gênero, a classe econômica e a cor da pele. Mulheres negras, normalmente de origem mais pobre, ficam por último nessa corrida em busca do espaço na política, inclusive se comparadas com mulheres pobres brancas.

“São obstáculos que se sobrepõem”, pondera o professor da UFRGS. “A legislação que vem sendo adotada, embora tenha trazido alguns avanços, é muito insuficiente. Ainda que estimule um número maior de candidaturas femininas, porque os partidos vão ter que cumprir a legislação, isso não garante de fato a eleição dessas mulheres.”

Assembleia legislativa do RS. Foto: Galileu Oldenburg

Para aumentar a representatividade das mulheres na política brasileira, Suelen defende a proposta de uma ação afirmativa em forma de reserva de vagas no Parlamento, semelhante a um sistema de cotas, para além do piso de 30% na composição das chapas. Ela argumenta que na última legislatura houve somente 15% de mulheres na composição da Câmara e do Senado, apesar das mulheres serem maioria da população brasileira e do eleitorado.  

“Para mudar essa perspectiva de gênero devemos, para além de pensar no percentual mínimo na composição das chapas, que acaba sendo em vez de piso, um teto, devemos pensar numa estratégia de reserva de vagas no Parlamento”, propõe.

A ideia é também defendida por Peres, se a intenção é mesmo haver um sistema que represente as fatias sociais da população na sua proporção. Ele conta que as cotas para a eleição de mulheres seriam de acordo com a proporcionalidade delas na população do Brasil, tanto para o Congresso quanto para as assembleias legislativas.  

“Seria uma votação normal como temos hoje, só que na hora de distribuir as cadeiras, se olha as mulheres mais votadas até preencher aquelas vagas”, explica. “Teria que haver algum tipo de adaptação nos cálculos, mas veja o efeito disso: se os partidos sabem que as mulheres ocuparão mais da metade das cadeiras, eles vão investir mais seriamente nas candidaturas femininas, senão vão perder espaço de poder. Se a intenção da lei era representar a população em termos de gênero, não pode ser uma ‘lei para inglês ver’. Se a intenção séria é esse tipo de representatividade, me parece que passa pela cota dos eleitos”, acredita. 

O problema da proposta, pondera o cientista político, é que tal mudança precisaria ser aprovada pela maioria masculina que domina o Congresso Nacional. Outro aspecto seria a abertura para o debate mais amplo da representatividade. Mulheres negras, por exemplo, poderiam alegar ser um equívoco parecer que todas as mulheres são vítimas de maneira igual.

“O Brasil não é apenas um país machista, é um país racista”, destaca o professor de Ciência Política da UFRGS. “É um assunto muito importante, mas sistêmico. Você resolve o problema numa coisa, e cria em outra parte”, reconhece.

Percentual de candidaturas negras e pardas cresceu em 2022, mas eleição segue sendo muito difícil. Gráfico: Tribunal Superior Eleitoral

Ao avaliar o crescimento das candidaturas negras e pardas este ano em relação a 2018, Suelen valoriza que o percentual dos candidatos no RS está próximo da composição da população gaúcha. A socióloga, inclusive, tem a expectativa de que o novo censo aumente um pouco esse percentual. No entanto, ela faz a ressalva: a representatividade parelha no lançamento de candidaturas não significa o resultado final de negros e pardos efetivamente eleitos. E a história de apenas quatro homens eleitos até hoje para a Assembleia e nenhuma mulher é a prova disto.

Se por um lado o movimento de mulheres pensa na proposta de uma ação afirmativa de reserva de vagas nos parlamentos, Suelen analisa que o movimento social negro, na eleição de 2022, põe em prática uma estratégia “por dentro do sistema” ao lançar candidaturas comprometidas com as lutas do movimento. A iniciativa, batizada de Quilombo nos Parlamentos, apresenta 120 candidaturas no Brasil, sendo seis no RS. 

“A proposta da Coalizão Negra é que não basta ser negro no Parlamento e não ter uma atenção em pensar as pautas históricas dos movimentos sociais negros, na garantia de direitos e pautas transversais, como acesso à educação e à saúde de uma população que hoje está na base da pirâmide na questão econômica e que é a população com menor acesso a serviços públicos. A base do sistema hoje no Brasil tem cor, é negra, e tem gênero, são as mulheres negras que estão na base”, afirma. 

A socióloga lembra que o assassinato da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro, evidenciou que a pessoa negra não é respeitada no Parlamento, uma Casa tradicionalmente reservada às elites brancas. “Nos chama a atenção que nem nesse espaço temos nossas vidas preservadas, porque é um espaço de reprodução das nossas elites. É assim no parlamento gaúcho, de classe média-alta, de homens brancos e ricos.”

Para ela, a iniciativa Quilombo nos Parlamentos é uma estratégia para além dos partidos e visa pensar o futuro do País ao buscar aumentar a representação dos negros nos espaços de poder. “Houve uma avanço dessa representatividade no espaço da vida política, mas temos que eleger e ter condições de construir esse mandato sem violência política de gênero ou sem violência racial e também pensar a continuidade desse projeto nos parlamentos”, acredita

A socióloga cita como avanço a primeira bancada negra na Câmara em Porto Alegre, já fruto dessa articulação. Em São Leopoldo, onde ela reside, somente no pleito de 2020 foram eleitos os primeiros vereadores negros no município com mais de 200 anos de história. “Essa é a realidade gaúcha”, lamenta. 


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