Política
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29 de abril de 2022
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09:10

1º ano da bancada negra expõe desafios de novos vereadores em ‘espaço monocromático’

Por
Luís Gomes
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Arte de Annie Castro/Sul21 sobre fotos de Giulian Serafim/PMPA e Divulgação/Câmara de Vereadores de Porto Alegre
Arte de Annie Castro/Sul21 sobre fotos de Giulian Serafim/PMPA e Divulgação/Câmara de Vereadores de Porto Alegre

“Eu fui barrada de entrar no plenário três vezes na primeira sessão. Meu lugar de trabalho”, conta a vereadora Bruna Rodrigues (PCdoB).

O primeiro dia de trabalho de Bruna, em 1º de janeiro de 2021, marcou a primeira vez em que cinco negros ocuparam simultaneamente cadeiras na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, sendo quatro mulheres.

“Eu não vi nenhuma vereadora branca que tenha sido barrada três vezes na mesma sessão. Isso fala muito de lugares que não estão acostumados com a nossa chegada, estão acostumados a nos ver aqui na limpeza e na manutenção, mas não sentandos naquelas cadeiras, não falando a partir daqueles lugares, não dizendo que nós não vamos pactuar com a falta de água, com a falta de luz, com a falta de creches”, segue Bruna.

Até então, uma única mulher negra havia tomado posse no primeiro dia de uma legislatura da Câmara, Teresa Franco (PTB), a Nega Diaba, em janeiro de 1997. Na última legislatura, a Câmara teve uma vereadora negra, Karen Santos (PSOL), mas ela fora eleita suplente e só assumiria o mandato com a saída de Fernanda Melchionna (PSOL) para a Câmara Federal. A presença masculina negra não foi tão rara ao longo dos últimos anos, mas ainda assim pontual. Em 2012, dois homens negros foram eleitos diretamente para a Câmara, o ex-jogador de futebol José Tarciso de Souza (PSD), o Flecha Negra dos tempos de Grêmio, e o delegado Cleiton de Freitas (PDT). Em 2016, Tarciso foi o único eleito. Ele viria a falecer durante o mandato, em 2018.

“Tu sabe que nós nunca nos intitulamos de bancada negra, nós fomos batizados e eu acho que isso fala muito”
Além de Bruna e Karen, não só reeleita, mas a campeã de votos no pleito de 2020 (15.702), as eleições daquele ano trouxeram ainda para a Câmara os novatos Matheus Gomes (PSOL), Daiana Santos (PCdoB) e Laura Sito (PT). Todos de partidos de esquerda. Nascia assim a bancada negra da Câmara de Vereadores, termo usado por veículos de imprensa, como o próprio Sul21, mas questionado por seus integrantes.

“Tu sabe que nós nunca nos intitulamos de bancada negra, nós fomos batizados e eu acho que isso fala muito”, diz Bruna.

Karen admite sentir um incômodo com o uso do termo, por ver nele uma tentativa da mídia de tratar os cinco como se fossem “uma coisa só”, enquanto pertencem a três partidos diferentes, são pessoas com trajetórias de vida distintas que enxergam de forma diferente o exercício da vereança.

“Nós temos diferenças e, para o marco de uma reorganização da esquerda, é fundamental debater porque, senão, nós vamos ficar só no debate estético, o que para nós é uma tragédia. Porque todo o acúmulo que o movimento social negro tem para nos colocar aqui dentro vai por água abaixo, porque o negro pensa igual e não tem divergência. Óbvio que tem”, diz Karen.

O termo, contudo, já tinha emplacado antes mesmo deles tomarem posse, e não por um motivo a ser celebrado. No dia 19 de novembro de 2020, quatro dias após o primeiro turno das eleições municipais, João Alberto Freitas, 50 anos, foi espancado e morto por dois seguranças de uma unidade da rede Carrefour, no bairro Passo D’Areia. O crime chocou a cidade e ganhou repercussão nacional. Na manhã seguinte, o Dia da Consciência Negra, os cinco vereadores recém-eleitos lideraram um ato para pedir justiça por mais um assassinato de pessoa negra.

Vereadores realizaram pronunciamento para cobrar responsabilização do mercado e dos agressores. Da esquerda para a direita: Laura Sito, Daiana Santos, Bruna Rodrigues, Karen Santos e Matheus Gomes | Foto: Luiza Castro/Sul21

“Nós não tínhamos dúvidas que nós deveríamos fazer um movimento. Então, quando nós vimos o que tinha ocorrido, nós já entramos em contato uns com os outros, nós estávamos na madrugada já organizando o que fazer, e já de manhã bem cedinho iniciamos o dia de mobilização. Nós já sabíamos da responsabilidade que nós teríamos. Eu acho que essa é a palavra que dá origem à bancada negra: entender a responsabilidade que é estar nesse espaço representativo”, diz Laura.

Compor essa bancada negra, diz Bruna, requer uma unidade que não é sempre fácil de alcançar. Contudo, os cinco estão unidos pelo fato de estarem na oposição ao prefeito Sebastião Melo (MDB). “Manter essa unidade é um desafio, mas, acima de tudo, fazer da política tradicional, dessa política que nós lutamos para romper, um outro lugar, um lugar que muitos de nós consigam acessar, para que nós consigamos ser um case de sucesso daqueles que lutaram muito para chegar e não desistiram dos seus”, diz.

No início deste ano, a reportagem do Sul21 sentou com as quatro vereadoras e o vereador para longas conversas em que elas e ele analisaram o primeiro ano da atual legislatura.

No exercício do mandato, os cinco acabaram vendo que também estavam unidos pela forma como eram tratados pelos demais vereadores da Casa, um tratamento que variou entre o desrespeitoso e o combativo e que não foi destinado a outros parlamentares de esquerda brancos. Um sinal disso viria, mais uma vez, logo após o primeiro turno de 2020. Em um áudio vazado que ganhou grande repercussão, o então vereador Valter Nagelstein (PSD), que concorrera sem sucesso à Prefeitura, referia-se aos recém-eleitos como pessoas “sem nenhuma tradição política, sem nenhuma experiência, sem nenhum trabalho e com pouquíssima qualificação formal” e ainda “muitos deles jovens, negros, quer dizer, o eco àquele discurso que o PSOL foi incutindo na cabeça das pessoas”.

Em março de 2022, Nagelstein foi condenado em primeira instância pelo crime de racismo. “(…) o qualificativo ‘negro’ empregado não se prestou à identificação da etnia dos vereadores eleitos – o que seria até mesmo desnecessário -, mas sim, integrou o contexto de uma ‘reflexão’ degradante a respeito dos indivíduos atingidos, tendo em vista as circunstâncias em que foi inserido”, diz a sentença, assinada pelo juiz  Sidinei Jose Brzuska. O ex-vereador nega o crime e está recorrendo da decisão.

“Já chegaram questionando nossa capacidade técnica, já chegaram questionando nossa capacidade política de estar aqui sem conhecer todo um histórico, sem conhecer os perfis desses cinco”, diz Daiana Santos. “Aquele áudio de fato não se referia somente a nós, mas também atacava nossa família e a própria comunidade negra. A família de cada um de nós sabe o esforço que foi, e que é, chegar até aqui. Nossa trajetória de estudos, de preparação, de militância, de várias renúncias e dificuldades que a gente teve até chegar aqui”, pontua Laura.

As provocações não ficariam restritas a Nagelstein e, mais uma vez, apareceriam logo no início do mandato, quando, por exemplo, na cerimônia de posse, os cinco permaneceram sentados durante a execução do hino riograndense, uma postura que já vem sendo adotada há anos por estudantes em formaturas no Estado, especialmente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), de onde quatro deles são egressos e onde Bruna ainda cursa Administração Pública e Social. A justificativa para o protesto silencioso é a frase “povo que não tem virtude, acaba por ser escravo”.

A “comoção contrária” ao protesto silencioso motivou a vereadora conservadora Mônica Leal (PP), herdeira política de Pedro Américo Leal, coronel apoiador da ditadura e político pela Arena, a apresentar um projeto de lei que incluiu no Regimento da Câmara a obrigatoriedade dos vereadores se postarem de pé durante as execuções dos hinos do Brasil e do Rio Grande Sul. O projeto foi aprovado por 22 votos a 11 em dezembro passado.

Laura Sito | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Para Laura, a chegada dos cinco trouxe um tensionamento a um “espaço monocromático” que não estava acostumado a lidar com contestação. “Pra mim, a demonstração mais simbólica do que é o nosso primeiro ano aqui é que poucos vereadores acertam quais são os nossos nomes. E pra mim isso é o mais simbólico do racismo. Várias vezes me chamam de Karen, de Daiana, de Bruna. Não acertam os nossos nomes”, diz.

“Pra mim, a demonstração mais simbólica do que é o nosso primeiro ano aqui é que poucos vereadores acertam quais são os nossos nomes”
Matheus conta que, ao longo do ano, vereadores da base aliada, especialmente aqueles ligados ao bolsonarismo — grupo que também emergiu como “novidade” das eleições municipais de 2020 para a Câmara de Porto Alegre –, questionaram a própria relevância dada pela imprensa à chegada dos cinco vereadores negros ao parlamento municipal. “Eles falam assim: ‘bom, mas já existiram outros vereadores negros, né? Em outras legislaturas nós tínhamos o Tarciso, tivemos a Nega Diaba, Teresa Franco, tivemos a Saraí’. Inclusive, num dia, num ato extremamente desrespeitoso no primeiro trimestre [de 2021], eles retiraram os quadros dos vereadores negros, levaram ao plenário, e foram pra tribuna com as fotografias dizendo: ‘ó, esses que são os vereadores negros, vocês não estão fazendo nada de novo'”.

Laura complementa que já ouviu de outros vereadores que “bom era no tempo da Nega Diaba”, porque a ex-vereadora Teresa Franco não teria reclamado de racismo durante a sua passagem pela Casa. “Ou seja, nos chamando de insolentes. Muitas vezes a ‘insolência’ tá só em se colocar, em não silenciar”, diz a petista.

Daiana lamenta que tudo que é proposto com um recorte racial mais específico vem sendo questionado na Câmara, especialmente pela ala conservadora. “É lamentável porque esses mesmos que questionam talvez não tenham olhado de forma mais próxima o porquê das nossas solicitações, isso enquanto bancada ou enquanto mandata mesmo, individualmente”.

Um exemplo cotidiano dessa contrariedade é trazido por Laura, quando da votação do projeto que procurava instituir o “Dia Marielle Franco” na cidade, data que, segundo a proposta, seria usada para conscientização contra a violência política e a violência contra mulheres negras e população LGBTQIA+.

“Ia passar, daí daqui a pouco a vereadora Nádia (PP) resolve dizer que é contra. Aí acho que os outros vereadores começaram a se ligar sobre o que era e começaram a ser contra também. E eu disse: ‘vocês vão derrubar esse projeto? É um dia alusivo, tem dia alusivo aqui a tanta besteira, e aí um dia alusivo a uma coisa séria vocês irão derrubar?’ E o pessoal disse: ‘aqui nós não queremos saber de Marielle’. E tem vários deles aqui que têm plaquinhas fazendo alusão à placa com o nome da Marielle. Então, é uma violência muito grande.”

Para Daiana, a presença na Câmara se revelou uma experiência microscópica do que vivencia a população negra na sociedade brasileira. “Aqui tem um pouco de tudo: tem aquele que questiona a nossa existência, até aquele que ignora, sabe? E que não faz o mínimo de movimento de compreensão e de fazer uma leitura um pouco mais ampla dessa realidade, nem próxima”, diz.

Daiana Santos | Foto: Cristiane Leit

Karen, por sua vez, vê esse não acolhimento como algo esperado. “Aqui é um espaço de negócios de quem tem influência local. Os herdeiros do setor do comércio, do setor da construção civil, da especulação imobiliária, das grandes redes de comunicação, da Ambev, que tá sempre aqui tentando fazer lobby também. Então, aqui é a mesa de negócios da burguesia local. Não nos surpreende, inclusive nos chamaria a atenção se nós fôssemos acolhidos”.

“Aqui é um espaço de negócios de quem tem influência local”
A vereadora do PSOL pontua que os questionamentos e demais comportamentos são instrumentos de uma “caixa de ferramentas” da qual os conservadores lançam mão para constranger, vulnerabilizar e mexer com o emocional dos vereadores negros.

“É muito fácil acreditar que tu é o problema. Se não articulam contigo, tem um motivo. Se não te convidam para assinar um projeto, tem um motivo. Se não te dão cargo comissionado, mesmo tendo direito, tem um motivo, que é desconstruir a política que a gente está expressando aqui dentro”, diz Karen.

Vereadores brancos, no entanto, fazem questão de rejeitar qualquer menção a racismo nas suas ações. A justificativa mais comum é que uma pessoa negra é muito próxima ou importante para a sua vida.

“Quem quiser pode procurar nos bancos da TV Câmara gente falando ‘não, mas eu tive uma senhora que me ajudou, que me criou, que era negra’. Eu não tô falando disso, isso é uma das coisas mais perversas, inclusive, que podem dizer pra um de nós negros. Porque isso é a retirada da humanidade, é desumanizar. Quantas mulheres negras deixaram de constituir ou cuidar suas próprias famílias para dar conta dessas outras famílias brancas? E quando falam isso pra gente parece, inclusive, que estão exaltando, dizendo, ‘olha, é da minha família’. Não é da tua família, nunca foi da tua família, nunca vai ser da tua família”, diz Daiana.

Um dos momentos que exemplificam o modo como os vereadores da bancada negra são tratados ocorreu em 1º de setembro do ano passado. A Câmara debatia naquele dia o projeto de lei prevendo a extinção dos cobradores dos ônibus da Capital e a oposição tentava impedir a aprovação da matéria. Em meio às discussões, Bruna denunciou que foi vítima de assédio por parte do vereador Alexandre Bobadra (PSL). Na ocasião, ela disse: “Acabei de ouvir do vereador Alexandre Bobadra que tenho ‘tesão’ nele, uma típica demonstração do machismo que nós mulheres somos submetidas”. A vereadora também relatou que, durante uma reunião de líderes de bancadas, Bobadra a interrompeu seguidamente, não a deixando falar.

O caso foi denunciado à Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher do Rio Grande do Sul, que determinou no dia 10 de março de 2022 o indiciamento de Bobadra pelo crime de violência política contra a mulher, caracterizado no Código Eleitoral como “assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo”.

Em 20 de outubro, outro episódio: manifestantes antivacina ocuparam o plenário da Câmara para protestar contra a adoção do passaporte sanitário em Porto Alegre, o que resultou em uma tentativa de invasão do plenário. Apesar de o “alvo” ser uma medida sanitária, alguns dos manifestantes despejaram ofensas às vereadoras da bancada negra, não se intimidando com o fato de celulares estarem gravando toda a ação. Uma das manifestantes disse, entre outras coisas, à vereadora Bruna Rodrigues que ela era sua “empregada”. “Infelizmente, ouvimos hoje aqui na Câmara o que estamos acostumadas a ouvir desde muito tempo. Ser chamada de ‘empregada’, de ‘lixo’ é mais uma manifestação de um racismo que tenta desqualificar a todo momento a nossa chegada na Câmara”, disse Bruna Rodrigues em uma postagem no dia.

Se no plenário os vereadores tiveram que conviver com assédio e racismo, fora dele, as ameaças foram ainda mais graves. Em dezembro, um e-mail assinado supostamente por um homem branco morador do Rio de Janeiro chegou às caixas de entrada dos cinco vereadores. Nele, o autor dos ataques dizia que iria “comprar uma pistola 9 mm no Morro do Engenho e uma passagem só de ida para Porto Alegre”, onde mataria, na própria Câmara Municipal, Karen e Daiana e quem mais estivesse com elas.

Mais uma vez, os vereadores teriam que recorrer à polícia, denunciando o caso à Delegacia de Crimes Cibernéticos de Porto Alegre, mas as ameaças continuariam chegando. “Ao longo do ano já tiveram muitas. Isso fala justamente dessa não compreensão do que nós somos aqui”, diz Daiana.

Ela avalia que as ameaças são alimentadas pelas redes de apoio que ganharam força com a chegada de Bolsonaro à presidência e que não aceitam ver “corpos diferentes” na política, como pretos, gays, lésbicas, travestis e transexuais. “Nós somos aqueles que este projeto que essas pessoas acabam propagando quer retirar. Imagina isso dentro de uma Câmara de Vereadores? Marielle tá aí como prova disso”, diz. “Eu sou um corpo sapatão e isso não interfere na minha capacidade teórica, técnica, isso não fala de toda uma construção do saber, através da universidade, enfim, da execução de projetos, como sempre fui. Isso não é questionável, mas infelizmente, quando querem nos desqualificar, colocam isso como parte, voltam de novo a esse perfil. E eu vou utilizar disso, porque as últimas ameaças que vieram, e que tem vindo constantemente através das redes sociais, sempre falam: ‘deus, pátria e família’”.

Karen Santos | Foto: Luiza Castro/Su21

Companheira de partido da vereadora carioca, Karen Santos mantém fotos com Marielle na entrada de seu gabinete. Ela avalia que o assassinato da parlamentar em 14 de março de 2018 colocou em questão a necessidade de construção de figuras públicas com um perfil estético mais próximo das pessoas comuns e da periferia. Por um lado, acabou sendo um fator importante para o aumento de parlamentares negros no Brasil, com impacto na eleição em Porto Alegre. Por outro, revelou as dificuldades que esses parlamentares teriam de enfrentar após eleitos.

“Para nós, a forma como ela foi assassinada expressou muito o incômodo, o mal-estar que a presença desse perfil, que não se cala, que não mede palavras para denunciar, que tem embasamento, porque vive aquilo que fala, como isso incomoda essa elite racista, de negócios, antipovo. Então, esse ódio e essa violência política que os nossos mandatos vêm sofrendo”, diz.

O mesmo teor das ameaças que chegam à bancada negra de Porto Alegre também é direcionado para vereadores negros de outras cidades eleitos em 2020. Em 15 de novembro, Ana Lúcia Martins (PT), primeira vereadora negra eleita da história de Joinville, Santa Catarina, recebeu pelas redes sociais uma ameaça com os dizeres: “Agora só falta a gente matar ela e entrar o suplente que é branco”. Em 9 de fevereiro, a vereadora Carol Dartora (PT), de Curitiba, também denunciou mensagens que vinha recebendo nas redes sociais: “Macaca fedorenta…vai pagar pelo que fez. Você não dura 2 meses”.

Matheus avalia que o poder público ainda não encarou com a seriedade necessária as ameaças. Após o e-mail de dezembro, a Mesa Diretora da Câmara divulgou um comunicado condenando “qualquer forma de intimidação ou manifestação de violência contra seus integrantes” e informando que “providências foram tomadas para ampliar a segurança” no parlamento municipal. A Prefeitura, contudo, ainda não se manifestou.

“São cinco vereadores, é maior que a bancada de qualquer partido. Eu queria saber que atitude o prefeito teria se fosse com o filho dele, que é vereador também [Pablo Melo], sendo ameaçado de morte, se não iria exigir investigação, se não iria se pronunciar publicamente, é um absurdo isso. Parece que a gente tem que convencer uma grande parcela do Estado e do poder político aqui em Porto Alegre que a ameaça é real”, diz.

Matheus Gomes | Foto: Luiza Castro/Su21
“Se qualquer um de nós tombar na luta, a derrota é coletiva, é do Estado, é da sociedade, é desses espaços que silenciam diante de tudo isso”
Bruna pontua que os vereadores já recorreram ao governo para denunciar as ameaças e que já foram à delegacia especializada em crimes cibernéticos tantas vezes que já conhecem delegada, comissário e agentes de polícia por nome. Contudo, ela também pontua que há uma omissão das autoridades e diz que, se algo ocorrer a qualquer um dos vereadores, a ação será resultado da negligência do poder público diante das ameaças. “Até aqui, a Câmara tem sido super omissa. Não tem tido medidas firmes. As mesmas pessoas que entraram, que ameaçaram e xingaram, podem entrar a qualquer momento. Se qualquer um de nós tombar na luta, a derrota é coletiva, é do Estado, é da sociedade, é desses espaços que silenciam diante de tudo isso”.

A rotina de ameaças pode levar ao pensamento de que são “coisas da internet” que nunca chegariam ao “mundo real”, mas os vereadores indicam que não se sentem seguros na Câmara. “Tu olha o e-mail e pensa ‘Ah, que ridículo!’, mas daqui a pouco pode nem ser a mesma pessoa que mandou o e-mail que venha fazer alguma coisa, mas o fato dela divulgar aquilo nesses grupos, porque eles divulgam publicamente, só precisa um”, diz Laura.

Bruna afirma que as dependências da Câmara são o espaço em que mais se sente insegura atualmente, enquanto “sobe e desce” os morros da cidade com tranquilidade. “Por que aqui, no meu trabalho, eu me sinto insegura? Porque esse lugar foi muito hostil a nossa chegada, desde a entrada. A minha assessoria precisa se identificar dez vezes para entrar. A galera que vem se reunir comigo precisa passar por toda uma burocracia, não é assim com outros vereadores”, diz.

Ela conta que as ameaças a fizeram mudar a forma como anda na cidade. “Eu sempre saia sozinha da minha casa, hoje não saio mais. A gente deixa de fazer coisas que eram habituais, porque também precisa ter uma certa cautela. Assim como não dá para superestimar, não dá para desconsiderar. Eu tenho certeza que, em algum momento, a Marielle recebeu muitas dessas, mas qual o tom, como a gente faz com que elas não sejam paralisadoras do nosso trabalho, da nossa militância, mas como dar a importância a devida? A gente dá a importância devida cuidando das nossas periferias”.

Essa cautela leva os vereadores a pensarem duas vezes antes de realizarem qualquer atividade, desde participarem de eventos públicos, até fazerem exercício em ambientes abertos.

“Nós hoje não temos condições de fazer qualquer agenda pública sem pensar medidas de proteção nos ambientes onde a gente vai estar”, diz Matheus. “E isso envolve grau de estrutura, grau de preparação, que é completamente diferente dos outros 31 vereadores aqui dentro da Casa. Completamente diferente! A gente observa isso no dia a dia, no andamento aqui”.

O vereador diz que precisou pedir para que a segurança da Câmara faça rondas nos corredores dos gabinetes da bancada negra. “Eu vou me arriscar ficar sozinho, de bobeira dentro da Câmara de Vereadores, se tem um cara dizendo que tem um ataque sendo preparado aqui, pra qualquer momento, que a gente não sabe?”, diz.

Laura conta que costumava levar o filho, que nasceu durante o mandato, para a Câmara, mas deixou de fazer. “Ele ficava numa escolinha porque várias vezes eu tenho que trabalhar até mais tarde. A gente pegava ele e depois trazia pra cá, porque eu moro distante, moro na Zona Norte. E depois disso eu cessei isso. Eu não trago ele pra cá, porque a segurança daqui é frágil.”

Daiana ressalta que nenhum dos cinco quer “pagar para ver” e virar “mártir”. “Bem pelo contrário. A ideia não é essa, a ideia é mudar toda a vida, que muda da noite pro dia. Um dia tu pode estar tranquila andando pelas ruas, tu pode estar vivenciando todos os processos da cidade, e tudo aquilo que acontece na cidade, e no outro tu não sabe quem é que pode te atacar”, diz.

Por outro lado, Laura acrescenta que só o fato de ter que constantemente falar sobre o assunto já é desgastante. “Pra mim, isso é o pior. Ao contrário de muitos que nos atacam dizendo que é mimimi, que é isso, que é aquilo. Na verdade, é horrível, porque eu me preparei pra estar aqui, debater infraestrutura, economia, educação, mas também debater as questões raciais, também debater os direitos humanos, mas não somente. E só de nos ameaçarem, de nós já termos que nos reorganizar a partir disso, já é uma vitória de quem mandou a ameaça”, diz.

“Foi um primeiro ano que, pra nós, não foi de muito sucesso. Todas as conquistas que nós tivemos foram deste portão pra fora”
Além de Karen ser a campeã de votos, Matheus Gomes foi o quinto candidato mais votado, com 9,8 mil votos, Laura foi a décima (5,3 mil) e Bruna foi a 11ª (5,3 mil). Em sua primeira eleição, Daiana foi a 26ª, com 3,7 mil votos, ficando à frente de figurões da política municipal e estadual como Cezar Schirmer (MDB), Ferronato (PSB), Cassiá Carpes (PP) e Claudio Janta (SD). Apesar do expressivo resultado, os cinco se encontraram, a partir de janeiro de 2021, em situação de ampla minoria na Câmara. O prefeito Melo compôs um arco de alianças que agrega ao menos 24 dos 36 vereadores, com a dupla de vereadores do PDT mantendo uma posição de independência e os dez vereadores somados de PT, PSOL e PCdoB na oposição.

“Foi um primeiro ano que, pra nós, não foi de muito sucesso. Todas as conquistas que nós tivemos foram deste portão pra fora”, diz Daiana.

Apesar de Melo ser um prefeito com maior capacidade de diálogo do que seu antecessor, Nelson Marchezan Júnior (PSDB), o que se reflete no fato de que mesmo os vereadores da bancada negra têm frequentes reuniões com membros do governo, as dificuldades para a oposição aumentaram na atual legislatura em razão dessa ampla maioria formada em torno do prefeito.

Karen avalia que a expectativa que se criou em torno da bancada negra, também pela sua expressiva votação, era de que se poderia, por exemplo, dar respostas ao programa neoliberal que governa a cidade desde 2004. “O Marchezan, de certa forma pela sua inabilidade política, contribuiu para cisões dentro da sua própria base de governo, o que permitiu a gente segurar projetos importantes. Já o Melo, pela sua articulação, pela sua habilidade, vem criando muitos problemas no sentido das pautas, das bandeiras históricas que nós levantamos”.

Laura acrescenta que pior do que as múltiplas derrotas que a oposição teve em quase todas as votações na Câmara foi o fato de a maioria delas sequer ter passado por ampla discussão e sequer receber uma “satisfação” dos vereadores governistas para a defesa de um projeto. “Desde o tema dos cobradores, acho que nós tivemos poucos vereadores do governo que se dispuseram a fazer um debate sobre. E ainda assim foi um dos temas que mais teve debate. Teve tantos outros aí, como a farra das isenções das empresas, entre outros, que o debate foi extremamente aquém do que deveria ter sido”.

Bruna Rodrigues | Foto: Luiza Castro/Su21

Bruna pontua que o expressivo resultado eleitoral trouxe não apenas uma responsabilidade, mas uma expectativa por parte do eleitorado de que seus novos representantes poderiam trazer mudanças reais para suas comunidades. No caso de Bruna, moradora da Vila Cruzeiro, ela diz que um dos desafios do mandato é conscientizar esse eleitorado das limitações que os vereadores enfrentam nesta situação de minoria, mas que não se trata de um processo fácil.

“Imagina, quando a água não sai da tua torneira há cinco dias e tu elegeu uma vereadora, tu acha que essa vereadora tem força suficiente para que a água chegue na tua torneira. E não, isso passa por uma decisão do prefeito. É angustiante para nós, porque eu sei o que é a água não sair da torneira, e é angustiante para quem vive essa situação. Equilibrar essas expectativas, esses sentimentos, não é fácil, mas a gente tenta”, diz.

Daiana pondera que um dos perigos dessa situação é o aprofundamento da descrença na possibilidade de mudança pela política. “Às vezes, as pessoas até chegam pra gente e dizem: ‘Bah, o nega, achei que ia dar pra fazer isso ou aquilo, porque já tão um ano aí e vocês não conseguiram fazer nada’. E eu digo: ‘olha, presta bem atenção no que tu tá me dizendo, a gente já tá há um ano aqui, olha quantos anos antes da minha chegada, e da nossa chegada aqui já se passaram, e isso nunca teve mudança nenhuma. Então é um processo que ele é dúbio, até na compreensão, e que precisa muito dessa vontade”, diz.

Contudo, nem só de derrotas se fez esse primeiro ano. Bruna foi a primeira mulher negra da história a presidir a Comissão de Economia, Finanças, Orçamento e do Mercosul (Cefor), responsável, por exemplo, pela discussão do orçamento municipal.

“Nossa atuação foi, sem dúvida, para popularizar a discussão do orçamento, para discutir a partir do olhar de mulheres como eu, negras, periféricas, que olham para o orçamento e não se veem nele. A gente continua não se vendo, mas sabemos que ele é estratégico para que a gente mude a forma na qual a cidade se organiza. Se nós não estivermos no orçamento, a gente não existe. Se tem uma mazela nessa cidade, é que o orçamento fala muito pouco sobre as expectativas do povo”, diz.

Bruna acabou também sendo responsável por relatar a Lei Orçamentária Anual de 2022. Entre as “pequenas vitórias” conseguidas na relatoria, ela destaca a inclusão de recursos para o enfrentamento da pobreza menstrual, para a distribuição de cestas básicas, para a implementação de políticas de diversidade e outras que tratam da luta antirracista.

“Óbvio que não foi o orçamento a partir da ótica da cidade que eu sonhava, que seria se a mulher que eu votei [Manuela D’Ávila] tivesse sido eleita. Mas não foi, foi uma pessoa que tem uma ótica da cidade distinta da minha. Olhando, e tendo clareza da correlação de forças, acho que foi muito positivo e impactou a Câmara”, diz.

A presidência da Cefor, contudo, não veio sem percalços. Inicialmente, ainda no dia da posse, vereadores da base de Melo decidiram romper com o princípio que prevê a distribuição proporcional de cargos da Câmara entre os partidos e excluíram a oposição da Mesa Diretora e das comissões permanentes. Contudo, uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em fevereiro determinou a anulação da eleição para os cargos da Câmara e a realização de uma nova divisão de cargos respeitando a proporcionalidade da representação.

Com isso, Karen também assumiu a vice-presidência da Comissão de Urbanização, Transporte e Habitação (Cuthab) e Laura assumiu a 3ª Secretaria da Mesa Diretora. A vereadora petista diz que, após o episódio, colocou para si a tarefa de restabelecer o canal de diálogo com os governistas. “Aquilo que nós tivemos que fazer, de entrar na justiça para entrar na mesa diretora, é absurdo, mostra que a Câmara ficou fechada, virou um cartório da Prefeitura. Então, nós podermos recuperar minimamente o espaço democrático da Câmara era importante. Eu acabei sendo a primeira mulher negra a compor a Mesa Diretora e trabalhei bastante também para que eu pudesse fazer daquele espaço, representando a oposição, um espaço de restabelecimento desse nível de diálogo”, diz Laura.

“As poucas mudanças que a gente conseguiu conquistar neste ano foram através da organização e da mobilização popular”
Matheus pontua que outra vitória foi, também no Orçamento de 2022, a ampliação em 36 vezes da verba prevista para políticas de combate ao racismo, que inicialmente era de apenas R$ 11 mil, num orçamento total de R$ 9,91 bilhões. “Nós denunciamos isso, teve uma amplitude muito significativa nas redes sociais, nas comunidades, e conseguimos construir uma mobilização consistente para fazer com que o valor que está inscrito no orçamento de 2022 fosse 36 vezes maior. Isso foi produto de revolta, foi produto de indignação das pessoas. Então, as poucas mudanças que a gente conseguiu conquistar neste ano foram através da organização e da mobilização popular”, diz.

E é justamente a mobilização popular por trás dos vereadores que Karen destaca como a força de seus mandatos. “A nossa melhor correlação de força são os 15 mil votos, os 10 mil do Matheus. Como a gente acessa e convoca essas pessoas para fazer parte da política e lutar, para fiscalizar, para ajudar a fazer pressão, para organizar um grupo do bairro”, diz.

Em 2017, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou um levantamento apontando que Porto Alegre era a cidade com maior desigualdade entre negros e brancos do Brasil. Segundo o relatório “Desenvolvimento Humano para Além das Médias”, o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal da população branca da Capital era de 0,833, enquanto o da população negra era de 0,705, uma diferença de 18,2%. A média nacional era de um índice 14,42% maior em favor da população branca

De acordo com dados do último censo, de 2011, 10,03% da população de Porto Alegre se declara negra, enquanto 10,21% se declaram pardos. Laura destaca que a população negra está situada majoritariamente em oito bairros da periferia da Capital e que tem a maior precariedade de serviços públicos. Neste sentido, um dos principais desafios da bancada negra seria trazer para a Câmara o debate sobre as desigualdades na cidade. “Nós podemos pensar o desenvolvimento da cidade também pensando sua perspectiva de promoção de igualdade, que também pode nos possibilitar fazer debates mais qualificados e mais aprofundados no combate à segregação sócio racial”, diz.

Para Matheus Gomes, a principal vitória da bancada negra até o momento foi justamente a instalação de uma agenda política voltada para a melhoria das condições de vida da população negra da cidade, o que, consequentemente, busca a melhoria das condições para toda a população.

“Se Porto Alegre é considerada a capital brasileira mais segregada racialmente, como a gente resolve os problemas, não somente dessa população, mas da cidade como um todo, se não olhando pra esse segmento? Ter política pública pra população negra de Porto Alegre é ter política pro conjunto da cidade, tu quer combater a desigualdade, tu começa por onde a desigualdade está, né? E foi isso que a gente fez ao longo do ano. Entre os temas mais importantes que partiram do nosso mandato, por exemplo, acho fundamental destacar a defesa de políticas de transferência de renda pra população pobre. Nesse momento, nós temos mais de 160 mil pessoas que vivem em condições de pobreza em Porto Alegre e a Prefeitura não fez, ao longo de 2021, absolutamente nada pra lidar com essa situação”, diz.

Por outro lado, Porto Alegre vive uma nova onda de grandes projetos e de processos de revitalização em áreas centrais, onde não se concentra a maior parte da população negra ou de onde ela já foi retirada. É um processo que começou com a revitalização do primeiro trecho da Orla do Guaíba, mas também é marcado por empreendimentos habitacionais e comerciais de grande porte, como o bairro planejado com 19 torres que está sendo construído ao lado do Barra Shopping Sul. O foco do mercado da construção civil na Orla do Guaíba também traz projetos como a revitalização do Cais Mauá, apresentado em novembro passado, que prevê a construção de nove torres na área das docas, e as torres do Beira-Rio, que ainda precisa ser aprovado pela Câmara. Neste último, a construção ameaça a permanência de um quilombo urbano, da Família Lemos, localizado ao lado do Asilo Padre Cacique.

Para Karen Santos, falta aos projetos em andamento na cidade um olhar sobre como as camadas mais pobres da população podem acessar os espaços já existentes com infraestrutura adequada. “As pessoas têm que acessar o Centro onde estão os equipamentos públicos, onde tem acesso a luz, água, internet, escola, creche perto, em vez de criar condomínio popular lá no extremo sul da cidade ou lá na Lomba do Pinheiro, onde já falta água, onde já está havendo a construção de uma ETA para suprir e, ao mesmo tempo que vai suprir, a especulação imobiliária não para de construir condomínios. Então, com certeza, daqui a cinco, dez anos, vai ter novamente esses problemas de falta de água.”

Daiana diz que a presença da bancada negra na Câmara é caracterizada por uma ruptura com o perfil histórico da Casa, em que parlamentares são, majoritariamente, homens brancos, acima de 50 anos, heterossexuais, com uma “pequena fortuna acumulada”. Uma mudança que também é geográfica.

“A gente chega aqui sem nada, a gente chega aqui só com um histórico de luta, de construção, dentro das políticas públicas, e com vontade de mudar, porque não aguenta mais, porque é parte desse povo que aos finais de semana, por vezes, não consegue vir desfrutar de toda essa revitalização que tem aí, que é aquele que quando o transporte público entra em greve, é prejudicado, que são os primeiros a ficarem desempregados, que quando chega no período de verão, onde a água começa a faltar em Porto Alegre, e é lá que falta. Eu falo porque é assim no lugar onde eu moro”, diz Daiana.

Essa ruptura, contudo, não ocorreria sem causar conflitos. “A gente chega com essa potência de mudança e de transformação não porque nós somos cinco, mas porque somos centenas. Somos cinco, cada um a seu modo, cada um da sua forma, representa uma parcela da sociedade, preta, que nunca teve essa possibilidade de questionar e que sempre foi tensionada a aceitar essas pequenas migalhas. É assim que eles olham pra gente. Só que não vai mais ser dessa forma, não vai mais ser dessa maneira, e é justamente por isso que vocês podem observar que, ao longo desse primeiro ano, nós tivemos tantos, mas tantos ataques, e veio tanta coisa, porque é justamente por isso que a gente não se coloca indiferente”, diz.

Os cinco logo depois de eleitos para o mandato iniciado em 2021. Foto: Leonardo Contursi/CMPA

Laura diz que tem pensado sobre o que a existência da bancada negra poderá representar não apenas para o futuro político de Porto Alegre, mas também para o País. “Ela tem que produzir um legado. Eu não gostaria que a presença de bancadas negras pelo País fosse somente a passagem de um período. Ela tem que ser a consolidação de um espaço representativo pra que nós tenhamos uma ampliação de representação real na cidade e na sociedade, mas, principalmente, que ela consiga impactar a forma de pensar o desenvolvimento dos municípios”, diz.

Ela pontua que Porto Alegre não foi um exemplo isolado nas últimas eleições, sequer dentro do Rio Grande do Sul. Lembra que em Caxias do Sul, cidade de colonização italiana, o PT elegeu três vereadores, todos negros. Em São Leopoldo, de colonização alemã, também elegeu dois vereadores negros. Em São Borja, no coração do conservadorismo do interior gaúcho, elegeu uma mulher negra trans.

“As eleições de 2020 demonstraram que essa agenda de direitos, da afirmação da luta racial, da luta das mulheres, da luta da juventude, deveria ser reafirmada do ponto de vista do seu espaço institucional. Ser levada pra outro grau de debate tendo em vista, inclusive, uma resposta à ascensão conservadora e à perseguição da agenda dos direitos humanos. Eu vejo a nossa chegada aqui também como uma resposta do povo de Porto Alegre a isso”, diz.

“Bancada negra, por si só, o conceito, limita a discussão de classe, fica só numa discussão estética”
Karen avalia que a presença de negros e negras em parlamentos deverá ser cada vez maior, inclusive pela mudança nas regras eleitorais determinando que, a partir desta eleição, votos dados a candidatas mulheres e a pessoas negras serão contados em dobro para efeito da distribuição dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral. No entanto, salienta que partidos de direita e de extrema-direita também irão tentar se beneficiar desta nova regra. Ela avalia que o caso de Porto Alegre está sendo observado por “outros parlamentos”, mas diz que isso é uma “faca que corta para os dois lados”.

“Bancada negra, por si só, o conceito, limita a discussão de classe, fica só numa discussão estética. O ideal seria ser uma bancada antirracista, mas aí também teria que incluir os parlamentares brancos que são antirracistas. Então, aqui dentro dessa articulação parlamentar de defesa das pautas da comunidade negra, a gente teria que ter essas mediações. Se for um parlamentar negro da extrema-direita, ele vai compor essa bancada também? Beleza. E se compor, as pautas dele vão ser consideradas pautas da comunidade negra? O que a gente precisaria é estar debatendo e contribuindo para que a próxima geração tenha mais consciência do seu papel aqui dentro”, diz.


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